Sílvia Laureano Costa (SLC) – Porquê a Casa da Comédia?

Maria do Céu Guerra (MCG) – Por uma razão muito simples: naquele tempo, para pessoas como eu, e para as pessoas que existiam na Casa da Comédia, não havia grandes alternativas. Nós éramos semi-amadores, quase todos ou trabalhadores ou estudantes e tínhamos pelo teatro uma espécie de religião ou de culto. Aliás, isto foi o que eu fui encontrar, não foi o que eu tinha à partida. À partida, eu tinha algum entusiasmo pelo teatro, que me nasceu na universidade. Eu não era uma apaixonada pelo teatro, era uma apaixonada por literatura e poesia – principalmente poesia. Foi na Casa da Comédia que essa dimensão do que podia ser o teatro me foi encantando. Mais ainda, porque era uma casa pequenina, muito pobrezinha e sem condições. Depois, o convívio com aquelas duas pessoas com quem contactei logo no princípio – o Dr. Fernando Amado e o Almada Negreiros –, deram-me dimensões extraordinárias do que poderia ser o teatro e do que poderia ser a discussão artística em torno de uma cena, de uma peça, de um discurso cénico. Realmente, foi aí que eu comecei a gostar mesmo muito de teatro e a interessar-me mesmo muito pelo teatro.

Eu fui, por uma razão muito simples, eu fazia parte do grupo de teatro da Faculdade de Letras [Universidade de Lisboa] e montámos lá um espectáculo. Algumas pessoas que faziam parte daquele grupo estavam ligadas à Casa da Comédia e levaram-me para lá às costas.

SLC – Não conhecia ainda o Dr. Fernando Amado?

MCG - Não conhecia ainda o Dr. Fernando Amado, nem conhecia o Almada. Conhecia-os artisticamente, mas não os conhecia pessoalmente.

SLC – Como via a figura de Almada Negreiros?

MCG - Eu via a figura do Almada como ele era exactamente, porque eu ia muitas vezes à Brasileira e encontrava-o muitas vezes na Brasileira; via-o lá com outros grandes pintores que iam à Brasileira naquela altura: o Abel Manta; o Jorge Barradas e muitos outros... Via o Almada e achava-o superiormente interessante, mas depois conheci-o na Casa da Comédia.

SLC – E hoje, passados estes anos, como olha para a figura do Almada Negreiros?

MCG - Eu olho para a figura do Almada como olhava quando convivia com ele. Nem mais, nem menos. Na altura em que o conheci, li, depois, praticamente tudo dele – e fiquei a conhecê-lo e a gostar muito dele, quer do ponto de vista artístico, quer humano. Ele era um ser absolutamente luminoso, extraordinário. Ele dizia as coisas como se estivesse a descobrir o mundo. As coisas ditas por ele tinham sempre alguma coisa de extremamente cristalino, ao mesmo tempo alguma coisa de enigmático e alguma coisa de poético. As coisas, depois de terem sido ditas por ele, davam a sensação de que só poderiam ter sido ditas daquela maneira. Ele era de uma capacidade síntese-poética extraordinária. Tudo o que ele inventava e o que ele nos passava – tudo tão leve. E a leveza era uma forma de modernidade. Nada no Almada tinha gordura, nada no Almada tinha peso a mais, nada tinha densidade a mais. As coisas nele pareciam que flutuavam. As descobertas parecia que flutuavam – ele próprio parecia que flutuava. Eu gostava muito dele.

Eu sou mais entusiasta da escrita do Almada do que da pintura do Almada. Eu acho que ele tem coisas escritas maravilhosas: o Nome de Guerra; A Engomadeira; A Invenção do Dia Claro; Deseja-se Mulher

SLC – Falemos, então, da peça Deseja-se Mulher. Como decorreram os ensaios para o espectáculo de estreia, em 1963?

MCG - Foram muito bons. Parecia que a gente estava a descobrir tudo.

SLC – O Fernando Amado encenou. E o Almada também interveio na encenação?

MCG - Não, o Dr. Fernando Amado não deixava. O Dr. Fernando Amado era muito amigo dele, eram compadres, tinham imenso respeito intelectual um pelo outro, mas o Dr. Fernando Amado não deixava. Eu lembro-me de uma vez em que eles estavam a discutir sobre se a personagem que aparecia numa cena, era a mesma personagem que aparecia noutra cena anterior. O Almada defendia que aquela era uma mesma pessoa e o Dr. Fernando Amado defendia que não, que eram pessoas diferentes. O Almada às tantas disse: «Você não percebeu nada da minha peça, afinal». E o Amado disse: «Não senhora, você é que não percebeu nada da sua peça!» E ficaram assim. Continuaram compadres. Continuaram amicíssimos.

SLC –Em Deseja-se Mulher interpretava o papel de A Mulher….

MCG - Eu interpretava dois papéis: A Mulher e a Saltimbanca.

SLC – Eram papéis difíceis para uma jovem actriz?

MCG - A Mulher era muito difícil, porque eu era uma menina, uma menininha. E aquilo era uma mulher muito experiente, que ia ter com uma mulher muito experiente – a Vampa – uma personagem importante (uma das duas protagonistas), e dava-lhe todas as lições de vida, que uma prostituta pode dar. E aquilo, para mim, era um mundo completamente fechado e secreto. Eu não percebia muitas das coisas que estava ali a dizer. Não percebia enquanto vida.

Depois, no final da peça, fazia uma passagem com o Santos Manuel, de um Saltimbanco e uma Saltimbanca. Um pouco a Gelsomina de La Strada [de Federico Fellini]. Era muito bonito. Aquele momento saía sempre com palmas, porque era mesmo uma cena bonita.

A propósito da minha personagem Saltimbanca: eu ainda não tinha roupa e estávamos quase no dia da estreia. Cheguei junto do Dr. Fernando Amado e disse-lhe: «Ainda não tenho roupa». Respondeu-me: «A menina ainda não tem roupa? Pois leva a minha gabardina.» Era uma gabardina comprida, cinzenta, já muito velha, com o colarinho todo coçado. O outro Saltimbanco levava uma roupa toda bonita, um chapéu de coco. Eu ia com a gabardina e um tambor. Essa personagem não tinha falas. Mas eu gostava de ir com a gabardina do Dr. Fernando. Todos os dias, antes do espectáculo, ele levava-me a gabardina aos bastidores e, no final da peça, eu devolvia-lha. Ele precisava dela. Não tinha outra.

SLC – Já tinha tido experiências teatrais ao nível universitário, mas sei que considera como o seu espectáculo de estreia o Deseja-se Mulher?

MCG - Sim, esta foi a minha estreia. Do teatro universitário não guardo grande memória, aquilo foi uma grande festa, mas não me lembro da qualidade teatral nem do prazer que tive.

SLC – Fale-me da receptividade do público à peça Deseja-se Mulher.

MCG - Foi enorme. O que se passava era único. Havia muito pouca coisa. Havia coisas com pouca frescura. A Casa da Comédia tinha um prestígio e um grupo de gente que a adorava. A Casa a Comédia tinha saído do Centro Nacional de Cultura (na rua António Maria Cardoso), onde se tinha começado a ensaiar e a trabalhar. As pessoas mais antigas da Casa da Comédia eram sócias do Centro Nacional de Cultura. Havia toda uma base de apoio da cidade àquele tipo de experiências.

Havia uma coisa extraordinária: os intelectuais não estavam divorciados do teatro. E agora estão. Havia uma vida que palpitava e que a nós dava-nos muito prazer. Éramos miúdos e estávamos a ser vistos pelos maiores escritores, pelos maiores pintores, por pessoas que tinham imenso a ensinar-nos. Era um público de uma qualidade e de uma riqueza extraordinária. Fiquei a dever isso à Casa da Comédia.

SLC – E isso também se reflectia na imprensa?

MCG - Também. Nessa altura, havia quatro ou cinco críticos dos jornais principais. E as críticas tinham entre um quarto de página a meia página, de jornais de grande formato. E apareciam, o mais tarde, três dias depois da estreia. Mas muitas vezes era no dia seguinte. Saiam do teatro, iam para a redacção e escreviam a crítica. Fechavam o jornal já com a crítica. E isso era muito interessante e estimulante para quem via e para quem fazia. Para quem via porque tinha a notícia fresca em relação ao que aconteceu. Era um relato que obedecia a todos os cânones da crítica – introdução sobre a peça; falava da encenação; dos figurinos; criticava a representação. Mas também dava o lado do acontecimento – se era estreia, quem tinham entrado... Portanto, as pessoas sentiam-se a partilhar uma coisa que acabou de acontecer.

E para nós [quem fazia] era extraordinário. Sentíamos o nosso trabalho apreciado, criticado. A própria relação que havia entre os actores, os encenadores e os críticos era extraordinária. Não era uma relação de amizade nem de proximidade, mas de respeito mútuo. Não era uma coisa familiar nem corporativa, mas era uma relação de respeito mútuo muito interessante.

SLC – A peça estreia num tempo de Censura. A Censura foi uma preocupação?

MCG - A Casa da Comédia não era um lugar de resistência política. O Dr. Fernando Amado era um monárquico da via democrática; pertencia a um grupo; mas não era um perseguido e o Almada também não. Na Casa da Comédia não se passava o sobressalto que se passava noutros lugares: como no Teatro Moderno de Lisboa; no Teatro Estúdio de Lisboa; Teatro Experimental do Porto e, durante algum tempo, o Teatro Experimental de Cascais. No entanto, tínhamos Censura. A Censura, a partir dos anos 60, fazia uma primeira leitura da obra, depois, essa leitura ou vinha com cortes, ou vinha autorizada. No ensaio de Censura havia a possibilidade da peça ser cortada – dependendo daquilo que a encenação havia possibilitado. Muitas vezes, a Censura autorizava textos sob a condição de serem cortados, porque a Censura nem sempre percebia o que é que a peça ia dar. Se a peça era cortada, havia ainda a possibilidade de pedir recurso – pagavam-se mil escudos – e, por vezes, davam autorização.

Nos teatro menos comerciais, os directores ainda arriscavam. Mas nos teatros comerciais, que envolviam outras despesas, não.

SLC – Lembra-se se houve ensaio de censura em Deseja-se Mulher?

MCG - Sim, houve ensaio de censura, mas não houve nenhum corte. Eles estiveram presentes, mas, que me lembre, não aconteceu nada.

Mas a propósito da PIDE, há a história do Alberto, o electricista…

SLC – Conte...

MCG - Na Casa da Comédia havia um PIDE – era o Alberto, o nosso electricista. Os rapazes começaram a desconfiar. Viam-no sair e ir para lugares suspeitos. Como o Dr. Fernando Amado tinha sempre em consideração o que as meninas lhe diziam, os rapazes pediram-nos para falarmos com ele. E assim o fizemos: «Oh, Dr. Fernando, olhe que o Alberto é um PIDE.» «Ai é? Então, esperem que eu vou lá falar com ele.»

Eu, a Fernanda Lapa e a Zita Duarte pusemo-nos à espreita atrás da porta, que era uma porta de salon. Não estávamos a fazer nada de mal, afinal aquela era a nossa casa e só queríamos o bem da nossa casa.

O Dr. Fernando sentou-se na beira de uma secretária, apoiando-se num chapéu-de-chuva e, pausadamente, dirigiu-se ao Alberto: «Fiquei a saber – não me pergunte como – que o menino faz parte da PIDE.» (Ele tratou-o por “menino”, como tratava toda a gente, e o Alberto já deveria ter quarenta e tal anos!) «Pois saiba o menino que o teatro é um espaço de liberdade. Ora um espaço de liberdade não se coaduna com a polícia, muito menos com a PIDE. O menino ou fica no teatro ou vai para a PIDE. Tem de escolher.»

O Alberto nunca mais apareceu no teatro. Mas nós também não tivemos nenhum problema com a PIDE.

SLC – Entrou em Deseja-se Mulher e um ano depois em Antes de Começar. Depois disso, voltou a representar textos de Almada?

MCG - Não. Agora, há pouco tempo, fizemos uma leitura com público do Nome de Guerra. E tenho dito poemas.

SLC – Como define o teatro de Almada Negreiros?

MCG - São exercícios modernistas. São grandes lições de síntese e poesia. O que é mais especial no teatro do Almada é a síntese, a capacidade poética, a leveza com que as cenas se sucedem. É o grande avanço do Almada. Ele é muito moderno na criação dos seus textos, nomeadamente no tamanho das cenas e na capacidade de criação de personagens com muito poucas palavras, com muito pouca gordura.

SLC – Há lugar hoje para Almada nos nossos palcos?

MCG - Acho que há. Nós [A Barraca] não vamos fazer tão depressa uma peça do Almada. Toda a escrita do Almada tem um lugar cativo na literatura portuguesa. Eu já fiz com alunos o Pierrot e Arlequim e o Antes de Começar. É, de facto, maravilhosa a maneira como ele escreve, a maneira como ele instala a poesia, a ternura, a descoberta das coisas através das palavras, a descoberta dos sentimentos.

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