Sílvia Laureano Costa (SLC) – Porquê a Casa da Comédia?
Fernanda Lapa (FL) – Ainda não havia o edifício. Comecei no Teatro Académico. Nessa altura, o Fernando Amado andava a angariar actores para o seu projecto. Ter-me-á visto. Chamou-me para ir ao Centro Nacional de Cultura, deu-me um monólogo d’A Castro, do [António] Ferreira e seleccionou-me. Nessa altura, estavam a fazer as obras da Casa da Comédia, numa carvoaria. O Almada era o ideólogo e o filho o arquitecto.
SLC – Como via a figura de Almada Negreiros?
FL - Eu via o Almada pelos olhos do Fernando Amado. Falava-nos muito dessa figura mítica. A primeira vez que o vi à minha frente, fiquei totalmente sucumbida. Parecia que estava em frente ao Elvis Presley. O primeiro contacto foi bastante embaraçoso. Éramos todos bastante ignorantes. Ele virou-se para mim e disse: «A menina poderia ser dadaísta.» E eu fiquei aflitíssima sem saber o que ele queria dizer com aquilo. Até que descobri o que era o dadaísmo…
SLC – Nos ensaios para a representação de Deseja-se Mulher, em 1963, o Almada esteve presente?
FL - O Almada foi apenas ao ensaio geral, mas depois ia a todos os espectáculos. E em todos os espectáculos dizia-me «Que máscara!». Se ele um dia não dissesse, eu morria...
Quando foi ao ensaio geral, desatou aos gritos, porque achou que aquilo estava tudo mal. Disse que aquela que fazia o desfile com o vestido de noiva era a Vampa. E não outra personagem, como estava a ser feito. Disse que não tinham percebido nada daquilo. O Fernando Amado era um poeta. O que lhe interessava era o texto, a forma como o texto era dito. Para ele teatro era poesia. E isso foi muito importante para a geração que trabalhou com ele. A encenação e tudo o resto passavam-lhe um bocado ao lado...
Por exemplo, a primeira cena era passada no cabaret e a segunda na casinha da Vampa. E nos ensaios era sempre assim: parava-se para se fazer a mudança de cenário. Até que uma de nós perguntou: «Oh Dr. Amado, mas como é que se passa de uma cena para a outra?» «A maquinaria, nunca ouviu falar da maquinaria?!», respondeu ele. Ora, no ensaio geral aconteceu o mesmo. E o Almada passou-se! Até que houve alguém que disse: «Mestre, não se preocupe que eu resolvo!» E lá esteve, com mais umas pessoas, a treinar toda a noite para que houvesse uma mudança rápida de cenários.
Quando acabaram os espectáculos, lembro-me de ter ido almoçar a Bicesse e de perguntar ao Almada: «O mestre não gostou muito da peça, pois não?» E ele disse: «Não. O Fernando Amado não percebeu nada.» Eu fiquei estarrecida. Eram os meus dois mestres! «Aquele texto não tem que ver com teatro dramático. Nada. Aquilo está perto do cabaret. Aquilo está perto da Revista à Portuguesa.», disse o Almada. Mas quando ele disse «da Revista à Portuguesa» eu ia morrendo, porque odiava a revista à portuguesa. Fiquei desorientada e sem perceber nada. Até que, dez anos depois [1972], achei que tinha percebido e encenei a peça. Tive uma noite de insónia. Não sei porquê veio-me a conversa com o Almada à cabeça... Estava na moda o café-concerto... e encenei o Deseja-se Mulher.
SLC – Em 1963, interpretou o papel de Vampa. Era um papel difícil para uma jovem actriz?
FL - Não. Era muito fascinante. Com aquela idade quer-se ser sempre Vampa. Sem pensar muito no que isso acarreta. Fazer a Vampa era o glamour.
A Laura Soveral ia lá muito com os filhos. Logo numa cena há alguém que diz: «vazia como casca d’ostra». A Laura chegou muito divertida, porque a filha tinha perguntado: «A Fernanda é vazia como casca de ostra?» Eram tão inocentes as crianças como nós. Porque metade das coisas que ele [Almada] dizia ali, nós não percebíamos.
SLC – Como foi a receptividade do público à peça?
FL - Muito boa. Era a primeira vez que aquela peça era representada. Esteve sempre cheio… Mas aquilo [a Casa da Comédia] também era pequeno.
SLC – Como define o teatro de Almada Negreiros?
FL - Inscreve-se no modernismo. Tem muitas influências, em alguns sítios, do próprio Pessoa.
O Almada pressentia um certo número de coisas que depois se foram fixar no teatro contemporâneo e que talvez, na altura, não se soubesse como fazer.
Ele gostava de ser amado e admirado. Era o mestre. Gostava de ser reconhecido por multidões... estou-me a lembrar, por exemplo, do Zip Zip.
Ele não queria fazer um teatro hermético, mas no entanto fez... No Deseja-se Mulher, por exemplo, a fórmula «1+1=1» tem várias interpretações. Na minha interpretação, na minha encenação, não quer dizer que haja unidade, mas solidão.
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Fernanda Lapa (1943-2020)