Como a única revista com traços estéticos e temáticos modernistas que foi dirigida por uma mulher, Judith Teixeira (Viseu, 1880 – Lisboa, 1959), Europa representa um caso excecional no panorama da imprensa da época e na história do Modernismo português. Concebida como “magazine mensal” para um público leitor generalista mas sofisticado e exigente, pela sua dimensão Europa foi porventura o projeto mais ambicioso de Teixeira, apesar de chegar a contar com apenas três números, correspondentes a abril, maio e junho de 1925. Encarregada da sua “direção e edição” (e auxiliada pelo secretário de redação, José Adolfo Coelho), Teixeira lançou a revista dois anos depois de o seu primeiro livro de poesia, Decadência, a ter catapultado para a notoriedade quando se tornou alvo da repressão censória, juntamente com Canções de António Botto e Sodoma divinizada de Raul Leal, no âmbito da reação conservadora contra a chamada “Literatura de Sodoma” no primeiro trimestre de 1923. Em termos cronológicos, Europa insere-se entre o segundo volume de versos da autora, Castelo de sombras (ainda de 1923), e os seus últimos livros, Nua. Poemas de Bizâncio (1926), De Mim. Conferência. Em que se explicam as minhas razões sobre a Vida, sobre a Estética, sobre a Moral (1926) e Satânia. Novelas, de 1927, ano em que Teixeira praticamente desaparece do foro público português e, possivelmente, de Portugal, visto afirmar encontrar-se ausente do país numa nota incluída em Satânia.

 

As capas da Europa, de autoria de Jorge Barradas (números 1 e 3) e Bernardo Marques (número 2), que também figuram entre os ilustradores da revista, juntamente com (entre outros) Eduardo Malta e Martins Barata, anunciam a vocação de abrigar e divulgar matéria cultural de feição nitidamente “moderna” e cosmopolita. É particularmente notável, neste sentido, a capa do número inaugural, com a sua imagem frenética de uma banda de jazz composta de dois músicos negros e uma cantora, cuja pose tortuosa e erotizada parece ecoar, além da capa desenhada por Marques para A idade do jazz-band (1924) de António Ferro e do correspondente repertório visual parisiense (com a sua exotização fascinada e objetificante da art nègre), as figurações “decadentes” do corpo feminino na própria poesia de Judith Teixeira. Já os conteúdos da revista revelam-se mais eclécticos, com novelas históricas a alternarem com textos de feição “futurista”, como a ficção sensacional “A guerra do futuro”, da responsabilidade do autor pseudónimo Phantasius (que também assina “Os enigmas do sobrenatural” no número 2), com ilustrações impressionantes de Rocha Vieira. Semelhantemente diverso, embora contando com poucas autoras, o elenco de colaboradores inclui nomes sonantes, como Aquilino Ribeiro (com um excerto de Filhas da Babilónia) ou Ferreira de Castro (autor do artigo sobre “os pequenos profissionais” da cidade), ao lado de figuras desconhecidas ou esquecidas.

 

Embora Teixeira não assine nenhum dos artigos, contos ou poemas publicados na revista, é mais que provável serem da sua autoria muitos dos textos não assinados ou pseudónimos, de temática diversa (notas editoriais, cultura, desporto, divulgação científica, reportagem, recensões de livros, moda, etc.), assim como as legendas das fotografias que ocupam várias páginas de cada número (já o secretário da redação publica na revista duas novelas suas, “As duas marquesas” e “Prisioneira da vida”, ilustradas respetivamente por Jorge Barradas e Eduardo Malta). Nas galerias fotográficas é nítida a preocupação de acompanhar a atualidade: encontramos nelas, por exemplo, reproduções das obras exibidas no Salão d’Outono lisboeta de 1925 (com quadros de Almada Negreiros, António Soares, Eduardo Viana, Jorge Barradas, Mário Eloy e Milly Possoz); fotos de estrelas e “divettes” de cinema e de espetáculo, portuguesas e estrangeiras; e imagens de filmes recentes, com destaque interessante para o cinema expressionista alemão: O fim do Duque de Ferrante (Herzog Ferrantes Ende, 1922) de Paul Wegener (referenciado repetidamente); O gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920), de Robert Wiene; e A morte cansada (Der müde Tod, 1921), de Fritz Lang. O último número da Europa inclui, aliás, uma reportagem vivaz de Reinaldo Ferreira (o “Repórter X”), colaborador assíduo da revista, sobre a cinematografia alemã, peça baseada numa visita aos estúdios da EFA e em entrevistas com Karl Wolffsohn (“o maior jornalista cinematográfico da Alemanha”) e o produtor Felix Pfitzner, entre outros. Mas outras cinematografias mundiais têm também uma representação robusta: além das expectáveis referências hollywoodescas, encontramos no segundo número imagens do filme Satyavan Savitri (aqui Savitri – Sativan), de 1923, a primeira coprodução internacional do cinema indiano.

 

A sensibilidade artística e a reputação de ousadia erótica atribuídas à diretora da revista parecem encontrar eco em algumas das matérias dispersas pelos três números, como o texto sobre “O despido no cinema” (assinado por “Écran”), que, entre outras considerações, tece elogios à estrela italiana do supracitado Satyavan Savitri, Rina de Liguoro, “erguendo orações a Brahma (…) numa oferta sublime dos seus seios perfeitos e nus como duas magnólias beijadas”; ou, no mesmo número 2, artigo baseado numa entrevista com Anna de Noailles, em que o entrevistador (António de Cértima) observa como a escritora francesa, “num gesto (…) que lhe empresta uma graça doentia de odalisca real, brinca agora, tendo livre a tulipa heráldica da mão esquerda, com as bagas do seu colar de pérolas que, preciosas e solertes, como princesas preversas [sic] procuram com avidez a carne nua e funda do seu busto branco de estátua sagrada”. Particularmente notáveis neste capítulo são as clichés (por Mário Novais, autor de muitas das imagens que aparecem na Europa) de “Florêncio, o bailarino português” (número 1), com o futuro Francis Graça a ensaiar os figurinos e as poses que, semanas mais tarde, causariam escândalo na estreia do Teatro Novo de António Ferro a 2 de junho de 1925. Por último mas não em último, menção honrosa para “Charneca em flor” (número 3), o soneto de Florbela Espanca que seis anos mais tarde viria a ancorar a coletânea homónima da poetisa; lido nas páginas acolhedoras da Europa, o poema recupera toda a vitalidade e audácia que a sua publicação póstuma tingiria com a melancolia de luto.

 

Embora a 3 de junho de 1925 uma nota n’O Domingo Ilustrado descrevesse Europa (na ocasião do lançamento do seu segundo número) como “uma publicação que honra sobremaneira a imprensa portuguesa” e lhe desejasse uma “longa vida”, na realidade a vivência do projeto foi tão fulgurante quanto breve. É provável a hipótese, avançada por Torcato Sepúlveda, de que a vida curta da revista se deveria ao seu preço elevado, 7,5 escudos pelo número avulso (e 79 pela assinatura anual), certamente calculado para corresponder aos custos da sua produção esmerada. Por comparação, no mesmo ano, um número da revista Alma Nova, também mensal, custava 2,5 escudos; O Domingo Ilustrado (semanal) um escudo; e Renovação (quinzenal) um escudo e meio. Mas o design ambicioso e aparentemente insustentável da Europa em última análise condizia com o perfil da sua diretora, cuja intrepidez artística e intelectual repetidamente ultrapassaria os limites do socialmente aceitável no ambiente em que lhe coube viver.

 

Anna M. Klobucka