Arquivo virtual da Geração de Orpheu

Mário de Sá-Carneiro

O Arquivo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), poeta modernista, inclui correspondência, cadernos e manuscritos, bem como a obra publicada no seu tempo de vida. Muitos destes documentos foram reunidos por François Castex, professor e escritor francês, e encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Portugal. Reúne-se aqui também o conjunto das cartas enviadas pelo autor ao seu amigo Fernando Pessoa.

Os documentos completos encontram-se no campo “PDF” e os manuscritos foram transcritos no campo “Edição”. 

 

Medium
Mário de Sá-Carneiro
Esp.115/6_32
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Sá-Carneiro, Mário de
Identificação
Carta a Fernando Pessoa
Carta a Fernando Pessoa

Carta enviada de Paris, no dia 10 de Agosto de 1915. 

 

 ** 

 

Paris – Agosto de 1915

Dia 10

Meu Querido Amigo,

 

Recebi hoje, batendo as palmas, a sua carta de 6. Enfim – se não que propriamente ainda um relatório, já, sem dúvida, uma carta «pessoal». Agradeço-lhe vivamente pois – e uma última vez lhe suplico perdão pela minha já tanto aludida descompostura do dia 26, salvo erro.

Estou-lhe muito grato por todas as suas diligências na «affaire» do Céu em Fogo – bem como reconhecido ao Augusto que é na verdade um tipo admirável! Fico sossegado: hoje recebi também o postal da Livraria – ontem um telegrama do meu Avô a quem pedi dinheiro e que mo anuncia. Agora só falta a resposta telegráfica do meu Pai para definir o meu destino. Veremos...

– Os meus parabéns, oh! mas os meus vivíssimos parabéns pelo novo papel do nosso Orfeu que você fez imprimir não sei aonde. Homem, aonde raio foi descobrir aquele tipo de papel e de letra – tão Álvaro de Campos e, ao mesmo tempo, tão inglês? (sobretudo o formato do sobrescrito). Por curiosidade diga-me como foi que arranjou aquilo – sim? Provavelmente por intermédio da livraria.

– Exorto-o intensamente a que não descure a propaganda europeia do Orfeu – claro com traduções (talvez não necessariamente integrais – trechos bastarão, creio) sobretudo das Odes, da «Chuva Oblíqua» e da «Manucure». Não poupe exemplares – pois para que os queremos nós?... Por mim não mandei o Orfeu ao movimento futurista – mesmo porque não sei o endereço. Para centralizar – mande você. Não lhe parece melhor? Diga. Agora o que precisa começar a preocupar-nos é o n.º 3 – materialmente e «sumariamente». Quanto à 1.ª questão vou até com certa brevidade escrever ao Augusto para ver se consigo o seguinte: a livraria mandar imprimir o 3.º n.º do Orfeu à sua tipografia (Lucas) fazendo-me crédito da importância. Se houver perda eu comprometo-me a cobri-la. Todas as outras condições como eles quiserem. Faremos só 500 exemplares – sem gravuras – com o n.º mínimo de páginas (72) e forçosamente em papel menos caro. Um papel mais barato, mas no mesmo género, claro. O Augusto em tempos disse-me que na tipografia Lucas o 1.º do Orfeu não custaria mais de 65 000 réis.

Meu querido Fernando Pessoa, bem sei que é doloroso não podermos manter o luxo, não dar gravuras – e fazermos um n.º menos espesso. Mas compreende que é a única forma de o fazer sair – visto que eu, tão cedo, não posso voltar à Tipografia do Comércio. O aparecimento do n.º nas condições acima indicadas tenho esperança que seja possível – tanto mais que ainda tenho um saldo a meu favor na livraria que não reclamarei e que – por pequeno que seja – serve para «inspirar confiança»... Agora quanto ao sumário:

Almada Negreiros (Nota Importante: convém muito cortejar este pequeno que, em todo o caso – e com o grande interesse de ser colaborador do Orfeu – nos pode ajudar com uns 10 000 réis de adiantamento, em qualquer ocasião – e com mais até se, no momento, estiver endinheirado. Não deixe de lhe falar no Orfeu e na sua colaboração do III n.º – aquela coisa soberba a que eu já esqueci o nome – a do «ergo-me pederasta», etc.)

Fernando Pessoa e Álvaro de Campos: o 1.º deve dar versos rimados: «Sonetos dos 7 Passos» e «Além-Deus». O 2.º alguma coisa – que porventura tenha feito entretanto.

Mário de Sá- Carneiro: não sei propriamente, mas alguma coisa se arranjará (quanto mais não seja os versos que tenho feito e que – por inferiores – sempre são alguma coisa e irritantes na antipatia furiosa das «Canções» 3-4 que na minha última carta enviei). Mas isto é pouco – e com que podemos mais contar?

Assunto grave. Diga. Se ficar por aqui vou trabalhar muito. De prosa, sinto-me pouco disposto a escrever agora o «Mundo Interior» visto ser uma novela interessante mas «igual» a outras minhas. Gostaria de fazer agora uma coisa doutro género – e está-me atraindo este assunto: um homem que (através dum enredo outonal e romântico) lute ardentemente para merecer uma mulher: luta pela vida, luta material para ter os meios de fortuna, para poder sustentar, no fim de contas, a mulher – luta por questões de família – luta mesmo, talvez – e possivelmente a preço de infâmias – para obter o amor dessa mulher afastando um rival. Este homem conseguirá enfim tudo. Mas então suicidar-se-á ou fugirá. Isto só brutalmente. Que lhe parece? Não sei. Mas em todo o caso é impróprio para o Orfeu. Se você acha duma conveniência capital o meu «Mundo Interior» para o III n.º, diga – que o escreverei. Suplico-lhe que me fale de tudo isto pormenorizadamente – e faço votos para que o «dia-de-cinco-mil-réis» tenha passado sem novidade... Adeus. Um grande e sincero abraço do seu

o muito seu Mário de Sá-Carneiro

29 r. Victor Massé

ESCREVA!

Interessou-me o que diz da revista inglesa. Com que então quase do tamanho duma mesa?...

 
 
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5659
Classificação
Espólio Documental
Correspondência
Dados Físicos
Tinta preta sobre folhas lisas e sobrescrito.
Dados de produção
1915 Agosto 10
Inscrita.
Fernando Pessoa
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Bom
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Paris
Orpheu, Futurismo, Modernismo
Álvaro de Campos
Almada Negreiros
Documentação Associada
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Esp.115
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.