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Fernando Pessoa - teoria literária

Esta edição digital de textos de Fernando Pessoa trata o conjunto dos escritos de teorização poética que se encontram no seu espólio e reúne ensaios, comentários, apontamentos, esboços e fragmentos sobre literatura do autor português. Os documentos são transcritos a partir do espólio de Fernando Pessoa à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal, com a cota E3. Quanto aos fac-símiles, são acompanhados de uma lição crítica e de uma transcrição paleográfica, que se encontram disponíveis para download no campo “PDF”.

 

Medium
Fernando Pessoa
BNP/E3, 14C – 11-13
BNP/E3, 14C – 11-13
Fernando Pessoa
Identificação
Fialho de Almeida

[BNP/E3, 14C – 11-13]

 

Fialho de Almeida

 

  1. Distinção entre o provinciano e o citadino na literatura.
  2. _____________________________

Em lhe tirando a paisagem e a malevolência[1], fica uma besta quadrada.

Que desgraça que ele é como contista! Não sabe narrar, não sabe dialogar, não sabe construir.

Quando quer fazer contos, só contos, {…}

Aquela porcaria do Cancro por exemplo… Que mostruário de estupidez e de {…}! Só ressuscitando-o para lhe dar com eles na cara!

Um instinto descritivo como nenhum outro neste mundo, um poder de sentir a paisagem como nunca homem teve… É que ele era parte da paisagem… Nunca devia ter saído para fora da consciência intuitiva de que o era.

Provinciano… Província.

A sua mesquinhez de espírito anda à tona do mundo como a taca.

Obsceno como um putanheiro de aldeia, lorpa.

 

[11v]

 

Ataca à navalha e a varapau. Nunca por suas mãos rugosas de campónio bêbado passa uma intenção do gesto com que se exprime e se saboreia.

Obsceno como um Qualquer de bordel[2], porco de frases como um cantante de taberna {…} – quando quer ser humorístico cai – como todos os galegos e todos os malteses e todas as mais choldras que se não lavam – em ser obsceno meramente.

 

[12r]

 

Imoral sem a elegância do que o citadino põe na imoralidade.

- -

Mas é que nem mesmo é obsceno patente, celeradamente. A sua alma era um barril de lixo – pequeno é certo mas malcheiroso em extremo.

Há aldeia no seu modo de pensar. O seu estilo traz consigo costumes de quem tem o campo por retrete e para quem a banheira e do bidé nem fica mais do que uma espécie de Longe Sonhado e entrevisto em bruma.

Nem a espiritualidade canalha do fadista, nem a {…}. Um andar pesado e escravejado o de sua alma, um sentar-se prono, um {…}

Séculos de maltezismo sujo deixariam[3] na sua alma dedadas muito dedadas, {…}. Unhas sujas as do seu talento. Um génio menor – mas cuja alma nunca lavara os pés.

Incapaz de ironizar, de atacar com aquela frieza {…} daqueles a quem

 

[12v]

 

nenhum servilismo da gleba dobrou atavicamente o dorso, e cujas mãos não nasceram calejadas da memória da enxada dos avós.

 

[13r]

 

Há certas coisas que a Arte provinciana nunca dá, assim como há certos gestos que[4] um provinciano nunca faz[5].

O provinciano pode ser um equilibrado; nunca deixa de ser um incompleto.

 

Há espaços demasiado grandes entre homem e homem no campo, correspondentes espaços demasiado grandes entre almas rústicas e almas rústicas.

(Um provinciano, por bem que salte um obstáculo, bate sempre com os pés no chão de um modo demasiado plebeu. Mesmo quando ágil move-se mal, como se trouxesse restos de estar-enraizado nas solas sujas dos pés.)

Um simples gesto simples trai o campo que um homem traz no corpo. Senta-se num sofá assim como quem se atira para cima de uma tarimba, ou como quem se senta numa cadeira trémula ou por denegação absurda em cima de um prego.

 

 

 

[1] malevolência /obscenidade\

[2] bordel /feira\

[3] deixariam /haviam deixado\

[4] /com\ que

[5] faz /acerta\

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/3179
Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 116-117.