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Fernando Pessoa - teoria literária

Esta edição digital de textos de Fernando Pessoa trata o conjunto dos escritos de teorização poética que se encontram no seu espólio e reúne ensaios, comentários, apontamentos, esboços e fragmentos sobre literatura do autor português. Os documentos são transcritos a partir do espólio de Fernando Pessoa à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal, com a cota E3. Quanto aos fac-símiles, são acompanhados de uma lição crítica e de uma transcrição paleográfica, que se encontram disponíveis para download no campo “PDF”.

 

Medium
Fernando Pessoa
BNP/E3, 14B – 48-50
BNP/E3, 14B – 48-50
Fernando Pessoa
Identificação
Camões.

[BNP/E3, 14B – 48-50]

 

Camões.

 

Há uma singularidade que a Camões destaca dentre os épicos todos, que o torna épico entre os poetas desse mesmo sentimento. O patriotismo.

 

Poetas patrióticos – tem havido muitos e vários. Poeta do patriotismo há só Camões. De seu natural falho de imaginação, mediocremente inteligente (nem subtil, nem profundo), minimamente construtivo e coordenado, tudo isso – imaginação, inteligência, construção – lhe surge e lhe é dado pela violência e desvairo com que sente o amor da pátria.

Os Lusíadas não é um dos grandes poemas épicos do mundo. Faltam ao seu autor qualidades (as máximas, sobretudo) do puro-artista para o fazer atingir maximidades e extremos. Mas é, de entre as epopeias todas a mais milagrosamente epopeica. Porque a sua base é lírica, não epopeica.

 

[49r]

 

É a única epopeia construída sentimentalmente. Nisto |reside| o seu valor extraordinário. É lirismo que saiu para fora do ser lírico.

Variada cretinagem – gente que se maça a ler coisas mais extensas que um artigo de fundo – costuma dizer que prefere Camões poeta lírico, a Camões poeta épico. Tem razão, se bem que a não tenham. Realmente há só Camões poeta lírico esse Camões poeta lírico é máximo quando é Camões poeta épico.

Entendamo-nos bem: A poesia épica baseia-se num poder de imaginação construtora, ao passo que a poesia dramática se apoia na duma imaginação {…}, e a lírica assenta em ser de uma imaginação egoística, egocêntrica, pessoal. Os poetas épicos são de 3 espécies, e são de 3, porque Camões existe, porque ele é o único na sua. Há os épicos de imaginação (Homero, Virgílio, Dante, Milton) – são os que abrangem assuntos tidos por eles por verdadeiros, olhando à sua grandeza e à sua complexidade variável {…} há os épicos de fantasia (Ariosto, Tasso, Spenser) que cantam o tido por eles por falso e irreal {…}

 

[50r]

 

Construir uma obra qualquer – seja qual for o seu caracter ou extensão – sobre um sentimento pessoal (e não propriamente concebido {…} como artístico) é fazer obra lírica.

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= Camões =

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Parece, à 1ª vista, difícil de encontrar uma frase diferencialmente descritiva de Camões. Mas se lhe chamarmos o “poeta do patriotismo” pouco erraremos o descrevê-lo. E se, com maiores escrúpulos e critérios de acerto, lhe chamarmos o épico do patriotismo, terá morrido na frase tudo o que nela era duvidoso.

Quedará banal a frase, mas compensa-se bem com o ser justa. É um trajo simples que fica natural e bom no corpo para o qual é feito.

 

“Épico do patriotismo – entendamo-nos bem

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R e G Leal

Nuno de Oliveira

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Ant. †

 

[48v]

 

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Poeta propriamente épico, constitucionalmente épico é aquele que, qualquer que seja a base[1] sentimental do assunto, {…}

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Este é que é o ponto capital. É vendo isto que vemos a grandeza de Camões.

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E só soa no campo, cheio da solidão[2] de ser

|*O rir, rir, rir, rir, rir que a cigarra ri|

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E há nevoentos desencantos

Dos encantos dos pensamentos

Nos prantos lentos dos recantos

Dos bentos cantos dos conventos.

Tecida de intentos, lentos, tantos

Que encantam os atentos ventos.

 

[49v]

 

Em outros tempos, lindas, lindas

Celindas e Clorindas, brandas

{…}

As vindas vendo das varandas

E ouvindo, mais para as bandas

Dos conventos {…}

 

 

Rastros orquestrais

‘Strondeando ainda

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Através torturas e labirintos laterais

Troam tambores longe. Finda

Outra e trémula música e entre ela, ainda

Há troares de longe, entre os húmidos ais,

Vem, música alegre saltitada, |e mais| {…}

 

[50v]

 

E um clamor da música pelos campos se desgarra

E entre o parar da música e o recomeçar

|Erra o riso do rir sórdido da cigarra.|

 

      

 

[1] a base /o conteúdo\

[2] /vão e\ cheio da solidão /(e)\

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/3153
Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 84-86; 383-385.