Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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Quer se entenda a alegoria como um “tropo de salto”, em que a relação entre a significação e a forma expressa não é imediatamente reconhecível, manifestando uma heterogeneidade que, de acordo com Walter Benjamin, reenvia para a sua origem histórica e convencional, quer a entendamos em proximidade a uma noção de símbolo que pressupõe uma unidade entre o conceito e a sua forma  expressa, pode considerar-se a alegoria como um tropo intrínseco à poesia pessoana, sobretudo se tivermos em conta que o constante diferimento do sentido, sob diversos modos, constitui o movimento central da obra de Pessoa. Assim, se a alegoria é a figura do enigma, Fernando Pessoa é, por excelência, o poeta do enigma, quer o formule de um modo tendencialmente aforístico, quer o trabalhe a partir de figuras tomadas de um património alegórico ocidental (o Fausto, o Diabo, a Serpente, o Rabequista, o Marinheiro, etc), quer se interesse activamente por sistemas e práticas herméticas e ocultistas e respectivas linguagens constituídas por símbolos alegóricos. É possível dizer que a atracção por linguagens e construções herméticas não decorre tanto da crença numa revelação e mais da procura e fascínio por formas e fórmulas enigmáticas, ou seja, pela própria essência da expressão alegórica.  Em A Hora do Diabo, por exemplo, podemos ler: “Sou naturalmente poeta, porque sou a verdade falando por engano, e toda a minha vida, afinal, é um sistema especial de moral velado em alegoria e ilustrado por símbolos”.

Para além do recurso a figuras constantes de um património tradicional, já referidas, encontramos, ainda, uma profusão de  imagens alegóricas constantes de um património comum ao Simbolismo e a parte do Modernismo (“Pierrot”, “adagas”, “opalas”, “orientes”, “lanças”, “ametistas”, “sirtes”, “toga”, “múmia”, “marfim”, “ginete”, “turíbulos”, “lírio”, ”flauta”, “espada”, “gnomos”, “hiemal”, etc.), o recurso à alegorização de figuras históricas que funcionam como ilustração e exemplo de qualidades abstractas  (é o caso em grande parte do poemas da Mensagem); o recurso à alegoria filosófica, platonizante, como por exemplo, em Passos da Cruz, a passagem “A paisagem longínqua só existe/ Para haver nela um silêncio em descida/ P’ra o mistério, silêncio a que a hora assiste… /(…)/ E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo”; e o simples recurso ao modo tradicional de fazer alegoria a partir de nomes comuns, não associáveis directamente a um movimento particular, embora sejam, por razões semânticas e retóricas, associáveis à tradição lírica, particularmente alegorizantes (“sino” “asa negra”, “velas”, “águas”, “galera”, “navios”, etc).

Também o uso de maiúsculas, a que Pessoa (o ortónimo e alguns heterónimos, em especial, Álvaro de Campo) recorre, com frequência, na grafia de certos nomes, em geral de abstracções, é um modo de indicar a presença da intenção alegórica: “”Verbo”, “Caos”, “o Desconhecido”, “o Indefinido”, “o Mistério”, “a Cousa indefinida”, “Intenção” “o Instante”, “Nitidez”, “Nada”, “Tudo”, “o Oposto”, “o Momento”, “o Útil”, etc.). Por vezes, este uso da maiúscula aparece associada a nomes de objectos concretos, como é próprio, aliás, da imagem alegórica, assim abstractizando ou desrealizando a referência, subsumindo-a e fixando-a na intenção alegórica: “Hora”, “Longe”, “Outro Vale”, “Esfinge”, “Puro Gesto”, “Máscara”, “Sombra”, “Abismo”, “Rosa Perfeita”, “Aurora”, “Névoa”, “Ocaso”, “Hoje”, etc

Enquanto poesia que essencialmente se constitui como alegorese, e como pensamento sobre o enigmático, encontramos, em poemas, algumas fórmulas síntese sobre a alegoria. Um bom exemplo disto é o poema simbolista, de influência baudelairiana, escrito em 1923: “Oiço passar o vento na noite. /Sente-se no ar, e alto, o açoite/ de não sei quem em não sei quê/ Tudo se ouve, nada se vê” // Ah, tudo é símbolo e analogia. /O vento que passa, esta noite fria. /São outra coisa que a noite e o vento  - / Sombras de Vida e e Pensamento. // Tudo nos narra o que nos não diz. /não sei que drama a pensar desfiz/ Que a noite e o vento narrando são./ Ouvi. Pensando-o, ouvi-o em vão. // Tudo é uníssono e semelhante./O vento cessa e noite adiante,/ Começa o dia e ignorado existo./ Mas o que foi não é nada disto”. No poema “Natal” (1922), esta mesma impossibilidade de identificar a própria significação do oculto formula-se assim: “Cega, a Ciência a inútil gleba lavra. / Louca, a Fé vive o sonho do seu culto. / Um novo Deus é só uma palavra. /Não procures nem creias: tudo é oculto”.   

      Mas a mesma renúncia em encontrar, à maneira do símbolo, uma unidade entre imagem e significação, é um motivo pessoano cuja leitura alegórica pede que tenhamos presente, por um lado certos traços do Modernismo, e por outro o contributo de W. Benjamin, para uma redescrição da alegoria. Uma das marcas do Modernismo é o carácter artificial que a arte tem para este movimento. O que há de arbitrário na alegoria, em contraste com o símbolo, é o que mais aproxima a sua descrição benjamineana das imagens e figuras do Modernismo, da sua qualidade agressivamente artificial, do seu intencional distanciamento da representação, da sua descrença na relação entre verdade e figura, da sua exibição do carácter construído, conceptual, não orgânico das suas imagens. Embora Benjamin não se refira exactamente ao mesmo, a sua teoria fornece-nos o melhor instrumento para disto nos aproximarmos. É que, em certos momentos de Pessoa, o peso do Indistinto, do Indefinido pesa na imagem conferindo-lhe uma especial irradiação. Em “Alegoria e Drama Trágico”, diz Benjamin que na alegoria a imagem não desvenda o oculto mas, simplesmente, desvela-o como oculto, (o sublinhado é meu), num movimento que a rigidifica, sob o peso de uma significação aposta, que dela se apodera anulando o seu significado imediato. É neste movimento que a alegoria ganha a configuração, de acordo com a descrição benjaminiana, de fragmento e de ruína. A este propósito, escreve Miguel Tamen: “Na A., a heterogeneidade entre aquilo que se diz (o conceito) e o modo como se diz (a imagem) é assim adicionalmente marcada por uma relação de poder que subordina incondicionalmente o segundo factor ao primeiro (…) e que corresponde a um modelo de relação entre faculdades em que a faculdade de criar imagens (a Imaginação ou Einbildungskraft) é um mero apêndice da faculdade de produzir juízos”. A alegoria fixa o oculto, o indecifrável, o enigma na rigidez mortal das suas figuras. Diz, a este propósito, o que quase parece ser dito a propósito de Pessoa, W.  Benjamin: “quanto maior a significação, maior a sujeição à morte, porque é a morte que cava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação”. É esta mesma fixidez que fascina Pessoa, ou seja, o modo como a impossibilidade de coincidência entre manifestação e significado oculto se fixa na imagem com um brilho particular, sobretudo quando, nesse brilho se precipita, por sobre a impossibilidade de coincidência com qualquer significação unificadora, a evidência de uma ausência que é não-ser, vazio, Indefinido, Infinito, etc. fórmulas que são marca das imagens do mundo como ilegibilidade, o que faz dele alegoria. Num poema de 1920, por exemplo, lê-se: “Na aldeia ao pé do mar, quem sou?/ Ninguém que tenha que encontrar / Mais do que a aldeia ao pé do mar/ E o mar que sempre a embalou” (1918-1930, 131); ou “Sobre este plinto gravo o inútil verso/ Que comemora a inútil emoção…” (153).

Assim, as fórmulas-síntese “tudo é Oculto” (Pessoa), ou “o único mistério do mundo é não haver mistério nenhum” (Caeiro), podem ser lidas como inscrições lapidares de uma mesma alegoria, num movimento em que as diferentes figuras conduzem à fixidez ensimesmada de uma não resolução. Aliás, no verso citado, como é frequente em Caeiro, imiscui-se uma outra construção central em Pessoa, a contradição, de tal modo que só de modo alegórico se pode ler a contradição, o que também se passa no início de O Guardador de Rebanhos: “Eu nunca guardei rebanhos/ Mas é como se os guardasse”.

Na face desta alegoria, em que a imagem se torna autotélica, cabem os diferentes modos de dizer o “não-ser”, o “indefinido”, a ausência de si, a irrealidade das coisas. Em “Chuva Oblíqua”, por exemplo, Pessoa trabalha, como figura da realidade, a indistinção entre a percepção das coisas, na sensação, e a ficção de um eu no qual as sensações têm origem, funcionando este movimento especular como imagem alegórica de um sujeito que sente num sonho (“Atravessa esta paisagem o meu sonho de um porto infinito”) e se sente  sentindo, isto é, pensando-se: “Não sei quem me sonho” , o que nos reenvia para um outro plano de eu, como lugar original dessa enigmática consciência, que, afinal, nada pode saber, a nada pode referir-se, a não ser na alegoria do objecto indistinto: “o porto infinito”. Todas  as referências a algo de indefinido ou impalpável, vazio ou absoluto, etc. são fórmulas alegóricas cuja ideia é esse “porto infinito” que é (eu) “nada poder ser”. E esta ideia, esta evidência determina e fixa o próprio carácter fragmentário das imagens.

Mas é no Álvaro de Campos futurista que a artificialidade própria do Modernismo melhor se encontra com o carácter fragmentário e histórico que W. Benjamin atribui à alegoria, e onde melhor se exibe o brilho da “ facies hippocratica da história como paisagem primordial petrificada” de que fala este autor: “Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto /ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,/ ao ruído cruel e delicioso da sensação de hoje? / Tudo isto apaga tudo salvo o Momento, /o Momento de tronco nu e quente como um fogueiro, / O Momento estridentemente ruidoso e mecânico / O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes/ Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais” (Ode Triunfal). Campos é a alegoria que se constitui em imagens “artificiais”, descoladas de uma relação de unidade com aquilo que designam, sendo a mais forte a que se reporta à exposição dramática da dissolução do eu na sensação, sob o olhar do sujeito melancólico que, não sabendo quem é, contempla, nesta alegoria do Momento, as imagens petrificadas da impossibilidade de possuir.

Maria Andresen Sousa Tavares

 

BIBLIOGRAFIA

Fernando Pessoa, Mensagem (1922); A Hora do Diabo (1997); Ficções do Interlúdio (Assírio e Alvim, 2003) Poesia 1902-1917 (Assírio e Alvim, 2005); Poesia 1918-1930 (Assírio e Alvim, 2005); Poesia 1931-1935 (Assírio e Alvim, 2006); Alberto Caeiro, Poesia (Assírio e Alvim, 2001); Álvaro de Campos, Poesia (Assírio e Alvim, 2002); Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária, 1967 (trad. Rosado Fernandes); Paul DeMan, “A Retórica da Temporalidade” in O Ponto de Vista da Cegueira (trad. Miguel Tamen); Miguel Tamen, “Alegoria” in Biblos, vol, 1; Walter Benjamin, “Alegoria e Drama Trágico”, in Origem do Drama Trágico Alemão (trad. João Barrento).