(1770-1850)
William Wordsworthé umpoeta inglês, autor, com Samuel Taylor Coleridge, de Lyrical Ballads (1798); de uma autobiografia em verso, The Prelude (1799; 1805; 1850); de uma extensa obra poética coligida em 1815 e em edições subsequentes; e de um importante conjunto de textos críticos.
O volume Lyrical Ballads inclui “The Rime of the Ancient Mariner”, de Coleridge, e “Tintern Abbey”, de Wordsworth, que Pessoa descreve como “dois dos maiores poemas de todas as literaturas”. A noção de “balada lírica” é paradoxal. Filia-se simultaneamente no género épico (a balada como épica breve), e no género lírico. A ambiguidade genérica do título do volume, inaugural do chamado Romantismo inglês, condensa a forma dominante da poesia moderna. Esta consiste na descrição, e no pathos a ela associado, de uma paradoxal magnitude do privado. O poema que mais fundamente traduz esta forma, The Prelude, é apenas comparável aos textos maiores de Rousseau. De entre os restantes poemas de Wordsworth, Pessoa várias vezes adopta a “Grande Ode” (“Ode: Intimations of Immortality from Recollections of Early Childhood”) como pedra de toque, e único texto rival, de poemas que amiúde refere como os maiores do seu tempo: Pátria e a Oração à Luz, de Guerra Junqueiro, e a Elegia do Amor, de Teixeira de Pascoaes. (Num outro texto, todavia, depois de descrever um modelo de correcção em arte: “não há dúvida de que muitos poemas – até mesmo muitos poemas maiores – ganhariam em ser traduzidos para a língua em que foram escritos” [“there can be no doubt that many poems – even many great poems – would gain by being translated into the very language they were written in”], e indicar as modalidades possíveis deste movimento de correcção: “por elisão, substituição ou adição” [“by excision, substitution or addition”], Pessoa toma como exemplo esse poema que em outros lugares elogia: “a ‘Ode on Immortality’ de Wordsworth é um grande poema, mas está longe de ser um poema perfeito. Poderia ser reajustado com proveito” [“Wordsworth’s Ode on Immortality is a great poem, but it is far from being a perfect poem. It could be rehandled to advantage”] [Páginas Íntimas, p. 220].)
Da prosa crítica do poeta inglês, por seu turno, Pessoa retém como intuição de génio a necessidade professa de um autor educar os contemporâneos no modo de recepção da própria obra. Eis como num texto de 1915, “Orpheu – Revista Trimestral de Literatura – n.º 1”, Pessoa reproduz os termos dessa intuição: “Nas sóbrias laudas do seu «Essay Supplementary» à edição de 1815 das Lyrical Ballads, Wordsworth escreveu estes períodos: «Se há conclusão que, mais do que qualquer outra, nos seja imposta pela revista, que fizemos, da sorte e do destino das obras poéticas, é a seguinte: que todo o autor, na proporção em que é grande e ao mesmo tempo original, tem tido sempre que criar o sentimento estético pelo qual há de ser apreciado; assim foi sempre e assim continuará a ser… Para o que é propriamente seu, ele terá, não só que limpar, senão que muitas vezes que abrir, o seu próprio caminho; estará no caso de Aníbal entre os Alpes.»” É por hipérbole que Pessoa julga a intuição crítica de Wordsworth: “Estas palavras pertencem já à Eternidade” (Crítica, pp.107-8).
A importância de Wordsworth na obra de Pessoa excede os aspectos referidos. Wordsworth é, de modo explícito ou tácito, decisivo na constituição de Alberto Caeiro. Nas “Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro”, Álvaro de Campos cita a Caeiro, “com perversidade amiga”, os versos do poeta inglês, “A primrose by the river’s brim / A yellow primrose was to him, / And it was nothing more” (que Campos, ignorante do léxico botânico elementar, traduz por “Uma flor à margem do rio para ele era uma flor amarela, e não era mais nada”). Caeiro qualifica estes versos como abstractos e ignorantes da singularidade de cada percepção: “‘Há uma diferença’, acrescentou. ‘Depende se se considera a flor amarela como uma das várias flores amarelas, ou como aquela flor amarela só’.... ‘O que esse seu poeta inglês queria dizer era que para o tal homem essa flor amarela era uma experiência vulgar, ou uma coisa conhecida. Ora isso é que não está bem. Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente já não é o mesmo nem a flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É pena a gente não ter exactamente os olhos para saber isso, porque então éramos todos felizes’”. Esta observação de Caeiro acolhe programaticamente a pobreza perceptiva de Wordsworth, radicalizando-a. Mas a relação entre os dois poetas é descrita noutros textos de Pessoa como fundamentalmente antitética.
Num texto em inglês incluído em Páginas Íntimas, Pessoa caracteriza deste modo a absoluta novidade de Alberto Caeiro: Caeiro “vê coisas apenas com os olhos, não com a mente. Não deixa que nenhum pensamento lhe ocorra quando olha para uma flor. Longe de ver sermões nas pedras, nem mesmo se permite a si mesmo conceber que uma pedra possa iniciar um sermão. O único sermão que uma pedra contém para ele é que existe” [Páginas Íntimas, p. 338]. Há neste passo duas referências silenciosas a Wordsworth: a primeira aos dois versos finais da “Grande Ode” do poeta inglês, em que se evidencia a típica desmesura reactiva do autor face a um pretexto aparentemente menor (“Ode Intimations of Immortality from Recollections of Childhood”: “Para mim a mais ínfima flor abrindo-se pode trazer-me / Pensamentos que muitas vezes se abrigam demasiado fundo para lágrimas” [“To me the meanest flower that blows can give / Thoughts that do often lie too deep for tears.”]); a segunda a dois versos de Shakespeare, tornados lugar-comum na caracterização vitoriana de Wordsworth, que referem como a vida pastoril “Encontra línguas nas árvores, livros em riachos correntes, / Sermões nas pedras e em tudo o bem” [“Finds tongues in trees, books in running brooks, / Sermons in stones, and good in everything”. As You Like It, II, 1, 15-7]). Na recusa das duas posições a que neste passo silenciosamente alude, Pessoa caracteriza Caeiro como o anti-Wordsworth.
Wordsworth figura, nesta recusa, o excesso retórico que caracteriza a poesia moderna, ao conferir a uma pedra uma eloquência adventícia, a capacidade de enunciar sermões. Uma tal capacidade homilética evidencia-se na leitura, durante muito tempo canónica, dos seus poemas como consolação (de que o exemplo maior se encontra na Autobiografia de John Stuart Mill, que refere como a leitura de Wordsworth o salvou de uma depressão quase letal). A posição de Caeiro é, segundo Pessoa, avessa a esse excesso: “Perguntai a vós mesmos: que pensais de uma pedra quando olhais para uma pedra sem pensar nela? O estranho é que toda a poesia de Caeiro se baseia neste sentimento”. O vitoriano Matthew Arnold, num ensaio influente, descreve Wordsworth de modo quase idêntico, num passo que Pessoa sublinhou no exemplar da sua biblioteca: “A poesia de Wordsworth, no seu melhor, é inevitável, tão inevitável como a própria Natureza. Poderia parecer que a Natureza não só lhe deu a matéria para o poema como escreveu o poema por ele” (“Wordsworth”, Essays in Criticism. Second Series, Londres: Macmillan, 1927). Uma tal interposição da Natureza como escriba revela-se, no caso de Caeiro, na ausência, ou incorrecção ocasional, de estilo. Se o estilo é o homem, o poema da Natureza é inestilístico [“A Constituição dos Heterónimos”, p. 51-2].
A importância de Wordsworth para Pessoa ele mesmo é igualmente decisiva. Na influente descrição de João Gaspar Simões, a “evolução de Pessoa” ter-se-ia feito “no sentido da despersonalização dramática para a transfiguração lírica” [Vida e Obra de Fernando Pessoa, p. 263]. O aparecimento dos heterónimos revelaria a incapacidade em que Pessoa se encontra em Março de 1914 de tratar o que Simões considera ser o seu tópico de eleição, o reconhecimento de que “o supremo bem é a vida sem pensamento, o viver sem consciência, a paradisíaca inocência da infância” [Idem, p. 286]. Pessoa teria passado da mistificadora comédia dos heterónimos, que Simões deplora, à enunciação na primeira pessoa, retomando desse modo a tradição lírica portuguesa. Nessa progressão do histrionismo dramático para a limpidez da enunciação lírica, o texto inaugural da maturidade é, para Gaspar Simões, ainda que obscuramente na primeira versão de fins de 1914, “Ela canta pobre ceifeira”. O tópico de eleição de Pessoa condensa-se, na versão de 1924, num verso decisivo: “O que em mim sente está pensando”.
A natureza primeira e a genuinidade lírica de “Ela canta pobre ceifeira” são, no entanto, paradoxalmente qualificadas se considerarmos a dependência deste texto, sublinhada, desde pelo menos 1953, por Jorge de Sena, do poema de Wordsworth, “The Solitary Reaper” [Fernando Pessoa & Cª Heterónima, p. 94; “A Constituição dos Heterónimos”, p. 49]. O incidente inicial do poema do autor inglês é, de novo, minúsculo, a visão numa montanha escocesa de uma ceifeira solitária que entoa uma melodia pura, mas dificilmente inteligível. A consciência aguda que no poeta emerge imobiliza-se, suspensa do canto, através de uma apóstrofe a si mesmo e ao leitor, “Stop here or gently pass”. Nesta apóstrofe deverá reconhecer-se a interpelação típica de um epitáfio, uma intimação de mortalidade. O poema de Wordsworth conclui com um transporte edificante: à medida que se afasta do campo em que a ceifeira canta e a melodia se perde, o autor diz como durante muito tempo levou essa música consigo, muito depois de ela ter cessado. O poema de Pessoa, “Ela canta pobre ceifeira”, exaspera esta relação, em “The Solitary Reaper”, entre consciência e natureza, em que o primeiro termo é enfaticamente dominante. O programa de Alberto Caeiro consiste em reparar a interiorização massiva que se actualiza nesse poema seminal de Pessoa e no seu modelo de origem, o poema de Wordsworth. Como, todavia, em qualquer diferendo transnacional habitualmente se oculta uma relação no idioma de origem, deverá identificar-se, no antagonismo de Caeiro e Wordsworth, a oposição maior, constitutiva dos heterónimos, entre Pessoa e Teixeira de Pascoaes.
BIBL.: Feijó, António M. “A Constituição dos Heterónimos. I. Caeiro e a Correcção de Wordsworth” Colóquio / Letras 140-141 Abril-Setembro 1996; Sena, Jorge. Fernando Pessoa & Cª Heterónima. (Estudos Coligidos 1940-1978), Lisboa, Edições 70, 1984; Simões, João Gaspar. Vida e Obra de Fernando Pessoa, 1950, 5ªed. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1987.
António M. Feijó