Arquivo virtual da Geração de Orpheu

A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Z

 

 

(1901-1978)

Poeta, ficcionista e ensaísta, tendo exercido actividade docente em universidades de França, Bélgica, Brasil e, com continuidade, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É natural da Praia da Vitória, ilha Terceira, nos Açores. Pertence à geração presencista (nasceu no mesmo ano que José Régio), colaborando na revista Presença e em outras duas que, em relação a esta, de certo modo preparam e antecipam o seu aparecimento: Bizâncio e Tríptico (estando ligado à direcção desta última). Nemésio tem vinte e dois anos quando aparece a sua primeira contribuição literária para uma destas duas revistas; é um texto com características de prosa poética intitulado “Colóquios” (Bizâncio, nº 1, 1923). Tais circunstâncias parecem situá-lo nos movimentos que conduziram ao chamado Segundo Modernismo, que se afirmará com a geração presencista. No entanto, verifica-se que a sua colaboração na Presença é apenas ocasional. Ocorre no n.º 27 e no n.º 29 (ambos de 1930), onde, três anos depois da fundação da revista em 1927, colabora só com oito poemas. Tudo isto faz com que a posição de Vitorino Nemésio em relação ao Segundo Modernismo seja muito especial.

A razão está sobretudo no facto da sua expressão poética – o que já é detectável nos oito poemas com que colabora na Presença – se orientar para uma maior concentração verbal em torno de metáforas e imagens, que contrasta com as divagantes construções dramáticas, assentes como preceituava João Gaspar Simões em “sentimentos poéticos”, que melhor se adequam ao chamado psicologismo dos presencistas. Nemésio contrapunha uma poesia centrada numa experiência da linguagem e numa experiência da imaginação. Para os presencistas – se recorrermos de novo a um ponto de vista sustentado por Gaspar Simões --, “a poesia é anterior à expressão em que se traduz”, isto é, deriva também de uma experiência, mas esta seminal, que se refere ou reporta à autenticidade e à sinceridade poéticas, de modo que o poeta tem que tomar “contacto com a substância poética da sua alma”. A partir destes pressupostos não será de admirar que Gaspar Simões tenha recorrentemente criticado o estilo metafórico de Nemésio (cf., por exemplo, as críticas aos livros O Bicho Harmonioso e Nem Toda a Noite a Vida in  Crítica II, 1º vol., s. d., pp. 135-152). Assim, embora reconheça que “o domínio próprio da literatura é (…) a imagem e tudo o que directa ou indirectamente se lhe assemelha”, logo adverte que importa “não confundir expressão verbal de valor poético com a essencialidade poética da expressão poética”. Esta nomeada essencialidade não se vai buscar, segundo Gaspar Simões, “às formas verbais, mas à sua estrutura psicológica”, de tal modo que “uma obra poética baseada no jogo metafórico da expressão pode ser desprovida de essencialidade poética”. E considera a seguir o caso de Nemésio, reportando-se, no entanto, a obras suas em prosa: “Vitorino Nemésio demonstrou sempre em toda a sua obra, de O Paço do Milhafre à biografia Isabel de Aragão, uma franca tendência para o estilo metafórico”; isto faz com que se torne no “mais original representante da modernidade gongórica ou gongorizante”, na sequência, como dirá também, de um Sá-Carneiro, de um Luís de Montalvor ou de um Ângelo de Lima. Os dois primeiros estão situados, de pleno direito, no nosso Modernismo. Poderíamos, aliás, falar também de Fernando Pessoa das Impressões do Crepúsculo, da Hora Absurda ou dos Passos da Cruz. Esta situação de Nemésio relativamente a um passado próximo é extremamente importante; há aqui um veículo expressivo condutor a uma poética da modernidade que faz com que a sua obra se desloque daquela outra poética que é a do que poderíamos designar por Segundo Modernismo e que Gaspar Simões, ao lado de José Régio, delineou, tanto mais que a experiência da linguagem através da imagem, da metáfora e do símbolo, a que Gaspar Simões aludiu com reservas, se completa mediante uma experiência da imaginação a que não é alheio um vivo contacto com a literatura francesa, desde um Apollinaire a um Jules Supervielle ou aos surrealistas, o qual mais imediato se torna quando em 1934 parte para a universidade de Montpellier.

No ano seguinte, publica em francês La Voyelle Promise. Num poema aí incluído relativo ao túmulo de Antero de Quental refere “le Sens retrouvé sur ce tombeau mouvant”; e aqui como que se sugere que as palavras que designam a realidade permitem reencontrar o sentido dispersivo dessa realidade que passa, enquanto imagem ou símbolo, a ser uma realidade verbal. Em 1938 publica O Bicho Harmonioso e, em 1940, Eu, Comovido a Oeste. Há depois um hiato de dez anos, e em 1950 sai Festa Redonda. Os livros de 1938 e 1940 – o que será confirmado pelos livros seguintes – servem de base a uma compreensão da poesia que, sem se confundir com a do Modernismo, prolonga todavia uma poética da modernidade assente na valorização da expressividade verbal, a qual foi, como se referiu, subalternizada pelo Segundo Modernismo a favor de uma expressividade subjectiva que se prende à noção de autenticidade, sinceridade ou recusa do célebre “fingimento” pessoano que, por si, marca um sentido de objectividade expressiva que será uma das características dessa modernidade. Nos finais dos anos 40 e a partir dos anos 50, com maiores ou menores desvios, configura-se na evolução da nossa poesia um reencontro com essa poética da modernidade, o que faz com que Nemésio, entre o Modernismo e esta nova tendência, surja como um poeta de fronteira ou, se se preferir, sirva de ponte que passa por cima da poesia e da poética de certo modo intervalares (o que, aliás, não as desvaloriza por o serem) da geração presencista. Nemésio, numa carta dirigida a Régio (publicada por Eugénio Lisboa num artigo saído no JL n.º 183, em 1984), saberá mesmo valorizar devidamente a Presença, apesar da sua obra representar o desvio fundamental que aqui ficou apontado: “a Presença tem sido o único refúgio persistente e capaz de artistas em Portugal, além de que foi o lábaro de um rumo novo”. A poesia posterior de Nemésio, mantendo sempre uma unidade fundamental, assume várias derivas: o recurso às fontes populares, já presente em Festa Redonda e que noutros livros se revela e tem muito a ver com a sua experiência açoriana e brasileira, a referência religiosa (O Pão e a Culpa, 1955), reflexiva ou filosófica, com explícitas sugestões heideggerianas (O Verbo e a Morte, 1959), epistemológica (Limite de Idade, 1972) ou relativa a uma transbordante experiência amorosa e erótica (Caderno de Caligraphia, 2003), retomando sempre a matriz imaginosa da sua poesia em outros livros como, por exemplo, O Cavalo Encantado (1963) ou Canto de Véspera (1966).

Toda a sua obra assenta numa poética explícita, dado que Nemésio a desenvolve no “Prefácio: da Poesia” que antecede Poesia (1935-40), editado em 1961. Eis alguns tópicos fundamentais: há “no poema um mundo concluso e autónomo de configuração e sentido. É a língua que lhe fixa irreversivelmente a órbita que lhe permite entrar na comunicação geral”; “a poesia irmana-se à filosofia e à mística”, a partir de um “ponto de partida noético para uma poesia do Ser” que conduz “à pergunta fundamental: -- Porque é em geral o ente e não antes o nada?”, numa alusão expressa a Heidegger; o Ser (e Nemésio enfatiza a atitude romântica quanto a tal questão) reporta-se “ao transcendente religioso” e a “totalidades ônticas – como Natureza e Passado, Amor e Morte”, e o Nada “cristaliza-se (…) em contra-figuras dessas mesmas entificações”; a poesia, graças a “representações alegóricas e simbólicas” e através de “imagens e de metáforas”, coloca a “realidade (…) entre parêntesis de imagens e metáforas entretecidas com a representação verbal” dessa realidade, isto é, “dos seres e das coisas, flutuando entre o sentido comum e o simbólico”, de modo que a poesia representa a “pluralidade do um uno” tal como ocorre, segundo Nemésio, com o poema Correspondances de Baudelaire. Vendo tal poema como “um dos pretextos capitais da teoria da essência poética, senão o seu fundamento”.

Nemésio firma, assim, uma poética que tudo deve às da modernidade. A publicação da Revista de Portugal (1937-1940), que dirige e onde pela primeira vez publica Eu, Comovido a Oeste, envereda, se tivermos em conta a atenção prestada a Rilke, Heidegger, etc., ou a ensaístas, que vão de Charles du Bos a Marcel Reymond, por um caminho literário ao qual esse sentido de modernidade não é alheio. Acrescente-se que a referida poética – porque uma poética não se reporta apenas à poesia propriamente dita – faz-se sentir igualmente na sua ficção. Ela consta de dois romances (Varanda de Pilatos, 1926, e o já citado Mau Tempo no Canal, que na tradução francesa se intitula Le Serpent Aveugle, expressão esta retirada do último capítulo com fortes ressonâncias simbólicas no seu envolvimento diegético, o que é próprio da narratividade nemesiana) e vários livros de contos e novelas. Há neles um poder evocador e sugestivo que perpassa também pelas suas crónicas e muitos dos seus estudos literários, com destaque para A Mocidade de Alexandre Herculano até à Volta do Exílio (1934). A obra poética encontra-se presentemente recolhida em três livros, os dois primeiros organizados por Fátima Freitas Morna (com desenvolvidas informações biobibliográficas) e o último, que é o Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga, por Luiz Fagundes Duarte. A obra em prosa, como a anterior, encontra-se nas Obras Completas editadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

 

 

Fernando Guimarães