A liberdade na poesia é uma coisa antiga nas tradições populares da maior parte dos povos da Europa, mas a poesia de tendência culta, com os seus textos normativos ou manuais de poética apoquentaram esta liberdade original do verso, e lograram, a pouco e pouco, com que coubesse no que Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Álvaro de Campos – e tantos outros poetas modernistas do mundo –, entendeu como uma prisão: “como se pode sentir nestas gaiolas?”. O verso livre, portanto, surge na realidade como um regresso a uma liberdade original. Este caminho em direcção à liberdade na poesia portuguesa terá começado durante o período do romantismo (como o indica António Coimbra Martins), com o Tratado de Metrificação de Castilho, que Pessoa terá conhecido (segundo julga Fernando Lemos na introdução ao seu livro Fernando Pessoa e a nova métrica), até chegar a revista Orfeu, revista trimestral de literatura, em que o verso livre triunfa definitivamente, com a aparição, no seu primeiro número (1915), da Ode Triunfal e, no segundo, da Ode Marítima, ambos poemas extensos do heterónimo pessoano Álvaro de Campos; e, ainda neste segundo número, Chuva Oblíqua de Fernando Pessoa ortónimo e Manucure de Mário de Sá-Carneiro. De José de Almada Negreiros, outro colaborador importante de Orfeu, apareceu no primeiro número um poema em prosa e ficou no prelo para o terceiro número – nunca aparecido – um largo poema em verso livre intitulado A Cena do ódio.

A designação vers livre aparece em França, na última década do século XIX, entre os poetas simbolistas (Kahn, Régnier, Verhaeren, entre outros), mas não será até bem entrado o século XX que o termo alcança carta de naturalização, após a publicação dos grandes poemas do versilibrismo modernista. Um dos textos mais significativos, pela sua futura influência na discussão do verso livre além fronteiras francesas, foi o “Crise de Vers” (Divagations, 1897) de Stéphane Mallarmé. Fernando Pessoa acompanhou de perto esta discussão, inclusive aquela que se gerou ao redor do grupo imagista entre os intelectuais de língua inglesa, segundo se deduz, um pouco por toda parte, na sua prosa. Entre os textos de Pessoa dedicados ao verso livre podem-se mencionar os apontamentos sobre o “ritmo paragráfico” do heterónimo Álvaro de Campos e os apontamentos do heterónimo Ricardo Reis a propósito da poesia de Alberto Caeiro publicados no livro Poemas Completos de Alberto Caeiro, editado por Teresa Sobral Cunha na editorial Presença, Lisboa, 1994, além de outros tantos textos dispersos nas Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, editados por Georg Rudolph Lind e Jacinto Prado Coelho, na editorial Ática em Lisboa, 1966.

A crítica pessoana tem encontrado, até agora, como antecedente do versilibrismo de Pessoa, em particular o do heterónimo Álvaro de Campos, na poesia de Walt Whitmann. Excluindo a poesia de Campos, pouco se tem explorado o verso livre em Pessoa. António Coimbra Martins distingue o verso dos heterónimos dizendo a propósito dos versilibristas que Caeiro emprega uma “metrificação aproximada” e Campos o “período lírico”. Esta distinção é, não obstante, discutível, principalmente porque Coimbra Martins não toma em conta o verso de William Blake, que comparte com Whitman a mesma importância como antecedente do verso livre pessoano. Esquece o autor que Pessoa muito provavelmente aprendera a escandir versos na escola e em língua inglesa e que a presença deste sistema de metrificação e do ouvido seria difícil de apagar. No caso de Fernando Pessoa, há que ter sempre em conta o que Jorge de Sena comenta no prefácio da sua tradução dos Poemas Ingleses: Álvaro de Campos representa “uma ‘tradução’ da sintaxe britânica.”

De facto, os estudos sobre a metrificação em Fernando Pessoa, escassos como têm sido, pouco têm considerado o influxo da metrificação em língua inglesa. Para o estudo do verso livre de Fernando Pessoa é importante mencionar ainda a existência de uma grande quantidade de apontamentos pessoanos inéditos sobre ritmo e metrificação, conservados no espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa, que permitem observar, precisamente, o “sistema pessoano” de estudo do verso português, baseado nos seus conhecimentos da metrificação inglesa. Alguns destes apontamentos sobre metrificação foram parcialmente publicados por Fernando Lemos no livro acima referido.

 

 

BIBL.: António Coimbra Martins, “De Castilho a Pessoa: Achegas para uma Poética Histórica Portuguesa”, Bulletin des Etudes Portugaises, nouvelle série, t. xxx, 1969, pp. 223-345; Fernando Lemos, Fernando Pessoa e a Nova Métrica: a Imitação de Formas e Metros Líricos Greco-Romanos em Ricardo Reis, Lisboa, Inquérito, 1993; Pauly Ellen Bothe, “Algumas reflexões sobre o ritmo na poesia versilibrista de Fernando Pessoa: Alberto Caeiro e Álvaro de Campos” in A Arca de Pessoa: Novos Ensaios, org. Steffen Dix e Jerónimo Pizarro, ICS, Lisboa, 2007, pp. 243-255.

 

 

 

Pauly Ellen Bothe