Proveniente do léxico militar, no qual significava um pequeno grupo de soldados altamente treinados que ia abrindo o caminho ao exército, em francês, e de acordo com Matei Calinescu, o termo vanguarda desenvolveu um sentido figurativo pelo menos desde o Renascimento. O humanista francês Etienne Pasquier (1529-1615), nas suas Recherches de la France, e num contexto que anuncia a Querela dos Antigos e dos Modernos, refere-se a uma «belle guerre» contra a ignorância, indicando em seguida os nomes daqueles que constituíram a sua «avant-garde». Em todo o caso, na sua acepção moderna, a palavra «vanguarda» está ligada a um tipo específico de guerra, a guerra civil revolucionária, tendo iniciado o seu curso com a Revolução Francesa, já que foi com ela que adquiriu a sua conotação política. Sirva como exemplo um jornal jacobino publicado em 1794, L’Avant-garde de l’armée des Pyrenées orientales, que, para lá do seu círculo militar, se dirigia a uma audiência de «patriotas». O uso romântico do termo em contexto artístico-literário derivou, pois, directamente da linguagem da política revolucionária, o que está patente no diálogo publicado por um dos mais próximos amigos e discípulos de Saint-Simon, Olinde Rodrigues, em 1825, sob o título «L’artiste, le savant et l’industriel’: «C’est nous, artistes, qui vous servirons d’avant-garde; la puissance des arts est en effet la plus immédiate et la plus rapide». Desde este momento, e ao longo do século XIX, o tratamento figurativo da vanguarda artística em termos militares torna-se comum; e nasce a figura das «duas vanguardas», a artística e a política, que por vezes caminham de mãos dadas, e noutras se afastam ou antagonizam.
No campo artístico, usa-se para qualificar um grupo de artistas cujas obras e intervenções se distinguem pelo seu cunho experimental, inovador e transgressivo. Embora certas práticas de vanguarda sejam já reconhecíveis na literatura e nas artes do século XIX, é com o século XX, e no contexto do modernismo entendido como um período literário ou artístico, que as manifestações da vanguarda se tornam sistemáticas e sistémicas, a ponto de um importante teorizador da vanguarda, o alemão Peter Bürger, ter proposto que se reserve para as vanguardas do início do século XX a designação de «vanguardas históricas» (Futurismo, Dada, Surrealismo) e, para as que surgem no pós-Segunda Guerra, a de «neo-vanguardas» (Expressionismo Abstracto, Arte Pop, Fluxus, etc.). No seu livro de referência de 1962, Teoria dell’arte d’avanguardia, Renato Poggioli rastreia uma série de atitudes e práticas oitocentistas que, em seu entender, permitem a sua descrição como vanguardistas, em grande medida unificadas por uma comum rejeição dos valores e da arte massificada da sociedade burguesa. Poggioli indexa toda essa fenomenologia sob quatro categorias fundamentais, definidoras da vanguarda: nihilismo, agonismo, futurismo e decadência. Se a obra de Poggioli consegue recensear e elencar práticas comuns às vanguardas, ela falha porém no que toca à discriminação das características distintivas da vanguarda face, por exemplo, ao modernismo.
É essa a questão que Peter Bürger enfrenta na sua Teoria da Vanguarda, de 1974, uma obra que se situa numa dupla perspectiva disciplinar: a da Teoria Estética, de matriz frankfurtiana, e a da Teoria Literária. A tese central de Bürger é a de que, contrariamente ao modernismo, a vanguarda rejeita a autonomia do estético, considerado, desde Kant, o traço definidor da obra de arte, algo que o esteticismo, no final do século XIX, viria a radicalizar em várias versões da arte pela arte. De acordo com Bürger, esta crítica da autonomia do estético é produzida pela vanguarda por meio de dispositivos como a colagem ou a montagem, na medida em que questionam a integridade e organicidade da obra de arte. Como corolário desta posição, a vanguarda reintegra e funde a arte na vida. Publicado em 1974, o livro de Bürger é, na sua defesa destas posições, de facto um dos grandes livros escritos na esteira de Maio de 68, já que esse evento concentra em si muitas das coisas para as quais reservamos o termo «vanguarda» ou «vanguardismo».
Lido hoje, porém, o livro de Bürger surpreende por uma ausência flagrante: a da performance. De facto, como hoje sabemos, as vanguardas históricas foram movimentos performativos, usando o teatro, a música, a dança, as palavras (manifestos lidos em voz alta, poesia sonora, etc.) para produzir aquele impacto que imediatamente associamos à vanguarda. Das serate futuriste às sessões do Cabaret Voltaire em Zurique, à famosa declaração de Breton segundo a qual o verdadeiro acto surrealista é o que consiste em sair à rua e começar a disparar, ou ainda ao trabalho de Oskar Schlemmer com a Bauhaus – a vanguarda começou e definiu o seu perfil por meio da performance. Bürger, porém, nunca usa a palavra performance no seu livro. A sua aproximação à vanguarda é não só estética como dotada de um grau de abstracção extremo, focado em exclusivo na questão da autonomia da arte e da organicidade da obra – e isto apesar de revelar conhecer, como seria natural num académico alemão dos anos 70, a estética da recepção de Jauss e Iser. Esta ausência é contudo inteiramente normal. De facto, a primeira história da performance moderna, da autoria de RoseLee Goldberg, Performance Art. From Futurism to the Present, foi publicada em 1979, cinco anos após a edição do livro de Bürger. Em 1974, o enorme impacto da performance na arte contemporânea, especialmente desde os anos 60 com o trabalho de Alan Kaprow em Nova Iorque e o do Fluxus na Europa, estava ainda a ser objecto de tradução teórica. Se a ausência da performance é aceitável num livro editado em 1974 na Alemanha, ela não é de todo aceitável hoje, já que a teoria da vanguarda foi de tal modo contaminada pela performance que o quadro teórico e metodológico de Bürger é hoje insustentável. Se tomarmos em conta o critério de Bürger para discriminar modernismo e vanguarda - a recusa da autonomia da arte por esta última -, é fácil concluir que o podemos reforçar se tomarmos em consideração a performance, uma vez que esta é, por definição, o locus crítico das dificuldades relativas à autonomia do estético. A performance é arte reintegrada na praxis; a performance é contaminação sem ansiedade; é expressão mais do que obra; é o aqui e agora da presença física do corpo.
No âmbito periodológico do Modernismo, a vanguarda em Portugal ocorre nos textos de Fernando Pessoa assinados por Álvaro de Campos – as duas grandes Odes, a Marítima e a Triunfal, o Ultimatum –, por Sá-Carneiro (Manucure) e Almada (os manifestos, a Cena do Ódio), na revista Portugal Futurista, logo apreendida pela polícia em 1917, e na sessão no Teatro República, também em 1917. Trata-se de ocorrências de um vanguardismo claramente inspirado pelo futurismo italiano, mas trata-se sobretudo de um espectáculo de um só homem: Almada. Desse ponto de vista, a sessão no Teatro República é inteiramente esclarecedora: Almada dando espectáculo no seu fato-macaco, acompanhado por Santa-Rita, Pessoa assistindo discretamente na plateia. Desta fase heróica da vanguarda portuguesa, convirá reter dois dados essenciais: em primeiro lugar, o facto assinalável de, por um raro momento na sequência moderna iniciada pelo romantismo, a literatura e as artes portuguesas terem estado perfeitamente sintonizadas com a eclosão vanguardista europeia. Em segundo lugar, a clivagem que, de forma mais ou menos nítida, se vai produzindo entre obras e práticas vanguardistas, quase todas atribuíveis a Almada Negreiros — performance pública, de que o grande momento será a sessão no teatro República em 1917, prática continuada do manifesto, antagonismo e agonismo em relação ao público, ao mercado e à arte instituída —, e obras e práticas muito reticentes em relação a qualquer tentativa de contestação do estatuto autonómico da arte, como é sobretudo notório em Pessoa, pese embora a retórica futurista reconhecível em poemas e textos de intervenção do seu heterónimo «modernólatra» Álvaro de Campos. Nos termos do discurso crítico dominante sobre o modernismo português, esta situação foi quase sempre objecto de uma incompreensão radical, para não dizer preconceituosa: a intervenção performativa de Almada foi sistematicamente indexada a factores de ordem psicológica como «o gosto ou vezo do espectáculo», recusando-se assim a diferença específica introduzida pela sua intervenção no quadro do nosso primeiro modernismo. Esta recusa tem uma (boa) razão, seguramente inevitável: o peso e a centralidade esmagadora de Pessoa nas representações do nosso movimento moderno. E assim, o carácter inteiramente textual da obra de Pessoa conduziu à rasura do elemento não-textual na intervenção de Almada, como se este não pudesse deixar de ser sobredeterminado pelas condições de existência artística daquele. O que daqui decorre é um modelo de análise da vanguarda inteiramente textualista e, por isso, inteiramente falhado, quando se trata de confrontar obras e intervenções como a de Almada: ou seja, quando se trata de analisar intervenções realmente vanguardistas como foram as do futurista Almada. Outra forma de o dizer consiste em notar que até hoje as discussões da intervenção futurista de Almada, como as discussões da vanguarda no Orpheu, são de facto debates sobre o modernismo, o que mais evidencia a urgência em mudar o quadro de referência na discussão.
Ou seja, Almada introduz no futurismo português uma dimensão performativa – que passa também pelas suas poses de discóbolo nu em fotos, ou pela sua participação e coreografia de bailados à maneira dos Ballets Russes – que sem ele seria praticamente inexistente. E isto tem consequências: (i) Se aceitarmos a performance como um instrumento para narrar a história do moderno as hierarquias alteram-se. Em Portugal, isso implica questionar a absoluta centralidade de Pessoa nessa narrativa e arranjar nela um lugar muito particular para Almada. (ii) A segunda consequência é epistemológica e tem a ver com a produção dos objectos de conhecimento. Tomar a performance em consideração implica tomar em consideração não apenas textos mas fotografias, filmes, eventos multimédia, etc. – precisamente tudo aquilo com que, até agora, os estudos literários se têm relacionado mal, quando tentam relacionar-se com Almada Negreiros. Ou seja, implica produzir uma total revisão crítica da relação entre aquilo a que chamamos literatura e todos os seus média (e, nos casos posteriores ao modernismo, a literatura visual e digital e todas as formas de multimédia que interagem com textos escritos ou ditos). (ii) A terceira consequência é disciplinar e académica. A performance é um objecto perturbador: ela questiona a ordem disciplinar com que trabalhamos, que é uma ordem moderna, articulando e integrando cuidadosamente método, objecto e a sua economia política. Nesse sentido, a performance traduz-se necessariamente numa ordem transdisciplinar, suscitando rearticulações teóricas e institucionais (e tornando outras obsoletas). O que isto quer dizer é que narrar a história do futurismo em Portugal, como a história da vanguarda pós-futurista, não é um empreendimento para os estudos literários mas para um campo de estudos no qual os estudos literários desempenharão um papel, a par de outras áreas disciplinares. Nesse sentido, a vanguarda futurista exige um revisionismo não apenas crítico ou historiográfico, mas em rigor metodológico e disciplinar. O instrumento desta revisão é o conceito de performance, ou melhor, a releitura da vanguarda à sua luz.
Bibliografia: Bürger, Peter, The Theory of the Avant-Garde (1974), Minneapolis, University of Minnesota Press, 1984; Goldberg, RoseLee, Performance Art: From Futurism to the Present, (1979), Londres, Thames & Hudson, 2001; JACKSON, K. David, As Primeiras Vanguardas em Portugal. Bibliografia e Antologia Crítica, Franckfurt-Madrid, Vervuert-Iberoamericana, 2003.
Osvaldo Silvestre