O n.º 2 da revista Athena abre com um artigo de Pessoa intitulado «Mário de Sá-Carneiro», seguido por «Os Últimos Poemas de Mário de Sá-Carneiro» que é constituído por: (1) “Caranguejola” e “Último Soneto”, poemas retirados do caderno do livro ainda inédito Indícios de Oiro, que Sá-Carneiro tinha enviado a Pessoa passado a limpo no final de 1915; (2) os sonetos “O Fantasma”, “El-Rei” e “Aquele Outro”, que lhe tinham sido enviados em cartas de Paris em 1916; (3) duas quadras que fazem parte de uma outra carta de 1916, datada de 16 de Fevereiro, e a que Pessoa dá o título “Fim”. Este apronto editorial tem uma intenção manifesta, a de prestar homenagem ao amigo malogrado publicando uma antologia dos seus poemas inéditos, fazendo-os anteceder de uma apresentação em que dele constrói uma imagem de génio no sentido romântico, de grande inovador da arte perseguido pelo escárneo dos contemporâneos, no sentido vanguardista, e de vítima trágica da mediocridade moderna num sentido decadentista: «As plebes de todas as classes cobrem, como uma maré morta, as ruínas do que foi grande e os alicerces desertos do que poderia sê-lo» (Crítica, p. 229).

Ora, a escolha de poemas que sucede a este retrato de Sá-Carneiro, desde o seu título até ao alinhamento cronológico deles, e sobretudo a correspondência temática entre o primeiro, “Caranguejola”, e o último, “Fim”, contribui decisivamente para criar uma imagem do seu autor, da qual ele nunca mais, verdadeiramente, se pôde soltar.Detalhe importante, a edição dos poemas do amigo é acompanhada de uma escolha ortográfica e de uma pontuação que altera o texto original, tal como ele pode ser lido no referido caderno dos Indício de Oiro ou nas cartas escritas por Sá-Carneiro a Pessoa, e tal alteração, nomeadamente no caso de Caranguejola, com acrescento de alguns pontos de exclamação e reticências, serve para lhe sublinhar (inutilmente) a expressividade dramática. Mais, o próprio título das duas quadras, “Fim”, é o último traço colocado por Pessoa para desenhar um percurso poético-biográfico completo, que ganha, assim, um suplemento de sentido, tornando-se o artigo de apresentação uma espécie de didascália e formando os poemas uma sequência dramática, em vários tons e momentos. De certo modo, a série poética “Os Últimos Poemas de Mário de Sá-Carneiro” é organizada como o monólogo de uma personagem. Esse é o efeito habitual das antologias, mas tem, neste caso, uma consequência maior: a fixação do mito trágico de Sá-Carneiro.

 

 

Fernando Cabral Martins, O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, Estampa, 1994

 

 

FCM