A relação de Fernando Pessoa com os movimentos de vanguarda que marcaram o cenário europeu nas primeiras décadas do século XX tem como um de seus mais importantes documentos o Ultimatum de Álvaro de Campos, que foi publicado no número único do Portugal Futurista (1917). Afinal, trata-se de um texto cuja estrutura é assumidamente a do manifesto, que caracteriza o Manifesto do Futurismo de Marinetti. Paradoxalmente, apesar de vir a lume numa revista que objetivava ser o principal veículo de divulgação do futurismo em Portugal, o Ultimatum de Álvaro de Campos apresenta elementos que se contrapõem aos princípios do movimento encabeçado pelo poeta italiano. Mesmo a colaboração de Pessoa (Episódios e Ficções do Interlúdio) ou a de Sá-Carneiro (Três poemas), deixa entrever a resistência dos dois importantes nomes do primeiro modernismo português em aderir ao Futurismo, visível nos elementos de raiz simbolista ou decadentista presentes nos poemas com os quais ambos participam do número único da revista.

Se, portanto, a participação dos dois poetas na revista apresenta indícios da adesão crítica e distanciada do Futurismo, como tem sido largamente apontado pela crítica, no caso do poeta do Orpheu, o Ultimatum do heterónimo Álvaro de Campos vem a reforçar essa distância. A começar pelo título dado ao seu manifesto que o liga a um episódio que, nas palavras de Eduardo Lourenço (1978), constituiu o trauma-síntese da cultura portuguesa oitocentista: o Ultimatum inglês de 11 de janeiro de 1890. Ao optar pelo termo “Ultimatum”, Pessoa-Campos acentua o carácter político, já pressuposto ao utilizar a estrutura formal do manifesto, mas, mais que isto, dá ao seu texto uma conotação de violência muito mais vincada. É justamente o tom de violência que caracteriza a parte inicial do Ultimatum de Álvaro de Campos. O uso dos verbos no imperativo, a repetição exaustiva da expressão “Fora!”, o uso intenso do sinal gráfico de exclamação reforçam o tom acusatório que dirige, em primeiro lugar, a vários literatos europeus, que considera ultrapassados (é curioso que não há referência alguma a escritor português), para, em segundo lugar, acusar a classe política de incompetência, citando o nome de vários chefes de Estado, e, em terceiro, dirigir-se às principais nações européias, responsáveis pela falência geral que vê na sociedade e cultura de seu tempo. É apenas neste último grupo que Portugal está presente, como também duas nações do Novo Mundo: Estados Unidos da América e Brasil. É a esse grupo, a quem acusa, portanto, da “Falência dos povos e dos destinos – falência total!”, que Campos-Pessoa projeta toda sua insatisfação e expressa seu desejo de “despejo”. Entretanto, o poeta se interroga: “Onde estão os antigos, as fôrças, os homens, os guias, os guardas?”. Esta interrogação marca o confronto desse presente a ser superado (“Agora a arte é ter ficado Rodin!” / “Agora a política é a degeneração gordurosa da organização da incompetência!”) com representantes do passado “que hoje são só nomes nas lápides!”.

A comparação entre presente e passado, que sinaliza para a inferioridade da sociedade e cultura que lhe são contemporâneas (“Nem uma corrente literária que seja sequer a sombra do romantismo do meio-dia! Nem um impulso militar que tenha sequer o vago cheiro de Austerlitz!”) distancia o Ultimatum de Campos de um dos princípios basilares do futurismo de Marinetti: a ruptura total com o passado. Este afastamento se amplia quando Campos lista entre os que devem passar por baixo do seu “Desprezo” não apenas os “autores de correntes sociais, de correntes literárias, de correntes artísticas”, mas, mais especificamente, “os istas de qualquer ismos”. Pelo fato de o Ultimatum figurar numa revista que pretendia divulgar o Futurismo e, consequentemente, homenagear o fundador do movimento, Leyla Perrone-Moisés (“O Futurismo Saudosista”, p. 18) considera seus termos estranhíssimos, pois parece que “Marinetti aí recebe sua ordem de despejo, junto com a velharia européia que ele desejava despejar”.

Após diagnosticar, portanto, a crise pela qual, na perspectiva do heterónimo, passa a sociedade européia (“Europa-aldeia”), Campos desabafa utilizando a expressão mais “futurista” de seu manifesto: a expressão “Merda”, destacada pelo uso do negrito e de letras garrafais. A partir daí, o tom de seu discurso se altera. Da constatação de que essa “Lilliput-Europa” “quer grandes Poetas, quer grandes Estadistas, quer grandes Generaes!”, Campos anuncia que vai indicar o “Caminho” e passa a “proclamar” o que é necessário para que essa sede de renovação se concretize. Todavia, ao se identificar como a voz capaz de indicar esse caminho, Campos se define como da “Raça de Navegadores”, da “Raça dos Descobridores”. Ou seja, se aproxima de certas características messiânicas presentes na obra pessoana, totalmente opostas à estética futurista, que podemos encontrar em Mensagem, por exemplo. Afinal, do mesmo modo que para o ortônimo Deus elege um português para que a “terra fosse toda uma / Que o mar unisse, já não separasse” (O Infante), é também para Campos a um português que cabe a missão de mostrar o caminho desse “Novo Mundo” a ser descoberto.

O “Caminho” indicado pelo heterônimo parte da diagnose do processo que levou à falência a sociedade européia, o descompasso entre a “sensibilidade”, compreendida como a “fonte de toda a creação civilizada”, que progride de modo constante “por gerações” (progressão aritmética), e as “creações da civilização”, “a cultura, o progresso scientifico, a alteração das condições politicas”, cuja progressão se dá “pela interação e sobreposição da obra de individuos” (progressão geométrica). Coerente com o perfil de engenheiro traçado por Fernando Pessoa para esse heterônimo, Campos se utiliza da linguagem matemática para apontar o descompasso – “a desadaptação da sensibilidade ao meio” – que resultaria na incapacidade criativa que poria em risco a continuidade da civilização humana. A solução apontada no Ultimatum deriva de um ato de “cirurgia sociológica”, capaz de gerar a “adaptação artificial” necessária para que a sociedade voltasse a progredir, evitando assim a morte da civilização. Para isso, reconhece que é preciso eliminar do “psiquismo contemporâneo” a sua “aquisição fixa” mais recente, que contribui para essa desadaptação, resultante de “dogmas do cristianismo”. Identifica, assim, “três preconceitos, dogmas, ou atitudes que o cristianismo fez que se infiltrassem na própria substancia da psique humana” que devem ser eliminados para que a Europa que “tem sede de que se crie, tem fome de Futuro!” possa encontrar o “Caminho” por ele indicado. Propõe, então, a “abolição do dogma da personalidade”, do “preconceito da individualidade” e do “dogma do objectivismo pessoal”, cuja eliminação refletiria, por sua vez, nos três campos da civilização, a saber: a arte, a política e a filosofia.

Se a abolição desses três dogmas poderia sugerir uma adesão a um dos mandamentos futuristas – a proposta da destruição do eu, presente no Manifesto Técnico da Literatura Futurista, publicado por Marinetti em 1912, que de certa forma já está presente no manifesto de 1909 com o uso da primeira pessoal do plural para expressar as onze leis ou regras que regem o movimento que então se anuncia –, Campos certamente põe em xeque essa adesão, já que utiliza, ostensivamente, a primeira pessoa do singular para expedir o seu “Mandado de despejo aos mandarins da Europa!”. Por fim, Campos reconhece que só vê o “Caminho”, mas não sabe o que resultará dessa intervenção. A sua proclamação final é garantir “a vinda da Humanidade dos Engenheiros!”, “de uma Humanidade mathematica, perfeita!”, a vinda do “Super-Homem” que será aquele que for o mais completo, o mais complexo, o mais harmônico. Já foi dito que as características que Campos projeta nesse Super-Homem se adequam ao perfil do próprio Fernando Pessoa, afinal, ele foi um poeta, para muitos, completo, sem dúvida, complexo e que soube de forma harmônica construir uma “coterie inexistente”. Mas, com certeza, mais do que essa proclamação final, o modo como declara anunciar esse “Caminho”, e com o qual termina o seu “Ultimatum” – “Proclamo isto bem alto e bem no auge, na barra do Tejo, de costas para a Europa, braços erguidos, fitando o Atlântico e saudando abstractamente o Infinito” –, reforça, indubitavelmente, a aproximação do manifesto de Campos das ressonâncias saudosistas presentes obra do Pessoa ortônimo. Afinal, a posição que o heterônimo elege para anunciar essa espécie de “Boa Nova” à Europa, de costas para o continente, fitando o Atlântico, parece ser a mesma do poema de abertura de Mensagem, “O dos Castelos”, em que o “rosto com que fita” “o Ocidente, futuro do passado”, é Portugal. É o caráter messiânico que se sobressai, mais uma vez, no final do Ultimatum de Álvaro de Campos.

A crítica pessoana tem apontado que a adesão de Álvaro de Campos ao futurismo se restringe a poucos poemas, como também ao fato de que “esses poemas são tributários de experiências anteriores ao futurismo (como o verso livre de Whitman) ou de projetos pessoais do poeta (como o sensacionismo, descendente declarado do simbolismo e do panteísmo transcendentalista português e, só com muitas ressalvas, parente do futurismo)” (“O Futurismo Saudosista”, p. 21). Aliás, para Fernando Pessoa o Sensacionismo não exclui o passado, ao contrário do Futurismo e de outras correntes literárias, mas “tem por típico admitir as outras todas”. É esse movimento literário e a seus representantes, na perspectiva do poeta do Orpheu,  “bem mais interessantes do que os cubistas e os futuristas” (Páginas Íntimas: 158), movimento, por sua vez, essencialmente português que talvez pudesse dar à Europa a resposta que ela tanto ansiava. Assim, o Ultimatum de Álvaro de Campos, mais do que um texto ligado ao futurismo, deve ser pensado como uma das múltiplas tentativas de Fernando Pessoa para responder aos anseios de seu tempo, interpretando-o com sua perspectiva tão peculiar e lusitana.

 

 

Bibl.: PERRONE-MOISÉS, Leyla, “O Futurismo Saudosista de Fernando Pessoa”, in Actas do IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos. Secção Brasileira. II vol. Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1990; LOURENÇO, Eduardo, O Labirinto da Saudade. Lisboa, Dom Quixote, 1978.

 

 

Aparecida de Fátima Bueno