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Medium
Fernando Pessoa
BNP/E3, 14-2 – 71
BNP/E3, 14-2 – 71
Fernando Pessoa
Identificação
[Sobre a palavra e a voz]

[BNP/E3, 142 – 71]

 

 Há duas expressões humanas de um estado mental – a palavra e a voz. Não há palavras sem voz, mas há voz sem palavras – no grito, no riso, no trauteio – ou seja, o canto sem palavras. Diferem uma da outra estas duas formas de expressão em que a palavra é, essencialmente, a expressão de um pensamento ou ideia, e a simples voz é a expressão de uma emoção. A voz trémula que afirma, afirma como palavras e nega como voz. A ideia e a emoção desencontram-se onde se juntam. Os animais, que são emotivos mas não pensantes têm voz mas não palavra. De alguns animais, como as formigas e as abelhas, se pode talvez dizer que têm palavra mas não têm voz; e com efeito se entendem e manifestam na sua organização social o que parece ser inteligência. São especulações curiosas, que podiam prolongar muito. Não as queremos prolongar senão até aqui, porque até aqui é que nos servem para o nosso argumento. O mais é a mais.

 

A prosa, que é predominantemente expressão de ideias, nasce directamente da palavra. O verso, que é predominantemente expressão de emoções, nasce directamente da voz. Por isso os primeiros versos não eram ditos mas cantados. À expressão de uma ideia chamar-se-á propriamente explicação, porque expor uma ideia é explicá-la; à expressão de uma emoção chamar-se-á propriamente ritmo, porque expor uma emoção é tirar-lhe o pensamento sem lhe tirar a expressão, vocalizá-la sem a dizer.

Como o homem é pensante e emotivo ao mesmo tempo, as duas coisas – salvo em casos puramente animais como o grito, ou puramente artificiais como o trauteio – aparecem-nos juntas.

 

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/4314
Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Teresa Rita Lopes (coord.), Pessoa Inédito, Lisboa, Livros Horizonte, 1993, p. 382.