[19 – 114–131]
- A Poesia Nova
José Régio (x)
Adolfo Casais Monteiro.
Alberto de Serpa.
Marques Matias.
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A Poesia Nova em
Portugal.
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Por poesia nova, no sentido em que aqui tratarei dela, não entendo poesia de jovens – a palavra “novo” opõe-se a “antigo” e[1] não a “velho” –, mas poesia que representa novidade, quer em seu íntimo conteúdo, quer em sua expressão e os modos dela.
Não me ocuparei, pois, dos que, jovens ou não, mas |recém-aparecidos| na[2] publicação, se servem de formas |antigas ou versam, ainda que de um modo novo, temas tradicionais. Por isso não tratarei, por exemplo, dos admiráveis poetas| – que por mal conhecidos bem o mereceriam – que são Marta Mesquita da Câmara e Francisco Costa.
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De um poeta, e dos melhores, que legitimamente figura entre os novos, também não falarei. Trata-se de António Botto. Acerca dele tenho escrito com tal abundância de análise e definição, que me dispenso de repetir aqui, em condensação forçosamente mutilada[3] o que sobre ele já disse extensa, mas, conforme meu uso, condensadamente.
Não tratarei senão dos novos poetas que têm livros publicados; fazer o contrário, além de desorientar o leitor com referências a revistas ou jornais praticamente incháveis, além de dar a este artigo uma extensão que não pretendo que ele tenha, envolver-me-
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ia no risco de várias omissões. Bastam as que porventura eu cometa, involuntariamente é certo, por ignorância de livros de poetas que |legitimamente caibam no género ou espécie que determina a quadratura[4] do meu artigo.|
Para efeitos, pois, do estudo presente, proponho-me considerar, com a brevidade e a concisão que uma análise suficiente consinta, as obras em verso, até hoje publicadas em livro, dos seguintes novos poetas: José Régio, Adolfo Casais Monteiro, Adolfo Rocha, Alberto de Serpa, Marques Matias.
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A ordem porque ponho os nomes é a porque me vão ocorrendo, e por essa ordem, tão boa como qualquer outra, os irei tratando no decurso deste |escrito|. Não implica, nem pretende implicar, uma opinião comparativa dos méritos dos poetas criticados. A todos acho mérito, pois, se o não achasse, os não criticaria. Mas, ainda que fosse teoricamente possível – (e nunca é) –, ou que fosse de bom gosto – (e nunca seria) – estabelecer tal escala ou gradação de méritos, inibir-me-ia |praticamente| de o fazer o estarem, para mim, quase todos esses poetas ainda em período de formação. Se isso torna impossível – e ver-se-á que o
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não tento – definir-lhes absolutamente as personalidades, tornaria muito mais impossível (passe a frase ilógica) o definir-lhas relativamente[5]. Disse eu desses poetas – quase todos; direi, com mais propriedade – todos menos um. Refiro-me a José Régio. Este poeta está, a meu ver, já inteiramente formado e definido, tanto quanto qualquer de nós o está enquanto vive. Esse poeta é, a meu ver, em parte por isso e em parte por simples mérito, o melhor de todos eles.
O caso particular
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de abrir eu a lista com[6] esse poeta representa pois uma excepção no meu critério geral. Considero José Régio, em todos os sentidos, primus inter pares.
|Isto posto|, entro no assunto. Começarei por observações |abstractas|, definidoras do espírito geral do a que chamei “poesia nova”. Feitas elas, e eliminado assim o que de comum têm |entre si| os poetas que citei, poderei, sem repetições inúteis, passar, seriatim, ao estudo concreto de cada um deles[7].
A poesia nova – no sentido em que aqui uso e usarei do termo — pode |designar|-se tal: (1) em virtude do conteúdo; 2) em virtude da forma,
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entendendo-se por “forma”, não o simples ritmo ou estrutura externa, mas o conjunto dos factores cujo produto é a expressão; (3) em virtude de ambas as coisas. Exemplifico. José Régio é “poeta novo” pelo conteúdo de seus poemas; a sua forma não apresenta novidade ou, pelo menos, não a apresenta notável. António Botto é “poeta novo” pela forma ou “maneira” das suas canções; o conteúdo delas é antiquíssimo, pois que existe integralmente[8] nas cantigas do nosso povo. Num caso, poderíamos dizer com justeza, temos um “poeta novo”; no outro um “artista novo da poesia”. Em Adolfo Casais Monteiro conteúdo e forma são, por igual, novidade, se bem que não, um e outro, ainda definidos. Repare-se que não há nisto, involuntariamente sequer, uma comparação de méritos[9]; há tão-somente uma notação de
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diferenças. Não louvo, não censuro: distingo.
Para que, porém, o termo genérico “poesia nova” possa convir por igual a duas espécies |entre si| opostas – pois “conteúdo” e “forma”, como aqui os entendo, são termos em contraste lógico – , força é que elas tenham qualquer elemento geral comum, sem o que seriam, não já espécies, mas géneros, |diferentes|, ou, então[10], espécies de géneros diferentes[11].
Ora não é difícil encontrar esse elemento comum. Consiste ele no individualismo absoluto. Não uso deste termo, bem entendido, em qualquer sentido político ou social, ou sequer filosófico; se bem que necessariamente os poetas e outros artistas e intelectuais novos – o fenómeno é, como seria de supor, comum a todos os
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géneros da vida |espiritual|[12] de hoje – tendem a ser mais atraídos pelos sistemas individualistas em |sociologia| e política do que pelos sistemas que a estes são opostos. E tanto assim é que, à medida em que se têm ido afirmando e acentuando os estados autoritários hoje em moda, nessa[13] mesma medida se têm ido confirmando na sua hostilidade ou afastando, para a indiferença quando não para a oposição, os poetas, os artistas e os intelectuais designáveis de “novos”. Desse aspecto do assunto, porém, não tenho, felizmente, |aqui| que tratar. Repito: uso do termo “individualismo absoluto” no sentido puramente estético, pois é a arte em geral, e uma forma dela em particular, em que me ocupo neste estudo.
Individualismo absoluto, neste sentido especial, significa
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a tendência e tensão do artista para exprimir inteiramente a sua alma, com tudo quanto nela se contém. Assim, queira ou não queira, ele a opõe, em emoção e sua expressão, às almas dos outros, |pois que| não é outro|;| às coisas que não são indivíduos, |visto que| é indivíduo.
Por um ou dois processos, ou por ambos, se obtém, ou se pode ou procura obter, esse resultado. Um é o processo material, o outro o formal, entendendo-se que uso dos termos “matéria” e “forma” no seu sentido filosófico, em que “matéria” significa a substância – corporal, espiritual ou até ideal — de que um ser, um ente, é feito.
O primeiro processo consiste em exprimir intensa e extensamente a alma a si mesma, ou, se se preferir, a emoção à inteligência, a individualidade à consciência. (over)
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Se se efectua|r| esse intento, resulta[14] uma obra, ou uns opera omnia, em que, voluntaria ou involuntariamente, superior a todas as regras, o espírito do artista se afirma distinto do de todos os outros artistas, do de todos os outros homens, se afirma em oposição a |um e a outro|. Se se me objectar que isso em todos os tempos sucedeu aos grandes, aos veros, artistas, e que isso principalmente os fez grandes e veros artistas; que está na essência de serem eles grandes poetas o não se poder[15] confundir Shakespeare com[16] Milton, nem sequer Shelley com[17] Byron; responderei que assim é, como eu, e comigo o restante da população da terra, há muito e abundantemente o sabia. Farei a seguir, porém, dois dos meus tão queridos distinguos.
O primeiro é que, se esses grandes artistas assim[18] faziam, o faziam instintivamente, praticamente, em contradição, muitas vezes, com os seus típicos intuitos racionais, com as suas
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mesmas teorias artísticas. Darei exemplos de um caso e de outro. Teve Milton por intuito o cantar, no Paraíso Perdido, a Queda do Homem, como fonte, |pré-cristã| do Cristianismo; e[19], como ele mesmo diz no intróito, “justificar ao homem {…} de Deus”; teve por intuito escrever a Epopeia do Protestantismo, e portanto, para ele, do Cristianismo. E que fez? Fez um poema, um grande poema, em que a figura mais altiva e nobre – mais épica portanto – é Satã; em que as figuras que mais nos chamam a alma são Adão e Eva, e mormente depois da Queda; em que Deus e os arcanjos fiéis são destituídos de alma e de vida, como se o autor os houvesse posto lá pela única razão que tinha lá que os pôr; em que o que trans-
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parece de cristão aparece[20] a tal ponto expresso através de especulações rabínicas e cabalísticas, que o poema, no pensamento como na emoção, menos se diria escrito por um cristão que por um judeu inconverso que usasse de elementos cristãos como os poetas da Renascença usavam dos do Paganismo. |Só quase dois séculos depois|, quando se descobriu e se imprimiu o manuscrito do Tractatus de Doctrina Christiana – “christiana”, note-se – se compreendeu tudo isso, e sobretudo o que indiquei em último lugar. Milton, em seu foro íntimo, era ariano. Isto é, o homem virtuoso e austero, incapaz de uma subserviência, de uma concessão, de uma hipocrisia; o poeta – austero como o homem e uno[21] com ele – que pretendeu escrever o maior poema cristão, a Epopeia do Protestantismo – esse homem, esse poeta, |esse cristão|, não acreditava na divindade de Cristo! E, como
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não acreditava – ainda que, |o que é possível|, quando escreveu o Paraíso Perdido, a falta de fé lhe não houvesse ainda subido, ou de todo subido, do subconsciente ao consciente – , como não acreditava, digo, foi essa genuína descrença o que realmente deu alma e grandeza ao poema, o que lhe deu individualidade como poema e como expressão de um poeta e de um homem; foi essa sinceridade involuntária que a nós nos deu o vero e o maior de Milton.
Será ainda Milton que nos servirá de exemplo do segundo caso que citei – o da disparidade entre a natureza da obra realizada e a das doutrinas estéticas do |seu| autor. Tinha Milton por mestres |poéticos| os Antigos, e particularmente a Homero. Que há no Paraíso Perdido, poema épico, que Milton devesse à Ilíada ou à Odisseia ou, aliás, a qualquer epopeia ou poema da antiguidade? Por junto, nada.
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Pensamento, imagens, emoções – nada disso lhe ensinaram Homero ou os Antigos, como, aliás, nem os[22] Modernos. O ritmo, tão acentuado em Homero, como em Virgílio, como no Dante – nem isso, supondo que possa deveras aprender-se, lhe poderiam eles ter ensinado, pois o manejo[23] do hexâmetro em nada habilita o mais estudioso dele[24] a descobrir uma técnica do decassílabo branco inglês. O estudo de igual ritmo italiano de nada serviria, tão diferentes são os dois |idiomas|. O mesmo estudo do único mestre de tal ritmo, que houvesse escrito em inglês antes de Milton – esse estudo, ainda, de nada serviria, pois se Milton estudou a rítmica de Shakespeare, concluiu, a fazer juízo pelos resultados, que deveria vazar a própria em moldes que podem dizer-se opostos; e que se nisto, como em tudo mais, alguém o dissesse discípulo fá-lo-ia segundo[25] o preceito clássico do ut lucus a non lucendo.
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A única coisa que há de comum entre a Ilíada e o Paraíso Perdido, é, à parte o serem ambos epopeias, o haver no poema de Milton a estruturação |clássica| da epopeia, que, tal, começou em Homero. Se, porém, se houvessem perdido todas as epopeias da antiguidade, poderia Milton aprender como se deve dispor a fábula num poema épico, pela leitura quando não, pelo exemplo, em Homero e nos outros poetas épicos, por certo, pela lição[26], em Aristóteles, Longino ou qualquer dos retóricos da Antiguidade.
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E, ainda que nem isto houvesse, o mesmo instinto do poeta, se deveras o é, o levaria a compreender, ou a sentir, que qualquer composição deve ter, colocados em seus respectivos lugares, princípio, meio e fim; que as matérias devem ser nela dispostas de sorte que o nexo delas seja inteligível e agradável; que há que haver uma relação de equilíbrio, embora porventura de equilíbrio variável, entre o que é descrição de acção, o que é dialogo, e o com que o poeta inicia, comenta ou acaba. De instinto o poeta de génio – e nem de génio há mister – sente e sabe tudo isto. Com quem aprendeu Homero, ou o primeiro que confabulou uma narrativa em verso? Com a
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mesma pessoa que ensinou a um homem ou mulher do nosso povo a compor, e com êxito,
…cravo roxo,
por lhes haver feito várias dissertações sobre poesia em geral, poesia lírica em particular, e, depois de alguns |excursos| sobre métrica portuguesa e a técnica da quadra heptassilábica, ainda lhes ter explicado em que condições fazer livres, e em que condições rimados, os versos primeiro e terceiro, acabando por lhes descrever o processo, subtil mas difícil, da justaposição |emotiva| de inconexos, pela qual ficam ligados, por um vago, imperceptível fio de sentimento, por um igual e impalpável ritmo emotivo, elementos intelectuais que entre si têm pouca relação, ou, como na quadra citada, relação nenhuma.
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Assim, substancialmente, foi Milton discípulo de Homero.
Nos grandes poetas |clássicos| das línguas vivas dá-se pois, não sempre, mas quase sempre, o fenómeno que exemplifiquei com Milton e Homero. Nos quatro destes poetas que são verdadeiramente de primeira linha – Dante, Shakespeare, Milton e Goethe – dá-se invariavelmente. Os exemplos supremos são, por supremos, representativos, e todos depõem, neste pormenor, em igual sentido. O que se dá com Milton e Homero, dá-se com Dante e Virgílio, seu “duca, signore e maestro”. Goethe assentava a sua vida teórica, ou a sua teoria da vida mental, em um
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principal elemento – a cultura grega. Que deixou de realmente fundamental, que deixou que, por o ser, deveras lhe dá a grandeza? O Fausto, as duas partes do Fausto, onde a desarrumação das matérias, e, na segunda, o abuso de simbolismo e de alegoria, em nada revelam um discípulo dos mestres da ordenação, sobretudo poética, dos temas, e da perspicuidade fluida do pensamento e |da| sua expressão. Declarava Goethe ser clássico, e, em sincera teoria, veramente o era;[27] a sua obra-prima, o Fausto é a obra-prima do romantismo.
[1] e /que\
[2] na /da\
[3] mutilada /(microscópica)\
[4] quadratura /enquadramento\
[5] relativamente /comparativamente\
[6] com /por\
[7] de cada um deles /(dos poemas de cada um deles)\
[8] integral/total\mente
[9] méritos /valor\
[10] então /|alternativamente|\
[11] géneros diferentes /dois diferentes géneros\
[12] |espiritual| /mental\
[13] nessa /em essa\
[14] resulta /resultará\
[15] poder /poderem\
[16] com /e\
[17] com /e\
[18] assim /tal\
[19] |pré-cristã| /pela necessidade da redenção,\ do Cristianismo; e /teve por intuito\
[20] aparece /surge\
[21] uno /aunado\
[22] disso /desses\ lhe ensinaram Homero ou /e\ os Antigos, como /ou\, aliás, nem os /os mesmos\
[23] o manejo /a técnica\
[24] dele/a\
[25] segundo /seguindo\
[26] lição /|doutrina |\
[27] era; /:\