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Medium
Fernando Pessoa
BNP-E3, 19 – 23
BNP-E3, 19 – 23
Fernando Pessoa
Identificação
[Sobre o movimento literário romântico]

[19 – 23]

 

O movimento literário, a que ordinariamente se chama romantismo, contrapôs-se de três maneiras ao classicismo que o precedera. À estreiteza e secura dos processos clássicos substituiu o uso da imaginação, liberta, quanto possível, de outras leis, que não as suas próprias. À mesquinhez especulativa da arte clássica, onde a inteligência aparece apenas como elemento formativo, e nunca como elemento substancial, substituiu a literatura feita com ideias. À clássica subordinação de emoção à inteligência, substituiu, invertendo-a, a subordinação da inteligência à emoção, e do geral ao particular. Os dois primeiros processos representam uma inovação, e uma vigorização da arte; o terceiro é puramente mórbido. O mal do século XIX foi que este 3º elemento †[1] e deixou os outros dois.

Segundo aquele movimento cíclico, que parece ser o de toda a civilização, o romantismo, nos seus dois processos verdadeiramente inovadores, não fez mais que reeditar o helenismo, contra a fórmula clássica, mais latina que grega. Nestes dois pontos, de resto, ele é o continuador daquilo que a Renascença trouxe de novo – mas também de helénico – à literatura da Europa. No que teve de próprio, a substituição da ordem da inteligência e da emoção, o romantismo foi um simples fenómeno de decadência; e foi porque a Renascença não mostrou este terceiro característico, que ele pôde atingir um nível poético mais alto, pois que no Romantismo não há Dante nem Milton, tal a falência construtiva de que o novo sistema vinha inquinado.

No seu desenvolvimento, o romantismo, que nasceu mórbido, esfacelou-se. Desintegrou-se nos seus três elementos componentes, e cada um destes passou a ter uma vida própria, a formar uma corrente separada das outras. Da substituição da imaginação ao escrúpulo imitativo nasceu toda a literatura da Natureza que distinguiu o século passado. Da introdução da especulação na substância da arte nasceu toda a literatura realista e {…}. Da inversão das posições mentais da inteligência e da emoção nasceu todo o movimento decadente, simbolista, e os seguintes.

É claro que estes elementos, embora criassem correntes que podem dizer-se separadas, não estão separados; e a maioria dos cultores das literaturas nascidas dos dois primeiros estão viciados pelo preconceito personalista que é a base mórbida do terceiro.

 

O século vinte encontrou diante de si, herdado do século que o precedeu, um problema fundamental – o da conciliação da Ordem, que é intelectual e impessoal, com as aquisições emotivas e imaginativas dos tempos recentes.

É impossível resolver este problema, como querem os integralistas franceses, pela supressão de um dos seus termos. É igualmente impossível resolvê-lo aceitando a predominância da emoção sobre a razão, porque, aceite essa predominância, desaparece a ordem, e o problema está por resolver. Evidentemente que há só uma solução:

 

[23v]

 

o elevar a personalidade do artista ao abstracto, para que contenha em si mesma a disciplina e a ordem. Assim a ordem será subjectiva e não objectiva.

 

Tornar a imaginação abstracta, tornar a emoção abstracta, é o caminho.

 

Dramatização da emoção. Os homens da Renascença já a tinham; a sua poesia da emoção é impessoal e humanamente universal.

 

Emoção do abstracto.

 

A literatura de fantasia, que irrompeu com os transcendentalistas alemães e supremamente nos dois grandes poemas de Coleridge. Este elemento é de origem medieval.

 

Por dramatização da emoção entendo o despir da emoção de tudo quanto é acidental e pessoal, tornando-a abstracta – humana.

  

 

[1] elemento † /|*manchou alguns depois|\

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2467
Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 148-150.