[BNP/E3, 103 – 2–5]
A Nova Poesia Portuguesa
Sociologicamente Considerada
I.
Ao movimento literário representativo e peculiar da nascente geração portuguesa tem sido feito pela opinião pública o favor de o não compreender. E esse movimento que, sobretudo na poesia, com crescente nitidez acusa a sua individualidade representativa, não tem sido compreendido, porque uma parte do público, a que tem mais de trinta anos, está inadaptalizável por já velha a esse movimento, consta, perante ele, de incompreendedores-natos; a[1] outra parte, por circunstâncias de bacharelosa espécie educativa, ou por descuidada na manutenção espiritual do sentimento de raça, ou ainda por sentimentos de falso entusiasmo gerados pela absorção na intensa e mesquinha vida política nossa, está colocada num estado de pseudo-alma descritível como sendo de incompreendedores-de-ocasião; e porque a outra, restante, aquela de quem são os nossos poetas e literatos e os que os acompanham no obscuro sentimento racial que os guia,
[3r]
não tomou ainda consciência de si como o que é, porquanto, o movimento poético actual ainda embrião quanto a tendências, nebulosa quanto a ideias que de si ou de outras coisas tenha.
Urge que – pondo de parte misticismos de pensamentos e de expressão, úteis apenas para despertar pelo ridículo que a sua obscuridade causa o interesse alegre do inimigo social – com raciocínios e cingentes análises se penetre na compreensão do actual movimento poético português, se pergunte à alma nacional, nele espelhada, o que pretende e a que tende, se ponha em termos de compreensibilidade lógica o valor e a significação sociológicas desse movimento literário e artístico.
II.
Em primeiro lugar, é evidente que aquilo a que se chama uma corrente literária deve de algum modo ser representativo do estado social da época – do país em que aparece. Porque uma corrente literária não é senão o tom especial que de comum têm os escritores de determinado período, e que representa, postas de parte as inevitáveis diferenças[2] individuais, um conceito geral do mundo e da vida, e um modo de exprimir esse conceito, que, por ser comum a esses escritores, deve forçosamente ter raiz no que de comum eles têm – que é a época e o país em que vivem ou a que pertencem[3].
[4r]
E se a literatura é fatalmente a expressão do estado social de um período político, a fortiori o deve ser, adentro da literatura, o género literário que mais de perto cinge, e mais transparentemente cobre o sentimento ou a ideia expressos – e esse género literário é a poesia.
Não é isto, porém, que de momento importa. Saber pela 1iteratura as ideias de uma época só pode ter interesse para a posteridade, que não tem outro meio de a tornar presente ao seu raciocínio. O que nos ocupa é saber se a literatura nos poderá ser um indicador sociológico, se nos pode ser ponteiro para indicar a que horas da civilização estamos, ou, para falar preciso[4], para nos informar do estado de vitalidade e exuberância em que se encontra uma nação ou época, para que, pela literatura simplesmente, possamos prever ou concluir o que espera o país em que essa literatura é actual. E é precisamente isto que a priori se não pode imaginar. |Logo, pois, que neste ponto se analise.|
Desbravemos, porém, o terreno, aclarando alguns termos essenciais, e simplificando, para não sermos longos, as condições da análise projectada.
Por vitalidade de uma nação não se pode entender nem a sua força militar, nem a sua prosperidade comercial, coisas secundárias e por assim dizer físicas nas nações; tem de se entender a sua exuberância d’alma, isto é, a sua capacidade de criar, não já ciências, o que é restrito[5], mas
[5r]
novos moldes, novas ideias gerais, para o movimento civilizacional a que pertence. É por isso que ninguém pensa em comparar a grandeza de Roma à híper-grandeza da Grécia. A Grécia criou uma civilização; Roma a estendeu em cidades e províncias. Temos ruínas romanas e ideias gregas. Roma é uma memória gloriosa. A Grécia vive ainda nas nossas ideias, nos nossos sentimentos; existe ainda, porque ao passo que Roma distribuiu maravilhosamente, ela maravilhosamente criou.
Servir-nos-ão de material para a análise duas nações apenas – a Inglaterra e a França; e isso porque, tendo essas uma unidade nacional, uma continuidade de vida e uma influência sobre a civilização que não são contestáveis, o problema se reduz à análise que desejamos fazer, exclusivamente, e eliminando a necessidade de fazer proceder as considerações sobre cada país, ou de uma análise da ideia de nacionalidade, como envolveria um estudo dum país heteromorfo como a Alemanha, ou de uma matéria diferencial da vida da civilização como implicaria um exame da literatura grega e romana. A escassez do material, porém, importa apenas quando a análise é superficial; ou porque se pour expliquer un brin de paille il faut démonter tout le système de l'univers, |ao rigoroso raciocinador basta, para explicar o universo, analisar profundamente o brin de paille que, como explica o dictum citado, envolve em si o sistema do universo.|
Tomaremos a Inglaterra e a França para material de análise. E tomaremos períodos nítidos, não estados literariamente embrionários, para o nosso estudo.
[1] a /porque\
[2] diferenças /peculiaridades\
[3] a /em\ que pertencem /se integram\
[4] preciso /clareza\
[5] restrito /(mecânico)\