[BNP/E3, 88 – 19–27]
Qual a superioridade do neo-paganismo português, sobre o neo-arabismo?
É tripla. Como português, o neo-paganismo funde as partes sãs dos dois elementos componentes da psique nacional – o elemento pagão do catolicismo, e o elemento nitidez do arabismo, e funde-os através do objectivismo comum. Representa assim a alma nacional nos seus dois elementos. O sensacionismo é puramente árabe. Rejeita o elemento católico, e com ele, o elemento pagão nele contido.
Depois, restringindo-o a ser árabe, o sensacionismo perde força, porque não corresponde à verdade, mas a uma deformação dela.
E perde força sobre a Europa, que não tem elementos árabes, por do arabismo receber apenas o objectivismo portador do espírito helénico.
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A essa corrente chamaram os seus membros “sensacionismo”; se houvessem tido a noção exacta das origens, ter-lhe-iam dado, antes, o nome de |neo-|arabismo, ou qualquer outro com o mesmo sentido histórico.
Nela renasce todo o espírito árabe no que directamente árabe, não como transmissor da ideação grega. O entusiasmo da imaginação, a sensualidade intelectual da meditação e do misticismo, o esmiuçamento de sensações e de ideias – tais características revelam a psique árabe, transportada que seja para o nosso período.
O sensacionismo deriva, superficialmente visto, do chamado “simbolismo” dos franceses. Na verdade, não é assim: acordou ao contacto dele, não derivou dele. Há entre os dois sistemas estéticos diferenças evidentes: as que separam emotivos intelectualizados, quais eram os simbolistas franceses, de intelectuais emotivos, quais são os nossos sensacionistas. E, sobre os simbolistas, têm a vantagem típica do espírito árabe: a universal curiosidade activa, com que aceitam as influências de todas as bandas, lhes aprofundam o sentido, lhes reúnem os resultados e finalmente
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as transformam na substância do seu próprio espírito.
O assunto não merece, talvez, ser longamente tratado; tenta-me pouco, pois não admiro muito os sensacionistas. Reconheço, porém, que são os mais completos artistas portugueses que têm aparecido; que nunca antes de eles apareceu entre nós corrente alguma que tão fundo descesse na alma do nosso povo, na substância árabe da nossa índole |espiritual|.
Um facto, ainda a propósito dos sensacionistas, completará a demonstração. Refiro-me ao agrado em que caíram no Algarve – na parte mais árabe do país. São ali admirados, imitados, discutidos. Outra prova não é precisa para que se demonstre o carácter árabe da sua inspiração portuguesa.
Erraram, porém, em um ponto. Ao arabismo foram buscar o que tem não de largamente humano, mas de estreitamente |endógeno|. Nascidos com a geração que estabeleceu a República, são, no fundo, anti-católicos integrais, desprezando, com o sistema de que nasceram desprezadores, o paganismo substancial,
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sobre que ele assenta, e que é a sua verdade substantiva.
Paralelo, no tempo, a este movimento, oculto e lentamente trabalhando na sombra, o neo-paganismo português utilizou-se de diverso modo das realidades da psique nacional. Rejeitou do arabismo tudo salvo a tradição antiga, que ele incluía. Desprezou assim o monoteísmo comum ao catolicismo e a ele, e com esse monoteísmo o misticismo intelectualmente sensual em que floresce o subjectivismo árabe, sobre que o |seu| monoteísmo assenta. Reservou, do arabismo, só o objectivismo, e com esse, fundindo-o com o paganismo latente no sistema católico, formou novamente a alma helénica |na terra|.
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Os árabes tinham, como se sabe, anteriormente ao endurecimento monoteísta, que sofreram com o maometanismo, uma extensa e complicada mitologia do maravilhoso, um politeísmo colorido e ornamental, onde os génios, e as presenças menores {…} tinham parte predominante. Eram |idólatras| {…}
Este traço peculiar do seu mitismo primitivo permite que meçamos bem o género de espírito que o produziu. Não se trata de um politeísmo, mesmo puramente objectivista, como o dos gregos, nem puramente {…}
Trata-se, sim, de um objectivismo, pois que se trata de uma crença em múltiplas pessoas não-humanas ingerentes nas coisas naturais. Essas presenças não nascem, porém, das coisas naturais, como no verdadeiro politeísmo, que é o grego; não nascem de uma sublimação da humanidade, como nos santos católicos, nascem duma parte das tradições pagãs; nem nascem da
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subjectivização imperfeita dos grandes fenómenos naturais, como no sistema nórdico; tão-pouco do {…}
As pessoas míticas do árabe vivem, por assim dizer, nos interstícios do mundo; são acrescentadas às coisas, nem saindo delas, nem, também, substituindo-as. Tal fenómeno imediatamente reflecte um psiquismo onde as qualidades de imaginação |pre|dominam soberanas, não postergando, porém, as de observação, mas agindo, ao lado delas, fora da relação com elas. O grego imaginava sobre o que observava. O árabe observava, mas à observação acrescentava a imaginação.
A visão do índio deformava a realidade, expandindo-a excessivamente. A visão do europeu nórdico alargava a realidade sem a deformar; antes perturbando-a que deformando-a. A visão do pagão continuava, nos deuses, a realidade. A visão do árabe conservava a realidade e acrescentava-lhe.
Podia assim parecer-se com a do pagão, não sendo na verdade parecida; no que acrescentava à realidade era moldado nela,
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aproximava-se. Quando o que acrescentava à realidade era moldado nela, afastava-se.
O índio é um imaginativo dilatado; o nórdico um imaginativo vago, aumentando as coisas até os seus contornos serem pouco nítidos. O grego era um imaginativo harmónico, não aumentando as coisas para não exceder a harmonia, de que a proporção é essencial, e sendo a relação com as outras coisas uma forma de proporção. O árabe é um imaginativo sucessivo. Parece aplicar à realidade processos fotográficos, em que a diminui ou a aumenta, guardando sempre, porém, as leis do real no seu devaneio.
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A que se deve, porém, esta emergência do espírito árabe?
Notavelmente composta, como vimos, pelo cristismo pagão do catolicismo e pelo elemento árabe, a psique ibérica passa, naturalmente, por vários períodos, definidos consoante varia a relação entre estes dois elementos, seus componentes. Essa relação dá-se, evidentemente, segundo as possibilidades de relação entre si que existem nos dois sistemas religiosos. O cristismo católico sabemos nós o que é. Cumpre, agora, definir o arabismo.
Compõe-se este de dois elementos – o monoteísmo maometano radical e o espírito científico grego, que foi missão do arabismo[1] transmitir à Europa. Como explicar esta combinação?
No espírito árabe existiram, conjuntas, qualidades tão notavelmente derivadas de tipos psíquicos diversos, quais
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o subjectivismo, base do monoteísmo (árabe), e o objectivismo, base do espírito científico (grego), que os árabes trouxeram consigo, e que os tornou exímios nas ciências, tanto de observação como de análise?
Filho de um clima ardente, opressivo, onde o homem mais do em outra parte se sente servo do exterior, o árabe desenvolveu, a par de um subjectivismo ardente, um espírito de obediência ao Destino, um sentimento, não de absorção no divino, como na Índia, mas de absoluta subordinação ao divino. Ardente, e portanto levado à acção violenta tanto como ao sonho excessivo, no próprio sonho o árabe punha intensidade e acção, por parado que esse sonho fosse.
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Levados assim a um conceito da vontade divina como fatalidade, os árabes introduziam no seu monoteísmo um elemento de evidente origem objectivista.
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Combativo, {…} o árabe, a par da subjectividade ardente nada do clima em que vivia, tinha que desenvolver faculdades de observação e de atenção. Assim, a par do subjectivismo se desenvolveu nele um elemento objectivista. Não assumiu uma preponderância, mas bastou, tanto para equilibrar um momento o espírito de excedência do seu subjectivismo, como para abrir os seus olhos para o objectivismo grego.
Como o equilíbrio não era perfeito e a objectividade, por[2] adquirida, secundária, mal passou para a essência da religião árabe, elevou pouco a civilização maometana.
Encontrando-se com o catolicismo da península, facilmente se fundiram os
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espíritos dos dois sistemas. O ponto de fácil relação era o monoteísmo. Não logrando absorver o elemento politeísta, presente nos |“|santos|”|, o maometanismo limitou-se a carregar mais sombriamente o elemento semítico. Passou, assim, para um segundo plano o elemento politeísta e o relativo objectivismo que trazia. De aí, pelo acréscimo do elemento judaico, o fanatismo inquisitorial; |pelo estiolamento do elemento objectivista, a estagnação científica total das populações ibéricas;| pela herança mórbida do fatalismo da decadência árabe, o fatalismo, não determinista, mas {…}, que tem caracterizado os povos da península.
O primeiro período da nossa história comum, de ibéricos, é aquele em que a fusão conserva presentes os dois elementos componentes. Assim, ao conjunto subjectivismo católico-árabe se ligava o objectivismo árabe, sendo o único elemento postergado o
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do politeísmo imanente na parte pagã do cristismo católico. Já o período das descobertas, onde o impulso científico, nado da ingerência árabe, orientou a alma do Infante.
Com o estímulo trazido ao catolicismo judaico da península pela possibilidade da expansão da fé (já antes impulsora do cientismo das descobertas), com o imperialismo reforçado do catolicismo (de sua natureza tão imperialista), cessou o elemento árabe superior de agir, e entrou a decadência. Como foi rápida a passagem do cientismo ao proselitismo imperialista católico-judaico, rápida foi a passagem da glória à decadência, do império à degeneração.
Com a decadência institui-se definitivamente o nosso catolicismo judaico, ao qual acompanha, como elemento árabe, um fatalismo pesado, letal. Era a |concreção| dos elementos inferiores dos dois sistemas componentes da psique ibérica.
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Assim nos fomos arrastando, com ligeiros progressos e uma estagnação geral característica, até que as influências do século dezanove, tendentes a destruir o cristismo começaram, ao entrar connosco, a preparar uma transformação.
Esse movimento confuso deu primeiro verdadeiro sinal de si na Revolução Portuguesa. Não foi esta, a vê-la bem, propriamente republicana. Foi anti-católica. Se olharmos, hoje em 1916, aos seus resultados práticos, veremos que nada foram quanto a transformação política, onde resulta apenas uma substituição partidária; as únicas leis com efeito nítido foram as leis anti-católicas. Não as louvo, porque não promanaram de homens conscientes, nem são mais que fruto de uma atitude negativa. Constato apenas que são elas o que há de típico, de feito, na República Portuguesa.
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Ora este movimento todo dirige-se especialmente contra aquele elemento católico que é essencialmente fanático e opressivo, isto é, contra o elemento monoteísta. Na queda dele vão portanto envolvidos os dois monoteísmos conjuntos – o católico e árabe. Emergem portanto os outros dois elementos formativos da psique ibérica: o politeísmo do Catolicismo e a parte não-monoteísta do espírito árabe.
Ora a parte não-monoteísta do espírito árabe é dupla: é o subjectivismo não-místico mas antes meditativamente analítico; e o objectivismo através do qual os árabes trouxeram o espírito grego até à Europa.
Destes três elementos agora emergentes, um não se liga com outros – é o subjectivismo meditativo, condenado ou a criar-se
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se uma nova espécie de monoteísmo, que concorde consigo, |ou a representar-se metafisicamente por uma {…} objectiva sua!|
Os outros dois elementos – o politeísmo e o cientismo árabe – facilmente se aproximam, porque o seu fundo é comum, sendo o objectivismo. O elemento politeísta, porém, é que absorve o outro. O politeísmo é natural às populações meridionais; é o tipo do puro objectivismo; |e o cientismo árabe não tem aqui a base que tinha, por que nasceu.|
Fundido com o politeísmo regressa à origem verdadeira do objectivismo: reconduz aos deuses da Grécia. Eis a razão porque foi em Portugal que renasceu o paganismo helénico.
[1] arabismo /(dos árabes)\
[2] por /(por assim dizer)\