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Fernando Pessoa
BNP-E3, 88 - 8-10
BNP-E3, 88 - 8-10
Fernando Pessoa
Identificação
Nota à margem de não haver ainda Portugal.

[BNP/E3, 88 – 8–10]

 

Nota à margem de não haver ainda Portugal.

 

Afirmação para substituir um Manifesto.

 

Vimos criar a sensibilidade portuguesa.

Até hoje só tem havido em Portugal a sensibilidade dos outros. Temos vivido por empréstimo a vida europeia. Salvo quando fizemos as descobertas, fomos sempre atrás dos últimos. Urge {…}

 

Lei de Malthus da sensibilidade.

 

Os estímulos da sensibilidade aumentam em proporção geométrica; a própria capacidade de sentir aumenta apenas em progressão aritmética.

Ao princípio, não se distingue bem a distância entre as duas progressões, mas, algum tempo passado, torna-se evidente; tempo depois evidentíssima. Na Renascença ainda no princípio da nossa civilização, existia esta pequena diferença, porquanto a progressão aritmética 2.4.6.8. coincide no seu segundo termo com a progressão geométrica 2.4.8.16.....

É do romantismo para cá que se acentuou deveras com uma nitidez cada vez maior, a distância cavada pela virtude criadora dos números entre as duas progressões. De aí a incapacidade moderna de sentir o que sente. De aí a falência da sensibilidade contemporânea, enquanto não começou a perceber, por intuição aqui pela primeira vez exprimida em Lei, a sua razão aritmológica de ser. Primeiro avançaram os factos políticos para além da capacidade de os sentir; assim se estabeleceu na nossa civilização o princípio democrático quando nenhuma sensibilidade então, nem ainda, está apta a senti-lo. Com a era das máquinas a distância entre os termos de uma e outra progressão acentuou-se dolorosamente.

 

Terapêutica psíquica

 

Que maneira há de aproximar a sensibilidade da rápida multiplicação dos estímulos? Evidentemente que maneira natural, por assim dizer, não há nenhuma. Mas há uma maneira artificial.

Como obter essa artificialização da sensibilidade? Como pode o homem tornar-se, efectivamente, o construtor do seu próprio emotivismo?

Mediante três processos,

(1) a abolição do preconceito da personalidade. Acabemos com a ideia de que cada indivíduo é só ele-próprio. Todos nós coexistimos ao mesmo tempo que existimos. Todos nós somos todos os outros.

 

[8v]

 

(2) A abolição do preconceito da individualidade. Deixemos de aceitar como verdadeira a tese fundamentalmente teológica da indivisibilidade da alma. Somos agregados de células, agrupamentos de psiquismos, de sub-nós, somos inteiramente tudo menos nós-próprios. Submerjamo-nos no mar de nós-próprios, afogados no Universo de lhe pertencermos.

 

(3) A abolição do dogma da continuidade lateral. Não julguemos mais que nós, do presente, somos um laço, um hífen móbil, entre o passado e o futuro. Não somos. Somos sim contínuos mas não como o passado ou com o futuro. A nossa continuidade é toda com o presente – com o presente externo de todas as coisas, e com o presente interno de todas as sensações.

 

Invertamos a ignóbil frase cientista que Bacon trasladou de Hipócrates – a de que a Natureza só se vence obedecendo-a. Só sendo superiores a tudo é que somos os iguais de tudo.

 

A interpretação futurista é uma visão de míopes da sensibilidade. Olham para o lado da Verdade, mas não lhe distinguem a figura.

 

Avisam-se os incautos e os sujeitos à hipnose do estrangeiro que este manifesto é superior, em todos os sentidos, a todos os manifestos simbolistas, cubistas ou futuristas.

 

[9r]

 

(3) Abolição do dogma da continuidade temporal. Supressão de todo o tradicionalismo, assim como de todo o idealismo, eliminando da arte, domicílio da sensibilidade pura, toda a ideia de direcção, incluindo a de direcção estética.

 

Segundo a definição de Ardigò: “a Natureza é a continuidade de uma coisa com todas as outras”.

 

Os processos a seguir são três:

 

(1) O interseccionismo, pelo qual o presente é considerado como lugar de intersecção de sensações várias, e sempre assim considerado. Por o qual o presente é considerado o lugar

 

(2) O vertiginismo, pelo qual cada coisa ou cada momento é a fusão com todas as outras, dinamicamente

 

(3) O sensacionismo, pelo qual todo o presente, todo o momento, toda a sensação, todo o lugar, é uma figuração ao mesmo tempo interseccionada e separada, paralelamente fusão e difusão, de todo, de todos e de si-própria.

 

O primeiro processo é difícil de aplicar em literatura, sendo por isso primordialmente aquele que deverão adoptar os pintores, os escultores (todos quantos agem nas artes visuais).

 

O segundo é eminentemente musical, embora não haja ainda músico que nascesse para ele.

 

O terceiro é exclusivamente literário, englobando os outros e ainda todos os outros que os outros combatem, e todos os processos passados, e todos os processos futuros, e todos os processos que não existem. Engloba os outros como a literatura engloba todas as artes.

 

[9v][1]

 

O vertiginismo e o interseccionismo excluem todas as outras escolas e teorias. O sensacionismo inclui todas, mas, aceitando-as todas, só não aceita de cada uma a pretensão a ser a única.

 

O abstraccionismo, análise dinâmica da Realidade {…}

 

A Natureza não é, como disse Ardigò, “a continuidade de uma coisa com todas as outras”, mas a intra-existência de uma coisa com todas as outras, a coexistência transposta de uma coisa com as outras todas.         

 

O dinamismo, {…} encarando cada coisa, cada {…}

 

[10r]

 

O Dinamismo opera:

(1) quanto à eliminação da Personalidade, pela supressão das emoções puramente pessoais na arte, fazendo assim desaparecer como temas os antigos assuntos ­– amor, pátria, Deus, etc.

(2) quanto à abolição da Individualidade, pela supressão do subjectivismo propriamente dito, dando só aquelas emoções que todos podem sentir,........... (?)[2]

(3) quanto à abolição da continuidade temporal, por uma atenção não ao destino das correntes sociais e intelectuais do tempo em que se vive, nem à sua origem, mas ao mero facto da sua passagem por esse tempo.[3]

Exemplo de um Dinamista: Walt Whitman.

 

O Abstraccionismo opera:

(1) quanto à eliminação da Personalidade, pela supressão de toda a emoção da arte, reduzindo-a a um mero fenómeno intelectual da sensibilidade.

(2) quanto [à abolição da Individualidade], pela {…}

 (3) [quanto à abolição da continuidade temporal,] pela decomposição dos objectos (1) pela visão analítica e não sintética.

 

(Cantar a energia, aonde?)

 

O Sensacionismo opera:

(1) [quanto à eliminação da Personalidade,] pela admissão num mesmo indivíduo de todos os modos de sentir e de pensar possíveis, embora incompatíveis uns com os outros, isto quer simultaneamente sentidos (interseccionismo psíquico), quer sentidos sucessivamente (dinamismo sensacionista), quer sentidos separadamente, como que com almas diversas (polipersonalidade).

(2) [quanto à abolição da Individualidade,] pela eliminação total daqueles interesses políticos e sociais que fazem com que um indivíduo se feche a certos grupos por pertencer a outros; pela eliminação {…}

(3) [quanto à abolição da continuidade temporal,] pela {…}

 

[10v]

 

Proclamo

em segundo lugar

A lei da adaptação artificial

O que é a adaptação artificial? É a transformação violenta da sensibilidade de modo a tornar-se apta a acompanhar a progressão dos estímulos.

Mas uma adaptação artificial tem de ser natural para poder ser adaptação. Em que é portanto artificial, em que é que não chega a sê-lo? A adaptação artificial só pode ser adaptação destruindo aquela parte natural da sensibilidade que representa uma artificialidade natural. Só pode fazer-se destruindo o que a acumulação de séculos torna natural, por uma violenta {…}. Mas tem de mostrar um novo sentido – o fundo permanentemente humano que resta.

A adaptação artificial, para ser natural, tem de destruir aquela parte do natural da sensibilidade, que, por se ter tornado incompatível com a artificialidade natural da época, se torna anti-natural.

A artificialidade natural da época é a artificialidade científica, que é natural, porque é parte da ciência.

 

[9v]

 

Destruiu portanto o natural adquirido que é inimigo da época da ciência.

 

Proclamo, portanto

em terceiro lugar

TERAPÊUTICA

1. Abolição do dogma anti-científico da personalidade.

Conservando, porém, à Personalidade, o seu fundo natural de ser Una. Sejamos múltiplos, mas senhores da nossa multiplicidade.

 

Quem fará isto? Quem criará isto? Que método natural corresponderá a isto. Não sei; sabê-lo-á o que o fizer.

Proclamo, por isso, o Advento do Engenheiro-Redentor!

Proclamo em altos gritos, o Milton da Construção da Sensibilidade!

Proclamo o Paracleto das Sensibilidades Reconstruídas!

A Nova Época quer um novo Cristo! Tem fome de um Novo Deus|

 

 

[1] Os apontamentos manuscritos presentes neste documento são transcritos na sequência do texto presente no documento 88 ­– 10v por se tratarem da continuação desse texto.   

[2] pela supressão do subjectivismo propriamente dito, dando só aquelas emoções que todos podem sentir,........... (?)/substituição das sensações centrifugas às centrípetas, cultura da inconsistência e da actividade dispersadora a própria das massas, não dos indivíduos\

[3] (3) quanto à abolição da continuidade temporal, por uma atenção não ao destino das correntes sociais e intelectuais do tempo em que se vive, nem à sua origem, mas ao mero facto da sua passagem por esse tempo. /A3 – a abdicação de ter quaisquer opiniões ou lirismos pessoais para se entregar de todo às opiniões, assunto e lirismos do seu tempo: assim, no nosso tempo, abdicar de todo das tendências aristocráticas {…} cantar as máquinas,.....\

Rascunho de uma versão preparatória do testemunho impresso assinado por Álvaro de Campos e publicado com o título: «Ultimatum», in Portugal Futurista, nº 1, Lisboa, Novembro de 1917, pp. 30-34.

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2267
Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Publicação parcial: Paula Cristina Costa, As Dimensões Artísticas e Literárias do Projecto Sensacionista, Tese de Mestrado em Literaturas Comparadas Portuguesa e Francesa, Lisboa, FCSH – Universidade Nova de Lisboa, 1990, pp. 318-327.
Publicação integral: Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos, edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, pp. 237-243.