[BNP/E3, 72 – 26–30]
"A Romaria"
Pediu-me António Lopes Ribeiro que escrevesse, para este número literário do Diário de Lisboa, um breve artigo sobre prémios literários. Em princípio, poderia escrevê-lo – um artigo de generalidade. Como, porém, sucede que me foi concedido[1] um dos prémios literários do S. P. N., tudo quanto escrevesse, por teórico e abstracto que fosse, forçosamente seria mal interpretado – ou num sentido, ou noutro, ou porventura em nenhum.
Prefiro, pois, abster-me sem todavia me abster, e assim substituir ao artigo, cujo tema me foi proposto, uma referência sucinta a um dos prémios do Secretariado que, dado, a meu ver justissimamente teve a vantagem de revelar um admirável artista. Refiro-me, como é de supor, ao Padre Vasco Reis e ao seu poema adorável A Romaria.
Em seu paganismo cristianíssimo, em seu sobrenaturalismo humano, esse
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poema é organicamente português.
O poema é cristão no sentido particular do católico e por isso mesmo é pagão. O catolicismo – cujos méritos ou defeitos, sociais ou outros me não proponho[2] examinar – tem a singularidade natural provinda porventura[3] do que nele sobrevive do[4] Império Romano, de ser, ao mesmo tempo que universal, particularizado em cada região onde existe. A Igreja de Roma é como um regímen de municípios morais centralizados num império imponderável. Vasto sistema sincrético, tanto a podemos considerar uma sobrevivência do paganismo – como uma transmutação dele. E em cada país onde essa religião existe, esse paganismo sobrevive, ou se transmuta, de uma maneira peculiar. Nisto se assemelha a Igreja à Ordem Maçónica, ressalvando que nesta não há elementos pagãos.
Entre os portugueses, em quem, em meu entender, a emoção supera a paixão – e é isto,
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creio, o que radicalmente nos distingue dos vários espanhóis –, o catolicismo assume organicamente o que poderemos chamar o aspecto franciscano, que é, por assim dizer, o aspecto essencialmente emotivo do cristianismo católico. Do paganismo latente no catolicismo, não se manifesta em nós o aspecto estético, como diversamente nos italianos e nos espanhóis, nem o aspecto imperial, como diversamente nestes e nos franceses, mas o aspecto dispersivo e fluido, próprio de tudo quanto a emoção conduz. O nosso catolicismo é sem contornos – uma meiguice religiosa, preguiçosamente incerto do em que realmente crê. Por isso o nosso verdadeiro Deus manifesto é, não o Deus uno e trino, ou qualquer das Pessoas da Trindade, mas um Cupido Católico chamado o Menino Jesus. Por isso não curamos
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de Maria Virgem, mas só da Maria Mãe. Por isso os nossos santos autênticos são S. João Baptista menino – isto é, muito antes de ser Baptista – ou um Santo António concebido irremediavelmente como um rapaz muito simpático[5], e cuja função distintiva – a de concertar bilhas – é um milagre-brinquedo. Quanto ao Diabo, nunca um português acreditou nele. A emoção não o permitiria.
O Padre Vasco Reis – a quem Deus fez ser franciscano para fins simbólicos – pertence portuguesmente a este catolicismo amoroso. O seu livro, fortemente concebido e suavemente realizado, vive numa atmosfera de ternura e de luz, como uma Hélade de bruma molhada de sol. Não conheço livro, em prosa ou em verso, que inter-
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prete tão pagãmente, tão cristãmente, a alma religiosa de Portugal. E por trás disso tudo paira fundo contra que o visível se destaca, qualquer coisa de imprecisamente emblemático, de coordenadamente incerto com que se comove, não propriamente a emoção, mas a inteligência. Isso, porém, já não é Portugal: é talento.
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[1] concedido /conferido\
[2] proponho /não tenho que\
[3] porventura /talvez\
[4] sobrevive /vive\ /há\ /resta\ do /de\
[5] um rapaz muito simpático /uma criança, já rapaz grande\