A convicção profunda de Fernando Pessoa de “erguer bem alto o nome de Portugal” alimentou a sua certeza de que tal facto jamais seria possível sem a condução de um chefe iluminado e carismático, rodeado de um escol constituído por homens de inteligência e ética superiores. Por isso, foi criando sucessivas ilusões que viu sempre goradas: acreditou na ditadura de Pimenta de Castro em 1915; reacendeu a esperança com Sidónio Pais e a sua “República Nova” em 1918; empolgou-se com o “movimento das espadas” e confiou no 28 de Maio de 1926. A República pós-revolucionária e o domínio do Partido Republicano Português com a sua classe política, a que apelidou de “Oligarquia das Bestas”, depressa derrubaram o seu entusiasmo. As desilusões que se lhe seguiram, apesar de ter criado uma certa expectativa relativamente ao general Carmona, em quem diz confiar por ter “a mais segura mão de timoneiro que há anos temos tido” (Pessoa Inédito, p. 362) e por ter “mantido uma atitude que é rara em qualquer caso, e raríssima em política – a maleabilidade dentro da dignidade. É um aristocrata da adaptação” (Pessoa Inédito, pp. 362-363). No entanto, a manutenção de Salazar no poder com o beneplácito daquele Presidente da República fazem cair por terra a admiração e a mal fundada esperança que depositava naquele político.

Na verdade, o Presidente-Rei por que tanto esperava não é mais do que uma metáfora da sua ideia política, que transcende as ideologias dos diferentes partidos políticos em que nunca acreditou. O que Pessoa procurava era uma hierarquia do mérito, uma aristocracia da cultura e do espírito. O que poeta queria não era uma “oligarquia das bestas”, mas uma “oligarquia dos melhores” (Obra Poética e em Prosa III, p. 1122). Fernando Pessoa, na sua Nota Biográfica, esclarece inteiramente a sua posição, quando expões a sua ideologia política: “Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver plebiscito entre regímens, votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberal dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário” (Obra Poética e em Prosa III, p. 1428). O que Pessoa, afinal, pretende é a paradoxal conciliação dos contrários, uma síntese entre princípios monárquicos e republicanos – a mesma que o fez ver em Sidónio Pais, um Presidente da República com atributos de Monarca.  Foi, sem dúvida, para provar a possibilidade de harmonização entre dois regimes políticos, aparentemente opostos, que projectou uma Teoria da República Aristocrática. Infelizmente, os documentos, até hoje, encontrados no seu espólio, e que iriam ter lugar neste projectado volume, são escassos, bastante fragmentados e lacunares, mais parecem anotações e rascunhos que propostas de ensaio ou reflexões. Talvez, tivesse mesmo pensado transformar este trecho num capítulo de uma obra mais vasta que intitulou Teoria do Estado Moderno, cujo prefácio se coaduna com os intentos e contexto da República Aristocrática.

Nos prolegómenos teóricos à Teoria da Republica Aristocrática, o autor advoga o princípio de que “de toda a teoria de qualquer modo de organização social exigem-se três cousas: (1) que seja adaptada à ideia de sociedade; (2) que esteja na linha evolutiva da civilização do seu tempo; e (3) que esteja de acordo com o temperamento do povo a que se destina que seja aplicada” (Obra Poética e em Prosa III, p. 1119). Daqui, podemos inferir que Pessoa insiste na questão, pela qual sempre se bateu: uma ideia nacional, independente e, simultaneamente, cosmopolita. Quando a teoria de organização social ignora estes pressupostos, estamos perante um regime que, segundo Pessoa, peca, por um lado, pelo desconhecimento do que é uma sociedade e dos elementos que a constituem – “os indivíduos” –, que “no seu conjunto formam um todo que não é uma mera soma” (Obra Poética e em Prosa III, p. 1120), e, por outro lado, por pretensão em eliminar elementos inerentes à própria sociedade, como a arte e a guerra e “alterar” essa sociedade nos seus fundamentos, em vez de limitar a sua acção ao “papel de mera organização social” (ibidem). Numa outra alínea, que não chegou a dividir em pontos, não esquece de abordar uma temática pela qual tem uma predilecção muito particular: o “princípio de civilização”. Mais adiante, num texto independente deste e também muito lacunar, Pessoa menciona as tendências intelectuais subjacentes à vida social contemporânea e as tendências políticas modernas, para concluir que, no primeiro caso, há uma propensão para a crítica, factor que considera antimonárquico, mas aristocrático; no segundo, assinala um pendor para a disciplina, facto que, a seu ver, caracteriza a democracia. A este propósito, esclarece, num outro escrito, que nada tem contra a democracia, mas que, simplesmente, não acredita nela, porque “o mero facto de haver sociedade inclui o facto aristocrático” (Obra Poética e em Prosa III, p. 1121), para, mais adiante concluir que o seu protesto se deve ao caso de “quererem fazer democracia quando o facto social é absolutamente aristocrático […] Se uma sociedade subsiste, o mero facto de ela subsistir prova que nela se dá o facto aristocrático” (Obra Poética e em Prosa III, p. 1122).

Num artigo de 12 de Setembro de 1928, publicado no Notícias Ilustrado, o poeta caracteriza as três condições que, independentemente, determinam o “fenómeno aristocrático”: a hereditariedade; a inteligência aliada ao melhor senso moral e à mais intensa força de vontade; e a sorte. Destarte, para Pessoa, a aristocracia será um privilégio dos escolhidos, cuja triagem está na mão do património e natureza individuais, assim como do acaso, e que assenta numa forma de liberalismo em que só há lugar para uma “oligarquia dos melhores”. A estas ideias de Fernando Pessoa não são alheios os seus conhecimentos da cultura clássica grega e dos seus filósofos, nomeadamente Platão.

 

 

BIBL.: Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, I, II e III, ed. António Quadros e Dalila Pereira da Costa, Porto, Lello & Irmão, 1986.   

 

 

 

Luísa Medeiros