O Surrealismo chegou tarde a Portugal: mais de duas décadas depois do Primeiro Manifesto Surrealista, de 1924. O primeiro grupo organizado, o Grupo Surrealista de Lisboa, surgiu em 1947, e o segundo, “Os Surrealistas”, resultante de uma dissidência no seio daquele, iniciou a sua actividade dois anos depois.

Os surrealistas portugueses retomam as propostas do grupo francês, que, no período do pós-guerra, se reorganiza, realizando em 1947 uma grande exposição internacional. A filiação nessas propostas não os impede, no entanto, de se inserirem também na tradição moderna portuguesa, sendo, para eles, determinante o exemplo da geração do Primeiro Modernismo, com um tipo de intervenção ( manifestos, publicações, exposições ), muito semelhante à sua. Impõem-se-lhes especialmente nessa geração aqueles que constituem o que Natália Correia chamou o «triângulo ardente dos desbravadores», Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada, juntamente com a figura singularíssima de Raul Leal, já no âmbito de uma segunda leva surrealista nos fins dos anos 50, com o chamado Grupo do “Gelo”. Os surrealistas, no contexto da “geração de 50”, mais propensa à continuidade do que à ruptura, representam, aliás, o mais claro propósito de retomar a tradição de vanguarda iniciada pelo sector mais radical do grupo do Orpheu.

A situação editorial relativamente a Fernando Pessoa e a Mário de Sá-Carneiro na segunda metade dos anos 40 propicia um contacto mais fácil com a obra de um e de outro, uma vez que a Ática dá a público entre 1942 e 1946 uma parte significativa da poesia do ortónimo e volumes dedicados a cada um dos heterónimos, e edita em 1946 as Poesias de Sá-Carneiro. Podem, assim, os surrealistas já estabelecer um paralelo entre estes dois poetas, e equacionar o lugar de um e de outro em relação às suas próprias propostas. Um outro poeta, Cesário Verde, interessará a alguns deles, designadamente àqueles que, como Cesariny e O’Neill, não desligam o surreal de uma reabilitação do real quotidiano, sempre susceptível de uma transfiguração como ensinou o poeta oitocentista.

O lugar de precursor que, por exemplo, um Mário Cesariny e um António Maria Lisboa concedem a Pessoa, não implica que o não olhem criticamente. E lhe prefiram Sá-Carneiro, ou, no caso de Cesariny, também Pascoaes. Quem Cesariny acaba por saudar efusivamente no seu Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos é Sá-Carneiro, o suicida, por ter preferido a «morte» a «isto», uma vida rasa, sem fulgor. E num texto intitulado “Para uma cronologia do surrealismo português”, irá mesmo explicitar as razões dessa saudação, que estende aos seus companheiros de grupo, frisando que não foi a «dispersão do ser» que, nele, lhes interessou, mas sim a sua «recusa de ser» ( «este, aquele, aquilo, isto, ou aqueloutro» ). Ao mesmo tempo destacará as «associações cinéticas [...] prodigiosas» que descobre num poema como “Rodopio”, exemplo maior do desvairo verbal e imagístico que os fascinava em Sá-Carneiro. António Maria Lisboa, por sua vez, numa “Carta aberta ao sr. dr. Adolfo Casais Monteiro”, de 1950, manifestará também de forma clara as suas preferências: «[...] porquê Fernando Pessoa a figura central? [...] Houve centro? e a havê-lo não seria esse Magnífico Sá-Carneiro de que todos se serviram e perante o qual Pessoa perde todas as pessoas porque Sá-Carneiro é o seu assassino? A que distância um do outro: Pessoa, o capacho-confesso, Sá-Carneiro... um Esfinge-Gorda, exacto! Um, um literato,  

fazendo um esforço de QUATRO para não recuperar o meio – fracassando; o outro, excesso do meio».

Não são difíceis de perceber as reservas quanto a Pessoa, da parte de poetas que alimentavam um projecto unitário e sob o signo apaixonado da razão ardente, e aparecendo-lhes ele como o poeta da divisão irremediável, e sem abdicar de uma sua dimensão declaradamente cerebral. Não nos iludamos, porém; pois que a libertação que Pessoa significou, e sobretudo por via do verso livre de Campos, foi muito funda. Nem sem ela poderíamos verdadeiramente entender o alcance dos poemas mais extensos de um Cesariny ou de técnicas como a da enumeração caótica que lhe chegou pela mediação do poeta das grandes odes ou da “Saudação a Walt Whitman”. É também o impulso vitalista que as anima que, em larga medida, inspira o poema Cântico do País Emerso, de 1961, em que Natália Correia celebra, sob uma epígrafe da “Ode Marítima”, o audacioso assalto ao paquete “Santa Maria” pelo Capitão Henrique Galvão. Assim como é impossível não verificar que a poesia de Herberto, sobretudo a dos primeiros livros, se situa, a nível da dicção, do tom, do andamento do verso, na linhagem das grandes odes de Campos, especialmente da “Ode à Noite”.  Todos, afinal, lhe ficaram em dívida, como não deixou de reconhecer, com displicente ironia, O’Neill numa sua “Autocrítica”, de Feira Cabisbaixa, de 1965, em que procede ao levantamento das influências que a crítica lhe foi atribuindo aos longo dos anos, até chegar a Pessoa depois de referências a Tolentino, ao Abade de Jazente, a Cesário, a Nobre e a Junqueiro: «( E em conclusão do megalómano discurso,/ ó prima, um bilhete-postal para o Pessoa,/ a quem devemos todos tanto, a prima inclusive!// Muito querido Pessoa, saberias agora/ que não basta ser lúcido, merda, que não basta/ a gente coser-se com as paredes/ e cercar de grandes muros quem se sonha,/ que não basta dizer basta de provincianos!».

 

 

Bibl.: MARINHO, Maria de Fátima, O Surrealismo em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987; MARTINHO, Fernando J.B., Pessoa e os Surrealistas, Lisboa, Hiena, 1988; VASCONCELOS, Mário Cesariny de, A Intervenção Surrealista, Lisboa, Ulisseia, 1966.

           

 

Fernando J.B. Martinho