O nome de Luís de Camões figura no texto que assinala a primeira intervenção de Pessoa na vida cultural portuguesa e num dos últimos textos que em vida deu a público. No primeiro, A Nova Poesia Portuguesa, que veio a lume, dividido em três partes, na revista A Águia, em 1912, profetiza ele o surgimento para breve de um Grande Poeta que «deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões.» A designação que adopta para se referir a esse Poeta cuja iminente chegada anuncia, Supra-Camões, não deixa de lhe parecer «humilde e acanhada», pois a «analogia» a que recorreu imporia antes um outro nome, como, por exemplo, o de Shakespeare. Relativamente ao Poeta que iria destronar Camões do lugar cimeiro do cânone literário português, há hoje um consenso mais ou menos generalizado entre os pessoanos de que era a si mesmo que Pessoa, afinal, tinha em mente quando ousava ver, no futuro próximo, o autor de Os Lusíadas relegado para um modesto plano secundário. No segundo texto, publicado no n.º 3 da revista Sudoeste, de Novembro de 1935, e subscrito por Álvaro de Campos, “Nota ao acaso”, Camões é, por sua vez, apresentado como exemplo do «poeta inferior» no que respeita à «sinceridade intelectual», a sinceridade, sublinha-se, que verdadeiramete «importa no poeta»: «Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode ser sincero na emoção: que importa, se o não é na poesia? Há poetas que atiram com o que sentem para o verso: nunca verificaram que o não sentiram. Chora Camões a perda da alma sua gentil: e afinal, quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas – tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida.»
Alguns anos antes, numa extensa carta dirigida a João Gaspar Simões, em 11 de Dezembro de 1931, Pessoa já tivera oportunidade de, a propósito de admirações e influências e das diferenças entre umas e outras, definir o seu posicionamento em relação ao Camões épico e ao Camões lírico e de, ao mesmo tempo, chamar a atenção para as suas primeiras referências culturais, as que a educação britânica na África do Sul lhe dera: «Uma grande admiração não implica uma grande influência, ou, até, qualquer influência. Tenho uma grande admiração por Camões (o épico, não o lírico), mas não sei de elemento algum camoniano que tenha tido influência em mim, influenciável como sou. E isto por uma razão precisamente igual à que explica a não influência de Pessanha sobre Sá-Carneiro. É que o que Camões me poderia ensinar, já me fora ensinado por outros» (C II 257). Mesmo o elogio que faz ao Camões épico será um pouco mais à frente atenuado, pondo-o em confronto com o Milton lido na juventude: «[...] a construção e amplitude do poema épico, tem-nas Milton ( que li antes de ter lido Os Lusíadas ), em maior grau que Camões» (Correspondência II, p. 258).
As restrições a Camões, mesmo ao que, em princípio, seria mais do seu agrado, são, aliás, uma constante em Fernando Pessoa, como se podia ver por um depoimento ao Diário de Lisboa nos princípios de 1924, destinado a uma página de homenagem ao poeta: «Resta dizer, de Camões, que não chegou para o que foi. Grande como é, não passou do esboço de si próprio. Os sobre-homens da nossa glória constelada – o Infante e Albuquerque mais que todos – não cabem no que ele podia abarcar. A epopeia que Camões escreveu pede que aguardemos a epopeia que ele não pôde escrever. A maior coisa nele é o não ser grande bastante para os semi-deuses que celebrou» (Crítica, p. 216). Dez anos antes, em resposta a um inquérito do jornal Répública sobre «o mais belo livro português dos últimos trinta anos», não perdera a ocasião de apoucar Camões, indo ao ponto de situar Os Lusíadas num honrado «segundo lugar» relativamente a um livro, a Pátria de Junqueiro, que hoje em dia só por obrigação historiográfica se lê: «[...] chamo a atenção das pessoas criticamente competentes [...] para o facto de que a Pátria de Junqueiro é, não só a maior obra dos últimos trinta anos, mas a obra capital do que há até agora de nossa literatura. Os Lusíadas ocupam honradamente o segundo lugar» (Crítica, p. 93).
Estamos, pois, em crer que, desde cedo, Pessoa tem a percepção de que Camões é o grande obstáculo que atravanca o seu caminho e que há que desalojar para que ele possa ocupar o lugar que a consciência da sua grandeza lhe deixa antever. Tal como outros poetas que, mais tarde, padecerão, em relação a ele, do mesmo tipo de angústia, invocará outros nomes, no seu caso, os da tradição literária com que antes se familiarizou, a inglesa, para diminuir a estatura de Camões. Não pode, assim, deixar de ser notada a rasura a que procedeu do nome de Luís de Camões na Mensagem, um livro a pôr inevitavelmente em confronto com Os Lusíadas, quando aí se não esquece de celebrar outros escritores, como D. Dinis e Vieira, este último guindado à «glória» de «Imperador da língua portuguesa». Seja como for, Pessoa não pretendeu, com a Mensagem, escrever a epopeia que teríamos de aguardar por Camões não ter sido, supostamente, capaz de, no seu tempo, a escrever, conforme diz no depoimento vindo a público em 1924 no Diário de Lisboa. A sua imensa cultura literária impedia-o, certamente, de acreditar em tal possibilidade. O seu propósito, na única obra poética em língua portuguesa que deu a lume em vida, seria antes realizar «a fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática, em algo para além de todas», a que se refere no Essay on Initiation (Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, p. 70). Uma coisa não oferece dúvidas, independentemente da perspectiva por que se encare, a nível da forma do conteúdo, o poema muito especial que a Mensagem é: nele, na sua rigorosa arquitectura, pôs Pessoa o melhor de si, e não será fácil encontrar em toda a sua obra textos em que mais longe tenha levado a sua ânsia de perfeição formal. Por aí terá aspirado a rivalizar com o paradigma que Camões representaria. Mas ele sabia bem que o esforço de superar Camões envolvia muito mais do que isso e aí apostava seguramente em toda aquela literatura com que, de alguma forma, procurou responder à constatação que um dia fez através das seguintes palavras: «Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura?»
Bibl.: Belchior, Maria de Lourdes, “Fernando Pessoa e Luís de Camões: Heróis e Mitos n’Os Lusíadas e na Mensagem”, Persona, nº 5, Abril de 1981, pp. 3-8; Coelho, Jacinto do Prado, “D’Os Lusíadas à Mensagem”, Camões e Pessoa: Poetas da Utopia, Mem Martins, Europa-América, 1983, pp.105-110.
Fernando J.B. Martinho