Dirigida por Almada Negreiros e editada por Dario Martins, a revista Sudoeste teve três números, publicados em Lisboa entre Junho e Novembro de 1935. Além destes, como assinala Nuno Júdice no prefácio à edição facsimilada (Lisboa, Contexto Editora, 1982), esteve projectado um quarto número, com colaboração de Pardal Monteiro, Raul Leal, Fernando Amado, Almada, António Pedro, António Madeira, E. Pinto da Cunha, Cecília Meireles, Edmundo de Bettencourt, Luís de Montalvor, Alfredo Guisado e António de Sousa, e incluindo uma carta de Fernando Pessoa a José Osório de Oliveira.

Os dois primeiros números de Sudoeste apresentavam-se como “Cadernos de Almada Negreiros” e eram exclusivamente preenchidos por textos do autor de Deseja-se Mulher. Na capa e na folha de rosto do terceiro número já não figurava o subtítulo, e o volume expressava uma nova concepção, mais conforme com o “modelo habitual de uma ‘revista literária’” (prefácio à edição facsimilada, p. VI), reunindo colaboração de quase uma vintena de artistas. Ainda segundo Nuno Júdice, Sudoeste representou “uma plataforma de (re)lançamento das propostas estéticas comuns à “velha” e à “nova” gerações : a de ”Orpheu” (1915), a da “Presença” (1927)” (p. V), vinte anos volvidos sobre o lançamento de Orpheu e um pouco menos de dez sobre o de Presença. Esse encontro de gerações, porém, apenas se corporiza no terceiro e último número. Almada anuncia no nº 2: “Com o SW nº 2 cessam os meus cadernos pessoais. SW nº 3 inicia a revista de colaboração. São seus colaboradores os da extinta revista “Orpheu” e os da actual “Presença”, de Coimbra. É com orgulho que SW faz esta homenagem aos colaboradores de “Orpheu” e da “Presença”, os quais por representarem a mais constante posição da Arte em Portugal, formam o verdadeiro sentido que se prosegue (sic) em SW” (“Vistas do SW”, nº 2, p. 4).

Os textos de índole ensaística publicados por Almada nos dois primeiros números da revista decorrem essencialmente da preocupação de analisar e compreender, num contexto histórico marcado pela ascensão e pelo triunfo dos regimes nacionalistas e ditatoriais (Mussolini, Hitler, Salazar), mas a contra-corrente de alguns princípios basilares desses regimes, o momento cultural, social e político europeu e, dentro dele, o caso português. Assim, o nº 1 abre com o ensaio “Portugal no mapa da Europa”, que procura situar Portugal em termos civilizacionais, lembrando que “uma nacionalidade necessita de abranger no seu conjunto único, a maior diversidade de caracteres humanos” (p. 3) e que  depende muito menos da “raça de sangue” do que da civilização (ou civilizações) em que entronca. Logo depois, o texto “As 5 unidades de Portugal” explicita uma ideia de nacionalidade assente em factores como a unidade individual (“a pessoa humana portuguesa”), a unidade colectiva, a unidade peninsular ibérica, a unidade europeia e a unidade universal. Segue-se um dos mais conhecidos textos de Sudoeste, “Civilização e Cultura”, em que Almada define a civilização como “um fenómeno colectivo” e a cultura como “um fenómeno individual”:

“Uma mesa cheia de feijões.

O gesto de os juntar num montão unico. E o gesto de os separar, um por um, do dito montão.

O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo do que o segundo.

Se em vez da mesa fosse um territorio em logar de feijões estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão unico é trabalho menos complicado do que o de personalisar cada uma delas.

O primeiro gesto, o de reunir, aúnar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território, é o processo da CIVILISAÇÃO.

O segundo gesto, o de personalisar cada ser que pertence a uma civilisação é o processo da CULTURA.

(...) Justaposição disto mesmo a Portugal: uma civilisação sem cultura.

As excepções, inclusive as geniaes, não fazem senão confirma-lo” (p. 6).

Outros ensaios merecem destaque, ainda no nº 1: “Portugal oferece-nos o aspecto de”, onde Almada retoma a análise do problema cultural português; “Arte e Política”, onde rejeita, ao arrepio das ideologias dominantes, a hipótese de uma “colaboração espiritual” entre arte e política (“Arte e Politica não estão feitas para colaborar uma com a outra”, p. 11) e desmonta com desembaraço a lógica da “côrte que a politica faz à arte”, exemplificando com o caso de Mussolini (“A arte, para nós”, diz Mussolini,” é uma necessidade primordial e essencial da vida (...). Fala o politico, o maquiavélico”, p.13); o extenso texto “Prometheu - Ensaio espiritual da Europa”, onde se debruça sobre a revivescência do mito de Prometeu nos séculos XIX e XX; e finalmente o ensaio intitulado “Mística colectiva”, no qual expõe uma peculiar concepção acerca dos nacionalismos, surgidos sobre o pano de fundo de uma tomada de consciência e de uma responsabilização europeias. Neste último ensaio, Almada interpreta a emergência dos vários regimes europeus (“fascismo, comunismo, hitlerianismo”) como forma de afirmação do perfil de cada nacionalidade e de resolução do caso particular de cada povo, no regresso a uma “mística colectiva” que ressuscita os respectivos heróis ancestrais e os actualiza nos chefes presentes (“A mística colectiva crê no chefe presente como crê no Deus seu privativo”, p. 31). O texto suscitou reacções contraditórias junto  dos leitores e na imprensa da época, reacções essas às quais Almada responde no nº 2, frisando que com ele pretendeu apenas “fotografar a actualidade” (nº 2, p. 6), fazer a “síntese do gráfico mental” contemporâneo, e de modo nenhum ser apologético ou apresentar soluções. “(...) Aconteceu, porém, que a minha fotografia era claro-escuro como qualquer fotografia, contudo, uns viram-na azul, outros vermelha, outros amarela, etc., conforme a cor que cabe dentro do gostar de cada qual”, escreve em “Vistas do SW” (ibid.).

Além deste texto introdutório, no qual Almada faz o balanço da recepção crítica do primeiro número da revista e retoma o problema da arte em Portugal, o nº 2 de Sudoeste inclui um ensaio sobre cinema e teatro, intitulado “O cinema é uma coisa e o teatro outra - Palestra pelas Emissora Nacional com vários comentários intercalados posteriormente”. O autor caracteriza aquelas duas formas de expressão artística, mostrando como no momento em que escreve a linguagem cénica ainda influencia a cinematográfica  (“O teatro tem uma ascendência sobre si mesmo que o cinema apenas agora inicia. Era pois forçoso que o teatro emprestasse ao cinema”, p. 18), mas enaltecendo a novidade da sétima arte (“Pela primeira vez na história da humanidade vimos à transparência a fiel reprodução em movimento da imagem real!”, p. 15) e destacando a sua função sociocultural (“O Cinema já é hoje a melhor imprensa universal que existiu. O papel do Cinema é o de jornal do mundo”, p. 16).

Este número 2 de Sudoeste dava à estampa, em extratexto, dois desenhos de Almada (“O céu” e um nu feminino), que foram suprimidos pela Censura. Nele figura, também, o segundo acto da peça S.O.S., anteriormente lido no final de uma conferência na Associação Académica de Coimbra. Nesse texto dramático, Almada põe em confronto o indivíduo e o movimento colectivo que o domina e sujeita: a acção é concebida de modo a ilustrar a aniquilação do indivíduo (das suas escolhas e opiniões, da sua “verdade” própria) pelas forças ideológicas que vão alternando no poder, num jogo caricatural que o dramaturgo conduz até um ponto de impasse:

“O ÁRBITRO

(avançando até ao mais perto que possa do público)

Respeitável público. Minhas senhoras e meus senhores. Este quadro ainda não acabou. Fui eu quem mandou parar. Porque esta cena nunca mais tem fim. Podíamos estar aqui toda a vida e a única coisa que mudava era a cor daquela bandeira. De modo que esta obra que aqui está a representar-se não pode sair do mesmo sítio. Sinto muitíssimo ter que dar esta desagradável notícia a V. Exªas. Mas, como árbitro, não posso deixar de participar-lhes  que é inteiramente impossível seguir com esta peça para diante. Passa-se aqui exactamente o mesmo que nos discos de gramofone, quando a agulha não pode continuar o seu caminho na espiral porque ficou encalhada na mesma volta e repete sempre a mesma coisa.

(Todos os personagens que estão em cena com as máscaras postas dizem alternadamente conforme as suas cores) - Direita! - Esquerda! - Direita! - Esquerda! - Direita! - Esquerda!...

(O árbitro apita e faz-se silêncio) (...)” (p. 43).

O nº 3 de Sudoeste é o mais significativo do ponto de vista histórico-literário, na medida em que reúne colaboração, na sua grande maioria   inédita, de autores órficos e presencistas. Nele encontramos poemas ou  textos em prosa de Ângelo de Lima, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Luís de Montalvor, Alfredo Guisado, Álvaro de Campos, Raul Leal, Almada Negreiros, José Régio, Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar Simões, Saúl Dias, Hein Semke, Carlos Queiroz, Carlos Ramos, Pardal Monteiro e Mário Saa. São peças essenciais neste número, funcionando como “separadores”, o texto de Fernando Pessoa “Nós os de ‘Orpheu’” e o de João Gaspar Simões “Nós ‘A Presença’”. No primeiro, Pessoa explica que procurou compilar, juntamente com Almada, “produções inéditas de quantos figuraram literariamente na revista extinta e inextinguível” a que ambos estiveram ligados, e justifica a ausência, por razões diversas, de colaboração de Ronald de Carvalho, Eduardo Guimarães, Cortes Rodrigues, José Pacheco e Santa-Rita Pintor. Reconstitui assim o elenco dos artistas órficos, rematando o seu texto com a conhecida síntese: “Orpheu acabou. Orpheu continua”. O texto de Gaspar Simões tem um escopo mais ensaístico, fazendo sobressair as diferenças entre a geração de Orpheu e a da Presença. Para o crítico presencista, Orpheu foi um agrupamento de “individualidades com pontos de contacto entre si” e que “depois dele subsistiram como individualidades”, enquanto Presença (à data com nove anos de existência) seria uma espécie de “pessoa moral”, “autónoma em face das individualidades que a constituem”, com um “pensamento literário” próprio e uma estética bem definida - a defesa da “independência total da arte em face dos interesses humanos de condição social e política, que ela pressupõe mas não serve”. A concluir, e a reforçar este seu ponto de vista, João Gaspar Simões chama a atenção para a diferença entre o  título escolhido por Pessoa e o que ele próprio elegeu: “(...) Eis porque se não pode escrever com propriedade “Nós, os da Presença”, como, com propriedade, Fernando Pessoa escreveu “Nós, os do Orpheu”, mas só com propriedade se poderá escrever, como escrevi, “Nós, a Presença”” (p. 22).

 

Bibl.: Dutra Faria, “SW. Sudoeste - Europa-Portugal”, in Fradique, Lisboa, nº 73, 1935; Nuno Júdice, “’Sudoeste’: direcção plural”, prefácio a Sudoeste, edição facsimilada, Lisboa, Contexto Editora, 1982, pp. V-VII; Daniel Pires, Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1900-1940), Lisboa, Grifo, 1996.  

 

Clara Rocha