(1897-1990)
Philippe Soupault, escritor francês, foi autor, com André Breton, de Les Champs Magnétiques (1920) que, seguindo os princípios da escrita automática, inaugura a aventura surrealista. Publicou poesia, romance, ensaios sobre literatura, arte e cinema, assim como textos autobiográficos. Da burguesia, que a sua família representava, diz Soupault: «Tenho um desprezo profundo por esta classe da sociedade e é com prazer que assisto à sua lenta decomposição, lenta demais segundo me parece.» (Jornal do Comércio, 16-17/08/1959). Em 1917 conhece Breton e Aragon; juntos fundam em 1919 a revista Littérature, difusora do movimento Dada, sendo depois um dos principais fundadores do Surrealismo. Em 1922 é retratado por Robert Delaunay. Em 1923 vem a Portugal acompanhado pela segunda mulher. Entre 1923 e 1930 dirige La Revue Européenne, em que veio a colaborar Valery Larbaud, um dos homens que Soupault mais admirava. Em 1926 é excluído do movimento surrealista por Breton; lança-se no jornalismo, viaja, faz reportagens e crónicas.
Carte Postale, poema em prosa, publica-se em Julho de 1926 com a chancela das Éditions des Cahiers Libres. É a evocação de Lisboa em dois dias. Sobre a data da visita não há certezas; o texto, porém, revela uma primavera do Sul, da madrugada à tarde — quando «erguida pelo sol, uma lassidão [se escapa] de todas as casas, das docas e das ruas» — e à noite: «Mal fecho os olhos o vento suave, o calor claro, o cheiro das tílias ensinam-me que estou longe». Seria antes do 28 de Maio de 1926. Em ditadura militar não ouviria Soupault a confissão de um conspirador monárquico, ou o frequentador da cervejaria que «fala do Presidente da República sem respeito». Do mesmo modo não lhe seria fácil encontrar, numa «noite azul por causa do calor», um silêncio que se interrompe pelo «ruído dos aplausos ou a tempestade dos risos» num teatro. Uma parte do texto é retomada nos romances Le Cœur d'Or (Março de 1927) e Le Nègre (Setembro de 1927), cujo protagonista, Edgar Manning — o negro que em Barcelona assassinou a prostituta Europa — vem refugiar-se em Lisboa, na Rua Coelho da Rocha, onde Fernando Pessoa vivia. Oblíquas afinidades. Na Carte Postale, Soupault cruza caminhos de Álvaro de Campos e Bernardo Soares: a estação do Rossio e a praça (onde o monumento a D. Pedro IV é lembrado como «estátua equestre», imagem certamente sobreposta à da estátua de D. José no Terreiro do Paço), o mercado da Praça da Figueira, os eléctricos, as ruas da Baixa, os bairros à beira-rio, o porto com barcas à vela e de onde partem os vapores. No mesmo cenário «soa no acaso do rio um apito, só um. / Treme já todo o chão do meu psiquismo» (Álvaro de Campos, Ode Marítima) ou, dez anos depois, «Todas as sereias do porto uivam, chamam», «Estou à espera de todos os pensamentos que, não tarda, me vão abordar» (Soupault). As notas nocturnas da Carte Postale podem também evocar O Sentimento dum Ocidental de Cesário Verde: a deambulação pelas ruas, as mulheres de trabalho que surgem em grandes grupos ao crepúsculo, o anoitecer, o tanger dos sinos, as portas que rangem, as podridões, a ânsia de um cais para partir. Soupault dirigiu a Radio Tunis de 1937 a 1940, data em que foi preso pelos apoiantes do regime de Vichy. Evadiu-se para Argel. A partir de 1942 volta a viajar por todo o mundo.
Quando, em 1958, visita Portugal, é com o escritor Pedro de Moura e Sá que vem a conhecer mais profundamente «a alma e o espírito» de Lisboa, que «amava por instinto, quase como um cego». Regressa no ano seguinte e dá uma entrevista ao Jornal do Comércio (16-17/08/1959). Declara: «Como sei Latim, não me é difícil ler o Português. […] Conheço a literatura de Portugal desde o admirável épico quinhentista, Camões, até ao grande romancista Eça de Queirós e a Ferreira de Castro. E conheço também, como devoto praticante da poesia, os poetas modernos portugueses que muito me atraem pela sua excepcional inspiração e qualidade literária. Fernando Pessoa é já muito admirado em França.» E revela: «Certo escritor português disse-me um dia: "Desde as grandes Descobertas estamos desempregados historicamente".» Em 1914, Álvaro de Campos escrevia no Opiário: «Pertenço a um género de portugueses / Que depois de estar a Índia descoberta / Ficaram sem trabalho.» Esta é a primeira referência conhecida ao encontro, em meados da década de 1920, de Philippe Soupault com Fernando Pessoa. No ano de 1980 é publicado em Paris, pela Belfond, o livro Vingt Mille et Un Jours. Entretiens avec Serge Fauchereau. Aí, Soupault confirma ter conhecido Pessoa e fala dele como um ser torturado. O seu drama seria encontrar-se dividido entre a educação inglesa na África do Sul e o que veio encontrar quando chegou a Lisboa, com 17 anos. Pessoa ter-se-ia sentido «rejeitado por um mundo diferente, mas ao qual pertencia», quase exilado naquele que era o seu país, falando a sua língua. Porém Soupault, considerando-se «conformista», afirma que Pessoa foi, ainda assim, mais livre que ele: «Porque se revoltava.» E recorda o encontro com o poeta português: «Ah, Pessoa! Que homem torturado, que infeliz! No entanto, lembro-me de o ver rir uma vez. Foi quando brincou comigo por eu gostar muito de Porto branco. Como sabe, no estrangeiro toma-se Porto tinto, mas em Lisboa bebe-se Porto branco. Ora bem, estávamos nós num café da Praça San Pedro e eu disse: "Para mim, um Porto branco." Ele ficou radiante e disse-me: "Enfim, aqui está alguém que sabe apreciar um Porto!" Era gentil, mas muito infeliz. Era pobre e vestia-se modestamente. Como muitos portugueses, era noctívago.» Também no texto de 1926, Soupault se retrata sentado numa cervejaria a pedir «ingenuamente» um Porto. Na memória do escritor, os anos mudaram em «San Pedro», o Rossio lisboeta, a «Grande Praça de D. Pedro» da Carte Postale.
Do acaso que juntou Philippe Soupault e Fernando Pessoa, o que pode ter ficado? «A luz desse momento da cidade caminha noutros lugares. Mas o encontro desses dois poetas num café pode ainda estar a repetir-se e a ir ao encontro de alguém que verá nele a sedução das trocas culturais e o privilégio momentâneo de derivas entrecruzando-se para solitárias transfigurações.» (Joaquim Manuel Magalhães, Os Dois Crepúsculos, Lisboa, A Regra do Jogo, 1981).
Bibl.: BOUCHARENC,Myriam, «Philippe Soupault en Extrême-Occident», in Lisbonne: Géocritique d'Une Ville, ed. Alain Montadon, Clermont-Ferrand, Presses Universitaires Blaise Pascal, 2006; SÁ, Pedro de Moura e, Vida e Literatura, Lisboa, Livraria Bertrand, 1960; SOUPAULT, Philippe, «Bilhete-Postal», in De Fora para Dentro, ed. Aníbal Fernandes, Lisboa, Afrodite, 1973.
Luis Manuel Gaspar e Maria Jorge