Num epigrama, o jovem Pessoa, na altura em que assinava Alexander Search, escreve: «I love the Real when I love my dreams» (Páginas Íntimas, p. 182). O que significa que os sonhos é que são a realidade. Mais tarde, num fragmento de filosofia, é assimilado o poder de sonhar ao poder divino: «O universo é o sonho de um sonhador infinito e omnipotente» (Textos Filosóficos II, p. 182). A Tabacaria de Álvaro de Campos, datada de 1928, há-de usar este tema do modo mais intenso e perfeito, naquele verso que diz «A sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro», e que de novo formula que, no imaginário de Pessoa, o sonho é a única realidade.
Será em volta deste tema central que se moverá o seu pensamento poético. Num texto de 1913: «Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho. […] O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho» (Páginas de Estética, p.153).
Um importante texto de Pessoa sobre este tema é o «drama estático em um quadro» “O Marinheiro”, publicado no Orpheu 1, e que constitui uma peça declaradamente simbolista (e sabe-se como, para o Simbolismo e Decadentismo, o artista é um náufrago do sonho). O marinheiro é uma personagem central do período 1913-1915. Surge como um anunciador da própria heteronímia, no momento da sua eclosão. Aliás, já na peça de teatro “Marino”, assinada por Charles Robert Anon, de que se conhecem fragmentos escritos nos anos de Durban, se podem ler, numa primeira forma, quer o seu nome quer a sua temática. Depois, escrito em 1913, “O Marinheiro” é reescrito para o Orpheu 1 em 1915. E, numa carta a Gaspar Simões de 1930 informa estar ainda a fazer emendas no seu texto, de que também chega a traduzir algumas passagens para francês. Deste modo, acompanha toda a sua vida uma peça que é muito mais que um pastiche de teatro simbolista. A história do marinheiro, tal como é contada pelas três veladoras à maneira do Simbolismo, é a mesma que Sá-Carneiro conta na novela “O Homem dos Sonhos”, também de 1913, ao jeito interseccionista: a história de um homem que tanto sonha que acaba por emigrar para o seu sonho. Só que este homem-do-sonho é, por sua vez, sonhado por uma veladora. Tal sucessão de sonhos por dentro uns dos outros conduz a Segunda Veladora a uma revelação: «Porque não será a única cousa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?». Quem sonha pode, pois, ficar a fazer parte do seu próprio sonho – eis a revelação. Como em “Na Floresta do Alheamento” se pode ler: «E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe...» (Livro do Desassossego, p. 454).
A questão é que o sonho duas vezes sonhado, ou seja, o sonho que o marinheiro-sonho sonha, não é mais vago, mais incorporal, mas sim mais vívido que o primeiro sonho. Trata-se, pois, de um sonho que não é sonho apenas, mas uma realidade paralela. Assim, nenhum privilégio passa a assistir à realidade, pois não há nela nenhum real maior que o real do sonho.
Ora, é dessa mesma substância que os heterónimos são feitos: seres de sonho, que habitam o sonho como um mundo mais verdadeiro. Assim, escreve sobre eles Pessoa na Carta dos Heterónimos: «Não sei, bem entendido, se realmente não existiram ou se sou eu que não existo» (Correspondência II, p. 341). O Marinheiro tem uma relação com a eclosão da heteronímia como a teoria com a prática. Os próprios heterónimos serão, evidentemente, considerados «figuras de sonho» (Páginas Íntimas, p. 105).
No Livro do Desassossego, o tema do sonho é fulcral. Com uma acepção mais próxima de «devaneio», lê-se: «Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior» (p. 120). Ou ainda: «Em mim o que há de primordial é o hábito e o jeito de sonhar» (p. 485). Assim, Bernardo Soares é uma personagem de autor que se define quase exclusivamente pelo sonho. E, por essa via, torna-se também um revelador dos mecanismos profundos da heteronímia, pois a «pulverização da personalidade» é assim definida por si (com o itálico):«Substituí os meus sonhos a mim próprio» (p. 442), ou ainda: «O mais alto grau do sonho é quando, criado um quadro com personagens, vivemos todas elas ao mesmo tempo – somos todas essas almas conjunta e interactívamente» (p. 444).
Há ainda uma exemplificação política importante deste tema. Na citação de Shakespeare feita nos artigos de A Águia em 1912, chama a atenção para o que há de messiânico na concepção do sonho: «E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os sonhos são feitos”» (Crítica, p. 67). E a Mensagem acolhe o tema no mais essencial dos seus símbolos, que é D. Sebastião, no primeiro poema dos «Avisos», em que Bandarra «Sonhava, anónimo e disperso, / O Império por Deus mesmo visto», e no terceiro poema da mesma parte: «Quando virás, ó Encoberto, / Sonho das eras portuguê». O mito é o sonho, e o trabalho do poeta – e do revolucionário sebastianista – consiste numa impregnação total pelo sonho. Assim pôde formular uma incarnação colectiva do sonho como programa: quando o sonho se derramar «sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos», «então se dará na alma da Nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião» (Crítica, p. 332).
Fernando Cabral Martins