O tema da sinceridade é saturante e obsessivo na estética da presença, mas, para os modernistas, e se quisermos falar em termos poéticos, não faz sequer sentido. Como Almada escreve em A Invenção do Dia Claro (1921): «Quando digo Eu não me refiro apenas a mim mas a todo aquele que couber dentro do jeito em que está empregado o verbo na primeira pessoa». Não é, em suma, o eu psicológico que interessa a um modernista. E Sá-Carneiro diz que é impossível traduzir para palavras as «coisas secretas» que há na alma, «porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz» (Cartas, p. 33): para Sá-Carneiro, pois, pode dizer-se que a sinceridade é simplesmente impossível.

Quanto a Pessoa, leia-se a carta a Côrtes-Rodrigues de 19 de Janeiro de 1915 sobre o profundo e «grave sentido» que para ele ganha esta palavra: «O que eu chamo literatura insincera não é aquela análoga à do Alberto Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos (o seu homem, este último, o da poesia sobre a tarde e a noite). Isso é sentido na pessoa de outro; é escrito dramaticamente, mas é sincero (no meu grave sentido da palavra) como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele. Chamo insinceras às coisas feitas para fazer pasmar, e às coisas, também (repare nisto, que é importante) que não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção da gravidade e do mistério da Vida» (Correspondência I, p. 142). Trata-se, pois, em termos literais, de uma sinceridade inventada.

Lembra aqui, de imediato, um texto publicado na presença 5, em 1927, com a assinatura de Álvaro de Campos, que é o heterónimo encarregado de teorizar a heteronímia para o público – e que é na sua poesia, de resto, um microcosmo da heteronímia nas suas muitas personalidades – , texto que se intitula “Ambiente”. Nele se lê: «Pela emoção somos nós; pela inteligência somos alheios» (Crítica, p. 367). É uma afirmação que recupera um tema do tempo do Sensacionismo: «Só o que se pensa é que se pode comunicar aos outros. O que se sente não se pode comunicar»(Páginas Íntimas, p. 217). E esta é a  razão central para se entender que a inteligência é a chave de todo o processo de despersonalização. O que há de colectivo na razão opõe-se ao que há de individual na emoção. Pelo que o mesmo texto conclui: «Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois não se dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que se não sente» (Crítica, p. 367). E surge então o oxímoro final: «Fingir é conhecer-se» (Crítica, p. 368). Que poderia ser traduzido, em termos de arte poética: toda a sinceridade é uma forma de fingimento.

Num outro fragmento, a estranheza radical da sua noção de sinceridade dramática é patente: «Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros)». Neste mesmo texto, tal sinceridade múltipla é analisada com um esplendor expressionista: «Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. / Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas» (Páginas Íntimas, p. 93).

“Autopsicografia”,que tem como verso inicial «O poeta é um fingidor», é enviado para a presença em 1932 de uma forma que parece intencional e amavelmente provocatória. Numa arte poética em prosa assinada por Álvaro de Campos, uma “Nota ao Acaso” que Pessoa publica em 1935 na revista de Almada Negreiros Sudoeste, lê-se a abrir, com a clareza do paradoxo: «O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. / Nada disto tem que ver com a sinceridade» (Crítica, p. 520).Tudo, obviamente, afirmações que se destinam à presença, que faz a afirmação diametralmente oposta.

 

Bibl.: Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001

 

Fernando Cabral Martins