Em 1886, vinte anos depois de ter saído o Parnasse Contemporain e vinte e três antes do Manifesto Futurista de Marinetti, apareceu sob a forma de manifesto Le Symbolisme de Jean Moréas, que o publica, como acontecerá depois com Marinetti, em Le Figaro. Neste manifesto considera-se que o Simbolismo é o resultado da própria evolução da literatura, admitindo-se que essa evolução é cíclica. O que o caracteri­za, segundo Moréas, são as metáforas insólitas, o vocabulário novo harmonicamente sustentado e aberto à valorizaçao do ritmo, etc. Algumas destas opções expressivas vão passar também pelo Modernismo. As figuras – símbolo, metáfora, imagem – e o ritmo – em consonância com este corpo figural – desempenham na linguagem poética o que Moréas traduziu sob uma forma aparentemente enigmática: a poesia simbolista procura «vestir a ideia de uma forma sensível». Se mudássemos de registo, tendo em vista uma poética da modernidade, diríamos que a relação entre o sensível e as ideias se transformava na relação entre a idealização e a emocionalidade, entre o pensamen­to e a sensibilidade. Entre nós foi Antero de Quental e, depois, Fernando Pessoa quem melhor compreendeu essa mútua dependência, a qual faz com que a poesia não seja pu­ro pensamento ou pura emoção. O Simbolismo, sobretudo o francês a partir de Baudelai­re e Mallarmé, orienta-se também neste sentido. Se se considerar a crítica francesa, sobretudo a partir da publicação de De Baudelaire au Surréalisme, de Marcel Raymond, verificar-se-á que há tendência para referir a poetas ligados ao movimento simbolista a criação de condições que conduziriam a uma expressão literária que se afir­mou em termos de modernidade ou de vanguarda. Este ponto de vista não deixa de estar implícito quando Julia Kristeva., em La Révolution du Langage Poétique, considera que tal revolução, assumida pela vanguarda do século XX, começara já a ser praticada, entre outros, por Mallarmé. Octavio Paz, em Los Hijos del Limo, ao partir do pres­suposto de que «o moderno é uma tradição», considera que as vanguardas do início do século XX não representariam uma ruptura em relação à tradição literária, sobretu­do à que, provindo do Romantismo alemão e inglês, veio a confluir no Simbolismo francês. Entre nós, Feliciano Ramos, em Eugénio de Castro e a Poesia Nova (1943), começou a apontar traços comuns no Simbolismo dos anos 90 e no Modernismo. Mas foi Pedro da Silveira quem, de uma maneira mais explícita, veio chamar a atenção para o enraizamento desse Modernismo na poesia simbolista, a ponto de afirmar: «em vez de 1915, 1889 poderia, até, com bastante justeza, classificar-se de Ano I do Modernis­mo português» («Um Simples Apontamento», in Vértice, n.º 228, Setembro de 1962). Re­centemente, José Carlos Seabra Pereira, em Decadentismo e Simbolismo na Poesia Por­tuguesa (1975, p. 458), refere-se a tal relacionamento. Com uma inflexão diferente, anote-se também o ponto de vista de João Gaspar Simões, em Literatura, Literatura, Literatura… (1964, pp. 253-256), que, sob uma forma hipotética, admite a influên­cia do Simbolismo – apreendido especialmente por Luís de Montalvor, quando esteve no Brasil – na transição para o Modernismo nas letras portuguesas. Mas, num ensaio anterior, incluído em O Mistério da Poesia (1931), Gaspar Simões admi­te também a influência das primeiras obras de Eugénio de Castro «na formação da men­talidade artística dos primeiros modernistas do Orpheu» (2.ª ed., p.123).

 

 

O movimento simbolista em Portugal começa a afirmar-se em 1889, com a publicação das revistas Boémia Nova e Os Insubmissos. Entretanto, sobretudo no campo da poesia, destacam-se nomes como os de Eugénio de Castro e António Nobre ou, afirmando-se mais tarde, os de Camilo Pessanha e Ângelo de Lima. Há também a destacar uma inicial fei­ção simbolista na obra de Raúl Brandão e, também, mais tarde, António Patrício, com especial relevo para a sua obra teatral. Outros nomes se revelaram, mas os que fo­ram citados representam da melhor maneira um movimento rico e cheio de potencialida­des, algumas das quais a modernidade acabará por desenvolver. No entanto, a aborda­gem crítica do Simbolismo não raro foi pautada por certas ideias feitas que concor­riam para que estivesse sujeito a um entendimento depreciativo. Em torno dele, noções como as de arte pela arte, formalismo ou arte elitista eram aplicadas com to­da a sua carga negativa, condenatória. O Modernismo e a Vanguarda, no entanto, rom­peram tal como o Simbolismo com uma pesada carga que vinha do passado mais ou menos próximo, muito marcado por sequelas românticas ou naturalistas.

A influência do Simbolismo nos modernistas é detectável. Alguns dos colaboradores das revistas Orpheu (1915), Exílio (1916) e Centauro (1916) estão ainda muito ligados a uma sen­sibilidade expressiva simbolista ou decadentista, até porque três ocasionais colaboradores dessas revistas são Camilo Pessanha, Ângelo de Lima e, vindo da Boémia Nova, Alberto Osório de Castro. Mas em alguns escritores ligados à geração modernista revela-se essa filiação; é o caso de Luís de Montalvor, Alfredo Guisado, Violante de Cysneiros (isto é, Armando Côrtes-Rodrigues), Augusto Ferreira Gomes, Albino de Menezes, D. Tomaz de Almeida, Castelo de Moraes, Martinho Nobre de Melo ou Silva Tavares. Não deixa de ser curiosa a circunstância de no Portugal Futurista (1917) a presença de colaboradores ainda ligados ao Simbolismo ter desaparecido numa revis­ta que assume uma provocatória posição de vanguarda, a não ser o caso de Fernando Pessoa com as suas Ficções do Interlúdio, um conjunto de cinco poemas onde se che­ga ao pastiche da poesia simbolista, nomeadamente com o uso das aliterações de Sau­dade Dada. Aí, «Em horas inda louras, lindas, Clorindas e Belindas brandas, / Brin­cam no tempo das berlindas, / As vindas vendo das varandas (...)» é uma espécie de eco de um poema simbolista de Eugénio de Castro saído em Oaristos (1890) que prin­cipia por este verso: «Na messe, que enlourece, estremece a quermesse». Se há aqui uma intenção parodística, ela, no entanto, desaparece completamente no «drama es­tático» – como era também o teatro simbolista de Maeterlinck – intitulado O Mari­nheiro e publicado no primeiro número do Orpheu. Ao lado desta podemos considerar outras peças teatrais, que se encontram incompletas, de Pessoa, as quais se enquadram na estética simbolista: (cf. Maria Teresa Rita Lapes, Fernando Pessoa et le Drame Symboliste, Paris, 1977, p. 515 e ss.}.

As referências implícitas ou explícitas ao Simbolismo ou ao Decadentismo acompanham ou dão um sentido especial a textos de apresentação ou de cariz teórico incluídos nas revistas Orpheu e Centauro, assinados por Luís de Montalvor, ou Exílio, assinado por Augusto de Santa-Rita. Montalvor na «Introdução» do Orpheu fala-nos das «formas de realizar arte» em nome, como diz, da Beleza e de uma inclinação própria de «temperamentos de arte» ou de um gosto «aristocrático» (como se o nefelibatismo estivesse ainda na ordem do dia); no ano seguinte, na revista Centauro, escreverá um mais longo texto que intitulou «Tentativa de um Ensaio sobre a Decadência». De imediato aí aparece uma referência ao século XIX dos simbolistas: «Se particularmente a decadência literária é a ma­nifestação estética do século XIX, genericamente toda a grande arte pode ser decadente, porque todos os séculos foram e serão decadentes...» E acrescenta: «A flor da arte decadente do século passado foi o simbolismo». Augusto de Santa-Rita escreve para a revista Exílio o que seria uma assim declarada «justificação» e aí dá relevo à pa­lavra que lhe serve de título, como se, com ela, retomasse o tema da decadencia, do desterro, enfim, do exílio que tanto marcaram o Decadentismo oitocentista.

No entanto, a publicação de um alargado conjunto de textos de Fernando Pessoa que saíram postumamente e foram editado por Jacinto do Prado Coelho e Georg R. Lind (a saber, Páginas íntimas e de Auto-interpretação e Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias) veio precisar melhor a natureza e o âmbito desta relação entre Simbolismo e Modernismo. Pessoa será bem explícito: «Descendemos de três movimentos mais antigos – o simbolismo francês, o panteísmo transendental português e a mis­celânea de coisas contraditórias e sem sentido de que o futurismo, o cubismo e outras correntes afins são expressão ocasional, embora, para ser exacto, descendamos mais do espírito do que da letra desses movimentos» (Páginas Íntimas,p.127). Em A Águia, a revista que foi o orgão do Saudosismo – o tal «panteísmo transcendental português» – Pessoa publica em 1912 uma série de artigos com o título genérico «A Nova Poesia Portuguesa» e aí refere que a poesia simbolista está na linha de uma evolução que conduziria a essa nova poesia poesia portuguesa que seria pretensamente o Saudosismo e, com mais propriedade (como notou João Gaspar Simões na Vida e Obra de Fer­nando Pessoa, 1950, vol. I, p. 185), a do Modernismo ou, mesmo, a do próprio Pes­soa. As características fundamentais dessa poesia são o vago, a subtileza e a complexidade. Destas três características porá em relevo as duas últimas. A subtileza é o desdobramento de uma sensação em outras sensações que recompõem a primeira, in­tensificando-a; a complexidade conduz a uma intelectualização de uma emoção e a emo­cionalização de uma ideia. Segundo Pessoa, o Simbolismo é vago e subtil, «complexo, porém, não o é». No entanto, esse cruzamento entre sensibilidade ou emoção e pensa­mento ou elaboração intelectual – a tal complexidade – não deixa de transparecer numa poética do Simbolismo se estivermos atentos ao que dizem alguns escritores ou críticos que a ela estão ligados. Assim, Armando Navarro na revista Os Novos (1893­-94) refere-se às «modificações de sensibilidade» que decorrem de uma «lógica da evocação», e Carlos de Mesquita, na mesma revista, refere-se à «faculdade de sen­tir abstracções», o que conduz a uma «quase objectividade de todos os sonhos». Há nestas afirmações uma reserva, que será partilhada com o Modernismo, quanto à exces­siva valorização da subjectividade emocional que vinha da tradição romântica, so­bretudo se se considerarem os seus desvios ultra-românticos. Importa notar que as achegas dos próprios simbolistas quanto à elaboração de uma poética que informasse a sua própria poesia não se apresentam de maneira nenhuma sistematizadas, como o não estão as de Pessoa, o que dá lugar a algumas ocasionais contradições quanto à importância do Simbolismo relativamente a uma nova poesia (cf. por exemplo Páginas Íntimas..., p. 190). Mas é importante notar também que Pessoa e a melhor poesia simbolista apontam para a afirmação de uma expressão verbal que em si mesma se objectiva através de uma complexidade que, sustentada por imagens, símbolos ou derivações me­tafóricas, promove o equilíbrio entre a sensibilidade e a intelectualização.

Um dos suportes desta objectivação está na heteronímia. Ora também aqui algo pa­rece ter raízes em experiências simbolistas, porque a fragmentação ou diferimento da autoria são, efectivamente, uma experiência a que alguns autores ligados ao Sim­bolismo se entregaram. Sob uma forma menos elaborada do que em Pessoa, eles culti­vavam por vezes uma poética da alteridade, a qual se pode desviar para o pastiche ou para a paródia, merecendo ambos dos simbolistas ou dos seus adversários literários um especial interesse. O outro autor pode ser Jerónimo Freyre ou Bartholomeu de Frágoa (isto é, Carlos de Mesquita), K. Maurício (um alter ego de Raúl Brandão), Luís de Borja e R. Maria (isto é, R. Brandão, Júlio Brandão e Justino de Montalvão, possíveis autores de Os Nefe­libatas, em 1891), Estephanio Rimbó (isto é, Sanches da Gama), etc. O recurso ao alter ego ou à escrita parodística cria formas diferidas de expressão que vão ao en­contro de uma poética em que a disfonia, a paratextualidide ou a objectivação expres­siva ganham uma certa relevância, embora, como é sabido, só com Fernando Pessoa ela tenha sido levada até às suas últimas consequências.

A poesia de Mário de Sá-Carneiro – e, também, a narrativa A Confissão de Lúcio (1914) ou os contos – permite fazer algumas aproximações. Por vezes, as suas imagens de recorte ornamental ou cromaticamente reforçadas como acontece na pin­tura dos fauves ou na Arte Nova, a ocasional forma reticente da frase, a transposi­ção de sensações ou sinestesias, as correspondências que se configuram muitas vezes como justaposições ( do tipos «luz-perdão», «orquídeas-pranto», etc.) não são alheias a uma estesia simbolista e decadente. Tudo isto se ajusta a um sujeito – o autor ­em «dispersão», embora importe reconhecer que essa dissolução ou anulação do sujeito já representa na obra de Sá-Carneiro uma plena assunção da estética modernista.

     Concluindo, reconhecer-se-á que o que o Modernismo atingiu no domínio da expres­são artística não pode ser explicado como uma consequência directa e imediata do Simbolismo. Mas, no momento em que uma estética de procedência aristotélica assente no princípio da mimese entrou em crise ao longo dos séculos XIX e XX, abriu-se a pouco e pouco o caminho para uma moder­nidade que também tem a sua tradição, precisamente aquela tradição a que se referiu Octavio Paz e que é ao Romantismo e ao Simbolismo que re­monta.

 

 

Fernando Guimarães