Quando Marie Louise Von Franz abordou o mito do “puer aeternus”, fê-lo para identificar e escalpelizar um determinado comportamento sexual do homem, muitas vezes associado ao D. Juanismo, e fê-lo identificando traços comportamentais dessa “criança eterna” que definiram um padrão. Dentro desse padrão, está, por exemplo, o narcisismo e a megalomania. Num estudo sobre Mário de Sá-Carneiro identifiquei ambos os traços, que enquadram o imaginário sexual presente na obra do autor nesse complexo. Mas, se olharmos para toda a geração de Orpheu, que encontramos? Um grupo de jovens narcísicos e megalómanos: Fernando Pessoa é o “supra-Camões”, Mário de Sá-Carneiro não te qualquer pudor em afirmar “que a nossa arte em todo o caso melhora aqueles que têm o génio de nos seguir”(carta a Pessoa de 22.02.1916), Almada Negreiros clama ser “as sete pragas sobre o Nilo e a Alma dos Bórgias a penar”(in Cena do Ódio), Raúl Leal assina como “Henoch” (filho do bíblico Caim) e Luís de Montalvor declara, na apologia do grupo (e de todos os decadentes), que fez na Centauro: “É ser-se, enfim, todos sem ser o que todos são, que é superior ao que todos são…”. E como se define a sexualidade do “puer aeternus”? Naturalmente, com o “horror ao sexo”, que Gaspar Simões fixou na sua “Vida e Obra de Fernando Pessoa”, no já distante ano de 1950.

Ora, este “horror” não é apenas uma projecção do complexo da Grande Mãe, que desenha a Mulher na polaridade de um ser terrível ou de um ser inócuo, quase assexuado, é ainda a manifestação da própria genialidade do artista modernista, megalómano e narcísico, que, às expensas dessa genialidade, se afasta do mundano e comezinho, marcando negativamente tudo aquilo que o prende à terra, desde as rotinas às relações da carne. Ou seja, a exploração do mito da Mulher Voraz é, também, a manifestação apolínea de uma reacção contra o terreno e reflecte-se numa multiplicidade refractária de imagens que marcarão, indelevelmente, o ideário sexual do Modernismo, como está patente naquele que é o exemplo mais completo da temática da sexualidade no Modernismo: “O tópico da mulher voraz, da Salomé perversa e insaciável, presente na obra de Sá-Carneiro (…) é um mito decadente a partir do qual se ramificam outros semas: a atenuação das diferenças sexuais a caminho da androginia; a perversão sexual; a castidade anímica do Artista; a abominação pelo órgão sexual feminino e pela cópula amorosa; o consequente isolamento egocêntrico do Eu.” (cf. O Imaginário Sexual na Obra de Mário de Sá-Carneiro, p.23). Em eco, vamos lendo, com acréscimo de requintes de perversidade, a Ode Marítima, de Álvaro de Campos, e a Cena do Ódio, de Almada Negreiros. Este último proclamara, antes de Leal, o culto do Pecado, “Ergo-Me Pederasta apupado d’imbecis, Divinizo-Me Meretriz, ex-líbris do Pecado, e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!”, como fiel acólito de Valentine de Saint-Point que declarara, em 1913: “A luxúria é uma força” (Almada leu o Manifesto Futurista da Luxúria, na I Conferência Futurista, em 1917). Neste ofício ao ódio, dedicado a Campos, escarnece-se dos “burgueses de Portugal” atirando-lhes à cara toda a violência que um discurso pode condensar e, porque assume características de degradação máxima, Almada explora, precisamente, o imaginário sexual dos “sexos escancarados nos chicotes dos corsários” da humilhação feminina, passando pela satiríase do “sexo elefantizado [que] foi todo o seu corpo”, pela sodomia “Vem ver os chimpanzés! Acorpanzila-te neles se te ousas!“ e pelo travestismo, que, tal como Sá-Carneiro, empossa de poder sexual: “Hei-de ser a mulher que tu gostes, / hei-de ser Ela sem te dar atenção.”, entre outras e variadas parafilias que sobrepovoam o este discurso do Ódio. Novamente, o poder do discurso sexual enquanto discurso de agressão, que se repetirá na Ode Marítima, publicada na Orpheu 2, em 1915, na qual Álvaro de Campos cultiva a volúpia da Dor, num cenário de perverso masoquismo, “Levar prá Morte com dôr, voluptuosamente, / Um corpo cheio de sanguesugas, a sugar, a sugar, / De estranhas verdes absurdas sanguesugas marítimas!”. Reaparece, naturalmente, a imagem arquetípica da feminidade terrível, que é exorcizada através da Palavra: “Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres / Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas! /Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles! / E sentir tudo isso – todas estas cousas duma só vez – pela espinha!”. E o tema da bailarina irrompe, insidiosamente, na “bruxa dançarina invisível” da Ode Marítima, tal como na Mima-Fatáxa, Sinfonia Cosmopolita e Apologia do Triângulo Feminino de Almada Negreiros, “Salve! Fornicadora do Mistério! / Hei-de cantar-te, Milionária, que me deste a Loucura pra ser a minha escrava índia / Ou Salomé se eu também quisesse.”. Homossexualidade? Sadismo? Promiscuidade? Pensarmos desse modo será alinharmos no mesmo pensamento conservador e provinciano de há umas décadas atrás quando, como Octávio Paz apontou: “O assombroso é a aparição do grupo [os de Orpheu], adiantado no seu tempo e na sua sociedade.”.

Contudo, Judith Teixeira, que nunca esteve directamente ligada à Geração de Orpheu, e que merece ser arrancada do esquecimento a que foi votada, não sendo homem, denuncia marcas profundas e características de alguma poesia dos de Orpheu, nomeadamente, de Sá-Carneiro. Deste modo, a expressão literária da sexualidade não é apenas uma manifestação cabal de um determinado complexo, mas a evidência de uma clara e consciente atitude literária. O Modernismo é ruptura, é transgressão. Que melhor campo, pois, para chocar o “burguês apinocado” de Almada, ou o “lepidóptero” de Sá-Carneiro, do que aquele mais prenhe de tabus? Pode a aparente despreocupação formal dos poemas futuristas ter arrepiado a academia das letras lusitanas. Pode a audácia dos planos interseccionados de Pessoa ou as inesperadas imagens de “ânsias eternizadas” de Sá-Carneiro ter perturbado a modorra literária do país. Mas foi a ousadia sexual, mais ainda, a multiplicidade (tão de gosto modernista) sexual que acirrou ódios: o escandaloso não foi falar de sexo, o escandaloso foi falar de muitos sexos, numa sexualidade outra.

O estilhaçar do Eu, característico do Modernismo, a apologia das sensações, conduziram à expressão das mais diversas manifestações sexuais, como que em obediência à utopia programática de Sá-Carneiro de “um mundo perfeito onde os sexos não são dois só”, pois, como desabafava o protagonista de “O Homem dos Sonhos” haverá “alguma coisa mais desoladora do que isto de só haver dois sexos?”. A transgressão do Modernismo e dos seus ismos baralha as convenções da heterossexualidade como nunca antes, estimulando um frenesi crítico que, em Portugal, despoleta uma verdadeira perseguição censória, com direito a fogueira em praça pública de contornos inquisitoriais. O aparecimento da Orpheu, em 1915, deu o mote à crítica virulenta e, a maior parte das vezes, mesquinha e provinciana da “sub-gente normal”, como diria Sá-Carneiro, a esta “literatura cosmopolita, extravagante e absurda” e, particularmente, àquilo que é encarado “como caso aberrativo ou degenerescência de tipos” (cf. crítica à Confissão de Lúcio publicada no Primeiro de Janeiro de 13-02-1914). A campanha atinge o seu auge quando, em 1923, são aprendidos e queimados os livros Sodoma Divinizada de Raul Leal, Canções de António Botto e Decadência de Judith Teixeira, depois da campanha lançada por uma tal Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa que visava “Fiscalizar as livrarias e meter na ordem os artistas decadentes, os poetas de Sodoma, os editores, autores e vendedores de livros imorais como este, aquele, aqueloutro…” (cf. Pedro Teotónio Pereira, mentor da dita perseguição censória, em entrevista ao jornal A Época, de 22.02.1923).

Convém, aliás, não confundir o estudo das obras com a vida dos autores, que tantas vezes levou a leituras psicologistas e mitificadoras, o que, seja pela genialidade anómala da própria geração, seja pelo perfil dos seus primeiros estudiosos da Presença, proliferou no caso concreto dos vultos que constituíram o grupo de Orpheu. É o caso do tal “horror do sexo”, de Fernando Pessoa. Ao contrário de Raul Leal, que proclamava que a Luxúria é a “divina Vertigem Besta” e “Portanto a Luxúria é Obra de Deus”, opondo-se à “herética Razão” (in Sodoma Divinizada), Pessoa é um racional, um “agitador de ideias”, não de sentimentos, por isso, declara no Primeiro Fausto: “O amor causa-me horror; é abandono, / Intimidade… / Não sei ser inconsciente”. Aliando esta pulsão cerebral à multiplicação do Eu, que implicará a perda de identidade, é natural que o discurso da sexualidade seja, em Pessoa, menos marcado que noutros autores modernistas. Pessoa divide-se, ou melhor, multiplica-se, entre o discurso popular do Cancioneiro, a ingenuidade metafísica de Caeiro, que chegou a conhecer o amor, nos seis poemas do “Pastor Amoroso” (que Ricardo Reis condena como uma doença do Mestre, que momentaneamente perdera a visão), a inocuidade do estatismo sexual de Ricardo Reis, face a uma Lígia, que mais não será que um seu duplo, no feminino, ou o desvario de perversão alucinatória de Campos. No fundo “o nada que é tudo”, uma ausência que, eventualmente, se torna mais ostensiva que o alarde de sexualidade provocatório de um Almada ou de um Raul Leal. Por fim, a excepção que confirma a regra: alguns poemas em inglês, em particular “Epithalamium” e “Antinous”, o primeiro abordando uma relação heterossexual, mas num registo quase pornográfico, o segundo abordando uma relação homoerótica, e, ainda, os poemas juvenis de Alexander Search, que infantilizam a mulher, anulando o “horror do sexo”.

Muito pouco, numa obra do tamanho da de Fernando Pessoa. É que a transgressão modernista de Pessoa despiu-se do sexo para poder atingir uma “espécie de sublimação”, anulando a existência do Outro. Em Mário de Sá-Carneiro, como em Almada Negreiros, como em Álvaro de Campos (o elo de ligação de Pessoa com o mundo sensível), essa Transgressão realizou-se contra o Outro, sendo o discurso sexual a expressão maior dessa ruptura. É neste sentido que deve ser encarada a prolixa criação literária de carácter sexual do Modernismo: é o fruto da Diferença, é a manifestação do Ideal do Decadentismo, somada à Multiplicação fragmentária do Sensacionismo, mais a Agressão vertiginosa e sem regras do Futurismo.

 

Bibl.: Gomes, FátimaInácio, O Imaginário Sexual na Obra de Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, INCM, 1996; Paz, Octavio, Fernando Pessoa, o Desconhecido de Si  Mesmo, Lisboa, Vega, 1992; Von Franz, Marie-Louise, Puer Aeternus, Boston, Sigo Press, 1981.

 

 

Fátima Inácio Gomes