Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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A análise filosófica, que é a dimensão em que Pessoa assenta a sua obra, produz sobre a sensação a mais geral das afirmações possível. Vale a pena citar o fragmento todo: «1. Tudo é sensação. / 2. Sensação compõe-se de objecto sentido e da sensação, propriamente dita. / 3. Perante este fenómeno basilar da vida psíquica, a humanidade tem três atitudes: a ciência, a filosofia (a metafísica) e a arte. / 4. A ciência cinde sensação e objecto – e, ou se ocupa do objecto independentemente do que a sensação dele vale (ciências físicas, naturais) [...] ou da sensação independentemente do objecto (psicologia). / 5. A filosofia aproxima a sensação e o objecto, busca investigar quais as suas íntimas relações» (Textos Filosóficos II, p. 181). Esta magnificação do «fenómeno basilar da vida psíquica» tem então consequências vastas para a arte. Num fragmento, de título «Princípios», pode ler-se até que ponto: «1. Todo o objecto é uma sensação nossa. / 2. Toda a arte é a conversão duma sensação em objecto. / 3. Portanto, toda a arte é a conversão duma sensação numa outra sensação» (Páginas Íntimas, p. 168).

A estas concepções tão gerais e directamente conectadas com a  sensação podemos, depois, ligar a criação do Sensacionismo – que, se o entendermos latu sensu, no conjunto das suas três dimensões (Paulismo, Interseccionismo e Sensacionismo integral), é o nome da estética que é dominante em todo o movimento órfico (Pessoa, Sá-Carneiro e o Almada de Cena do Ódio), e forma o cenário conceptual em que ocorre e se constitui a heteronímia. O próprio desenho dos heterónimos depende de formas distintas de conceber a sensação e a sua relação com o pensamento. Por exemplo, a poesia de Caeiro, o Mestre ou centro da heteronímia, toma a sensação como fulcro dos sentidos que faz, sendo clara a fórmula em que o sintetiza: «os meus pensamentos são todos sensações» (Guardador de Rebanhos, IX)). Caeiro pensa com os sentidos e, ao fazê-lo, transforma-os em modo de conhecimento.

Mas a sensação como conceito-chave da elaboração heteronímica enquanto modo de pensamento pode ter outras formulações, por exemplo: «Sentir é criar. / Sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o Universo não tem ideias» (Páginas Íntimas, p. 216). Deste modo, a injunção «Sê plural como o Universo!» (Páginas Íntimas, p. 94) aparece como a própria poética dessa reflexão sobre o modo de sentir como modo de conhecer.

Pode, ainda, ler-se uma versão sensacionista da teoria das correspondências, segundo o célebre soneto baudeleireano que formula a teoria da analogia universal, assim recuperando a herança simbolista e conferindo-lhe uma qualidade gnoseológica no quadro da modernidade: «1. Entre a consciência e a sensação o sensacionismo admite, ou cria, um intermediário – assim como entre a alma e o corpo o ocultista admite um princípio intermédio. / 2. Além dos processos normais da lógica, o sensacionismo admite a sensação por analogia – a analogia oculta de uma cousa com outra como critério metafórico. / ‘Et les sons se répondent’ (Baudelaire) / 3. O sensacionista, como o ocultista, dá mais importância na imagem predominante ao invisível, sentindo tudo em relação a ele» (Sobre Orpheu, p. 89). Finalmente, Pessoa pôde conceber uma técnica da criação poética, especificamente heteronímica, que envolve uma prática radical da sensação: «Combater a escravidão mental representada pela associação de ideias. Aprender a não associar ideias, a quebrar em pedaços a alma. Saber simultanizar as sensações, dispersar o espírito por si-próprio, espalhado e disperso» (Pessoa Inédito, p. 271). Assim, a sensação aparece mais uma vez no lugar central do processo poético de Pessoa, neste caso presidindo ao que também chama desdobramento.

 

 

 

Bibl.: PESSOA, Fernando, Sobre Orpheu e o Sensacionismo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015;GIL, José, Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Lisboa, Relógio d’Água, 1981; HATHERLY, Ana, «O Cubo das Sensações e Outras Práticas Sensacionistas em Alberto Caeiro», O Espaço Crítico – do Simbolismo à Vanguarda, Lisboa, Caminho, 1979.

 

 

 

Fernando Cabral Martins