(SÃO PAULO, 1922)

A Semana de Arte Moderna, ou a Semana de 22, ocorreu por ocasião dos festejos comemorativos do centenário da independência política, muito embora tenha sido concebida como um antifestival frente às celebrações oficiais do referido centenário. É importante assinalar, de início, que não se tratou de um fato inaugural, isolado e sem origens. Entre os dias 11 e 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, o polêmico evento de múltiplas manifestações artísticas tomou corpo com o propósito de difundir o debate já existente em torno da atualização estética brasileira, revendo os valores que até então regiam a cultura nacional e fazendo circular as idéias e as conquistas teóricas das vanguardas européias. A assimilação crítica das novas correntes importadas e o desejo pela autonomia estética nacional expressam a orientação perseguida pelos integrantes do movimento, devotados como eram para construir um "futurismo autóctone" que, sob o signo da originalidade, pudesse libertar o país das convenções em franca decadência.

Já vinha de longe o engajamento dos escritores, artistas e intelectuais no processo de atualizar a cultura pelas propostas da vanguarda internacional. O princípio norteador para assimilar o modelo estrangeiro, conforme Oswald de Andrade propôs em seu Manifesto Antropofágico, tinha por critério fomentar a identidade nacional de modo não xenófobo, mas integrativo. Regressando da Europa, em 1912, o autor traz consigo na bagagem a descoberta do verso livre, que a ele havia oferecido, pessoalmente, possibilidades inalcançáveis até então, já que se sentia incapaz de metrificar. O propósito era de uma receptividade crítica e criadora, que mostrasse a capacidade de assimilar sem se perder. Inscreveu-se nessa orientação a exposição de Anita Malfatti em 1917, sobre a qual Mário da Silva Brito chamou de "o estopim do modernismo" no livro História do modernismo brasileiro, o mais abalizado a respeito da Semana de Arte Moderna. De volta ao Brasil após longa estada no exterior para estudos, a artista plástica Anita Malfatti expôs, em dezembro de 1917, os trabalhos resultantes da sua aplicação à arte moderna. Embora a inauguração tenha sido promissora e a ela tenham comparecido personalidades do escol paulista, em 20 de dezembro daquele ano, Monteiro Lobato publica um artigo implacável com as inovações propostas pela artista. Intitulado "A propósito da Exposição Malfatti", o artigo tece considerações sobre as espécies de artistas e indaga se a arte moderna não seria fruto de "paranóia" ou "mistificação". Apesar de mostrar-se simpático à artista após os comentários iniciais, admitindo perceber nela, inclusive, "talento vigoroso", a conseqüência do texto foi avassaladora: quadros já vendidos foram devolvidos, a artista tornou-se alvo de chacotas e, a pior das conseqüências, abalou a sua confiança diante da modernidade que abraçava. Por outro lado, o episódio arregimentou forças para o movimento modernista e provocou a participação contundente de Oswald de Andrade, pois parece ter sido ele o autor da única defesa escrita da pintora. Intitulado "A exposição Anita Malfatti", o artigo, publicado no Jornal do Comércio, apresenta os princípios artísticos modernos ao valorizar a "alta consciência", a "originalidade", a "diferente visão" como qualidades da artista hostilizada.

Dos primórdios do modernismo brasileiro, o episódio "Anita Malfatti", porque provocou a união de artistas, foi um dos seus fulcros, ao lado de outro, a "descoberta" do escultor Victor Brecheret, brasileiro que arregimenta recursos financeiros para custear seus estudos na Itália. Se Anita Malfatti conquistou o triunfo pelo escândalo, Victor Brecheret, atraiu elogios e simpatias em todas as alas da sociedade, tendo sido encarregado de assinar o monumento às bandeiras como parte dos preparativos para a festa nacional do centenário da independência política. Esse clima, além de revelar as imbricações entre as mais variadas formas de arte, impulsionou o nacionalismo, que, somando-se aos desejos de inovação e de ruptura com as formas tradicionais de expressão, marcou os projetos literários que entrariam em vigor.

Percebe-se que a "inquietação de vanguarda" é identificada pelas propostas reformistas por meio de metáforas que lembram jargões militares: "batalha", "luta", "marcha heróica" e imagens congêneres delinearam a perspectiva dos artistas dispostos a inaugurar a modernidade brasileira. Comprometidos com esse ideário, os guerreiros saem a campo a fim de divulgar os novos valores. Sob esse aspecto, o acontecimento mais relevante anterior à Semana de 22 foi a viagem ao Rio de Janeiro, para onde partiram Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Armando Pamploma. A reunião entre paulistas e cariocas ocorreu em 1921, na residência de Ronald de Carvalho, cuja propalada camaradagem permitiu que fossem acolhidos os moços da vanguarda literária, com o propósito de debater, compartilhar e desenvolver experiências culturais.

A dinâmica e o poder de difusão do aristocrático grupo foram determinados por encontros regulares em salões privados. Os salões constituíam-se numa rede de sociabilidade da época e precederam mesmo a Semana de 22. Mário de Andrade fala do verdadeiro culto à tradição que esses eventos proporcionavam, além do debate em prol da liberdade de criação. Parece soar contraditório mencionar o "culto à tradição" vivenciado por um grupo comprometido abertamente com a ruptura. É importante esclarecer essa faceta do modernismo brasileiro. Como gostavam de dizer, "destruir" era a palavra de ordem do movimento. Propunha-se destruir as formas gastas, os empecilhos à livre criação e o tradicionalismo, compreendido, em arte, como mimetismo frio e acrítico. Por outro lado, atribuía-se ao conceito de tradição a faculdade de ser um ponto de referência de que se serve o artista para verificar as novas experiências.

Outro ponto a se aclarar é a constituição aristocrática do grupo. Maria Eugênia Boaventura, no livro 22 por 22, informa que os "empresários paulistas, esperançosos de resolver um antigo acordo de café com a Alemanha, precisavam agradar o influente Graça Aranha que, em troca, poderia orientá-los a respeito dessa controvertida questão financeira." A presença de Graça Aranha entre os líderes organizadores da Semana, um dos muitos aspectos polêmicos do evento, também merece esclarecimentos. Inicialmente, por insistência de Oswald de Andrade, os modernistas pensaram em Monteiro Lobato para proferir a conferência inaugural do evento, já que ele havia provocado, como disse Oswald de Andrade, "um estouro nos arraiais bambos da estética paulista". Com a sua recusa, o nome respeitado do diplomata Graça Aranha foi sugerido para emprestar o prestígio da sua personalidade às festividades que estavam sendo idealizadas, como de fato ocorreu.

A Semana de 22 resultou de um processo de preparação proveniente da ânsia de renovação estética de viés internacional e motivada por finalidades nacionais. Congregando artistas de múltiplas tendências, o evento abrigou diversas manifestações, além de conferências de propósito didático e divulgador. A Semana propriamente dita iniciou-se em 11 de fevereiro com uma grande exposição no Teatro Municipal de São Paulo. Os espetáculos tiveram três dias de duração, 13, 15 e 17 daquele mês.

O primeiro dia do festival compreendia duas partes: a primeira, com a conferência inaugural de Graça Aranha, "A emoção estética na arte moderna", a música de Ernani Braga e poesias de Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho. No segundo momento, Ronald de Carvalho também participou com a conferência "A pintura e a escultura moderna no Brasil", ao que se seguiram três solos de piano de Ernani Braga e três danças africanas de Vila-Lobos. A segunda noite foi a especial. A conferência de Graça Aranha na noite de inauguração foi recebida pelo público com deferência, mas encarada como enfadonha e declamatória pelos modernistas. Previa-se como estrela da noite a pianista Guiomar Novaes, entretanto, o discurso provocador de Menotti del Picchia inflamou o público a partir das declarações de "estética guerreira" proferidas pelo conferencista, que expunha a nova estética ao mesmo tempo que combatia o rótulo futurista. A seguir, Ronald de Carvalho declamou, sob vaias, o poema "Os sapos", de Manuel Bandeira, uma crítica aberta e veemente ao parnasianismo e seus adeptos. A última noite transcorria muito bem, mas Vila-Lobos, que estava com o pé ferido, apresentou-se de casaca e chinelos, gesto interpretado como "futurista" pelo público, que se revoltou.

A Semana de 22 pode ser compreendida como o passo essencial para sistematizar o ideário que então efervescia, transformando em ação os debates e as propostas calorosas do grupo. Dos seus desdobramentos de relevo, é importante assinalar os manifestos que daí decorreram, de que são exemplos o "Manifesto da Poesia Pau-Brasil" e o "Manifesto Antropófago"; destacam-se também as revistas de divulgação modernista, como Klaxon e Terra Roxa e Outras Terras; mostram-se ainda resultantes da Semana as obras de criação — poesia, prosa e teatro —, que foram mais agilmente publicadas, oferecendo ao público as interpretações individuais que cada um deu ao início vanguardístico e programático do movimento.

 

Bibl.: ANDRADE, Mário. Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins, 1967; BOAVENTURA, Maria Eugênia (org.). 22 por 22: A Semana de Arte Moderna Vista pelos seus Contemporâneos, São Paulo: Edusp, 2000; BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

 

Mirhiane Mendes de Abreu