(1902-1983)
O poeta e pintor Júlio Maria dos Reis Pereira nasceu e viria a falecer em Vila do Conde. Permaneceu em Vila do Conde até completar o quinto ano do Liceu, curso que terminaria já na cidade do Porto, no Liceu Rodrigues de Freitas. Estudou pintura como aluno voluntário na Escola de Belas‑Artes do Porto durante dois anos, entre 1919 e 1921, e licenciou‑se em Engenharia Civil na Faculdade de Ciências da Universidade também do Porto, já em 1928. Entre 1931 e 1935, exerceu a sua profissão na Câmara Municipal de Vila do Conde e, a partir de Janeiro de 1936, no Ministério das Obras Públicas, em Coimbra, tendo sido transferido no ano seguinte para Évora, onde fixou residência. No Alentejo viria ainda a dedicar-se à olaria tradicional, nos anos de 1963-1964. Do seu casamento com Maria Augusta da Silva Ventura, em 1941, nasceu um filho, José Alberto dos Reis Pereira. Irmão mais novo do escritor José Régio (1901‑1969), com quem colaborou ao longo de toda a vida, Júlio Maria dos Reis Pereira dividiu a sua actividade artística entre a poesia e pintura, produzindo uma obra bifronte com expressão declarada no plano onomástico: Saúl Dias, com acento, foi o pseudónimo escolhido pelo poeta para identificar a sua obra poética; Julio, sem acento, o ortónimo escolhido pelo pintor para assinar a sua obra plástica.
Saúl Dias é autor de sete livros de poesia, publicados entre 1932 e 1980: ...mais e mais... (1932), Tanto (1934), Ainda (1938), Sangue (1952), Gérmen (1960, in Obra Poética, 1962), Essência (1973), e Vislumbre (1979, in Obra Poética, 1980). A sua Obra Poética reunida teve três edições: duas em vida (1962, pref. Guilherme de Castilho; 1980, pref. David Mourão-Ferreira, Prémio do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários, ex-aequo com António Ramos Rosa), e a terceira, revista e aumentada, por ocasião da passagem do centenário do seu nascimento, incluindo 31 dispersos e 26 inéditos, isto é, 57 novos poemas (2001, org. e pref. Luís Adriano Carlos).
Na perspectiva histórico-literária, o nome do poeta Saúl Dias encontra-se associado ao segundo momento modernista português e à revista presença (1927-1940), sediada em Coimbra, onde colaborou com frequência, na dupla qualidade de poeta e de desenhador (v. Julio). Apesar de se ter estreado poeticamente em 1918, com o acrónimo Jumarepe, nas páginas do jornal portuense Record Charadistico — onde divulgaria textos entre 1918 e 1919, recentemente coligidos na terceira edição da Obra Poética —, e de ter também dado a conhecer vários poemas, em 1921 e 1922, com o seu nome civil, em A Nossa Revista, mensário dirigido pelos alunos da Faculdade de Letras do Porto, o poeta Saúl Dias deu à estampa os seus três primeiros livros — assim como os álbuns de Julio, Música (1931)e Domingo (1934) — com a chancela das Edições «Presença», e foi na revista dirigida pelo irmão José Régio que divulgou alguns dos primeiros poemas, nos números 41‑42, 47 e 53‑54. A sua poesia esteve também representada na secção «Nós, a presença» que, no ano da morte de Fernando Pessoa, compôs parte do terceiro número da revista Sudoeste, dirigida por Almada Negreiros. A conformidade de Saúl Dias com outras poéticas presencistas — como as de Fausto José, Carlos Queirós, Francisco Bugalho ou Alberto de Serpa — foi notória, na ordem temática, num certo subjectivismo individualista (ainda que sem a ênfase egotista de outros companheiros de revista), bem como no «provincialismo» que David Mourão-Ferreira viria a apontar como «um dos caracteres mais salientes» do movimento — exposto nas recorrentes aparições do tédio domingueiro da «rua antiga de província, / quieta, silenciosa», ou da «praçazinha de província, / com seu ar sonolento», «quatro bancos desertos» e «o coreto no meio» —, a que o apreço assumido pelo neogarretismo simbolista de António Nobre não foi decerto alheio (cf. Essência, 1973: «Versos de António Nobre / guardados numa estante»). Na ordem expressional, a afinidade da dicção poética de Saúl Dias com a dos presencistas foi flagrante no lirismo de serenidade clássica, assegurado por um ritmo cuidado de versificação regular, pela metrificação tradicional e por esquemas rimáticos uniformes. «Que os meus versos sejam líricos / e me desvendem!...», escreveu programaticamente logo na abertura do livro de estreia.
A obra de Saúl Dias cumpriu porém, como notou João Gaspar Simões ao considerá-la «um agente de ligação entre o lirismo puro tradicional e a poesia moderna», um dos propósitos mais modernistas da «folha de arte e crítica», com base na indissociabilidade, ao nível da criação estética, das produções do poeta e pintor. O vínculo concretizou-se na própria concepção dos livros enquanto objectos, já que todos os volumes de Saúl Dias — incluindo as edições da Obra Poética — apresentam trabalhos de Julio. A poesia de Saúl Dias, por seu turno, estruturou-se a partir de um núcleo de temas, motivos e sugestões plásticas comuns ao trabalho pictórico de Julio, o que explica a singularidade da sua obra no seio da geração presencista, e a sua importância para o desenvolvimento do Modernismo encetado pelo Orpheu, em particular pelo artista integral Almada Negreiros. No plano do conteúdo, regido por um princípio ecfrástico, destaca-se, para além das explícitas alusões ao desenho e à pintura, a recorrência das personagens e dos ambientes característicos do imaginário expressionista e onírico do pintor, desde …mais e mais…, como a prostituta do bordel e o poeta de café, o palhaço e o doido, Arlequim e Colombina, a maga e o vagabundo, o poeta e a menina, todos protagonistas de uma sensualidade e de um erotismo discretos também detectáveis nos desenhos e aguarelas de Julio. No plano da expressão, a dicção poética de Saúl Dias parece apresentar-se como a versão em verso do poder de elíptica sugestão, do traço contido e delicado, do pudor descritivo, da graciosidade, do tom ingénuo e irónico, e das cores puras e fortes das telas de Julio, sem qualquer prejuízo da sua específica autonomia verbal, retórica e poética, conforme demonstrou detalhadamente Luís Adriano Carlos no Prefácio «Pintura e poesia na mesma pessoa».
…mais e mais…, livro de estreia, apresenta a hiperbolização expressionista da pintura de Julio da mesma época, desenhando, com igual tom irónico, um espaço grotesco idêntico, e apresenta-se como matriz retórica de toda a dicção poética subsequente, dominada pela forte notação cromática dos amarelos, dos vermelhos e dos azuis e por um formante sinestésico de raiz simbolista, aprendido na melhor lição de Camilo Pessanha, que virá a ter prolongamentos evidentes em poéticas do sensível como as de Eugénio de Andrade ou Albano Martins. No primeiro livro de poesia, Saúl Dias vincou bem a dimensão puramente verbal do seu colorismo poético, na esteira de Sá-Carneiro, em imagens como «delírio preto» ou «minuto vermelho», deixando já em testamento o verso «Quando eu morrer, em vez de armadores, chamem pintores». Tanto, segundo livro de poesia, consumou o lirismo do poeta, nos temas e na expressão, introduzindo um dos motivos mais centrais de toda a obra, a problemática do tempo e da sua passagem corrosiva — figurada na efemeridade das flores que murcham ao fim do dia —, convertida, quer num permanente elogio da infância que traz ao texto os meninos e as meninas que povoam as aguarelas de Julio, quer num enaltecimento quase metafísico da beleza do instante, em versos emblemáticos como «A vida / condensada num instante!... // Um instante e nada mais». Por outro lado, Tanto apresenta também, como assinalou Óscar Lopes, «uma indecisão entre o real e o irreal» muito próxima dos desenhos e aguarelas mais chagallianos que Julio começa a produzir na segunda metade da década de 30, protagonizada também pelas figuras do músico e do poeta: «Do baile / alado / só ficou ela; // e a canção do pianista». Ainda, o livro seguinte, reforçou todas estas linhas estruturantes, cantando o «espírito louco / do Músico-Poeta…», e recuperando insistentemente a perplexidade perante o tempo, «esse doido que nos foge» e que só «o suave frescor de aparição» — entre a memória e o onirismo — de «meninos loiro-sóis» ou de um «menino loiro e azul» de «bibe e gola / debruada a azul», brincando «na tarde azul», permite superar. Nesta obra central surge Ofélia, uma das figuras mais significativas e simbólicas da poesia de Saúl Dias, femme fragile que atravessa quatro livros: Ofélia tem uma tradição simultaneamente poética e plástica — shakespeareana e pré-rafaelita —, com expressão simbolista em Rimbaud e António Nobre; Ofélia, «adormecida-morta no lago verde-azul», é um corpo sem gravidade como os das telas de Julio; Ofélia é a imagem da juventude colhida pela morte e, em última instância, «a ‘Ofélia’ de Millais» que Saúl Dias evoca, esquecida num quarto de bordel, significa, na revisão de L. Adriano Carlos, «o lado negro de um imaginário expressionista e sarcástico que contrasta com o sonho chagalliano das meninas leves como anjos». Em 1952, ao fim de catorze anos de silêncio, o livro Sangue, abrindo com o anúncio «É só com sangue que se escrevem versos», trouxe consigo um reforço do papel da memória na luta do poeta contra a voracidade do tempo e das suas «horas perdidas» — «Nunca envelhecerás na minha lembrança» —, mas também um certo tom de auto-ironia cáustica em processo de autoscopia («Queremos vinho e fel. / Desprezamos o mel, as ambrosias. / Somos surdos às brandas melodias»), sem abandonar o onirismo gracioso e a finura de traço das obras anteriores, em poemas como «Nua» («No meu sono / ela flutua / a cada passo…»), ou «Desenho de Rapariga» («Corpo suave, / de traços finos»). Sangue inclui ainda uma das artes poéticas mais detalhadas do autor, a série «Poeta» — homónima da série de desenhos e aguarelas —, onde explicita a sua pulsão subjectiva e emocional, onírica e ingénua, concisa e lapidar, metafórica e elíptica, de expressão essencial e elementar, revelada em homéricas palavras aladas: «Quisera que os meus versos / fossem duas palavras apenas, / aéreos como penas, / leves / como tons dispersos…». Gérmen, Vislumbre e Essência, os três últimos livros, com títulos altamente significativos retomados nas composições iniciais, dão a ler, numa síntese muito depurada, a essência da meditação poética do escritor, mediante um desenvolvimento sistemático das células germinais da obra: as rosas que morrem ao fim do dia lembrando a fugacidade do tempo, que o menino onde «a infância permanece» contraria; «os violinistas errantes, / os palhaços decrépitos, / as bailarinas juvenis», a donzela-prostituta do cabaré, Arlequim e Columbina transitando entre os poemas e os quadros de Julio; Ofélia nua, «poisada na corrente» ou na água «que a seus pés desliza»; as referências ecfrásticas (a Gioconda, ao pintor Jules Pascin) confrontando a pintura «só pelo interior» que o desenho poético executa «com pedras de irreais cores»; «cores outras», como a «verdura azul» ou o «ar anil» da «tarde quieta»; o léxico da graciosidade (flor, borboleta, delicada, aragem, saltita, crepita); o poeta doido, o poeta menino, o poeta doente, o poeta sem idade «Frente ao Tempo / irreversível e eterno», que escreve à mesa do café de província «tentando fixar / em castigados versos / um fugidio instante de felicidade», para que possa deixar «Uma palavra para todo o sempre!». Como concluiu epigramaticamente Guilherme de Castilho no Prefácio à primeira edição da Obra Poética, «dizer muito por dizer pouco, eis a ‘arte’ de poetar de Saúl Dias».
BIBL.: DIAS, Saúl, Obra Poética, org. Luís Adriano Carlos, Porto, Campo das Letras, 2000; Fernandes, Maria João, Julio‑Saúl Dias: Um Destino Solar, Lisboa, Imprensa Nacional‑Casa da Moeda, 2004; MARTINS, Albano (org.), Uma Palavra para Todo o Sempre!: Actas do Colóquio de Homenagem a Júlio/Saúl Dias no Centenário do seu Nascimento, Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2003.
Joana Matos Frias