Plural de “ruba’i”. “Ruba’i” é uma forma estrófica de quatro versos (um quarteto), de metro fixo e esquema rimático igualmente fixo mas segundo três possibilidades de jogo de rimas: uniforme (aaaa), duas a duas (aabb) e, a mais corrente (e a mais divulgada nas opções rimadas dos tradutores ocidentais de “Ruba’iyat”), em que rimam os versos 1, 2 e 4 e o 3 é suspenso, solto (aaba). É uma forma de composição poética popular da tradição persa pré-islâmica. Tal como a nossa quadra popular, concisa e dúctil a um tempo, permite uma riqueza expressiva muito forte, na manifestação da psique e mente humana: convicções religiosas, amor, filosofemas, sátira, alegrias, cepticismo, vida, morte, Universo, no “ruba’i” se afirmam, negam, interrogam e cabem e extravasam. A fala poética de Omar Khayyám no seu “Ruba’iyat” tornou-se como que o seu compêndio e é, sem dúvida, o seu eleito paradigma universal. Reproduz-se, em exemplo, não de Omar Khayyám mas, aqui, dois “ruba’is” criativos de Fernando Pessoa. Um sobre técnica e fundo desta forma estrófica (ruba’i):

[66-45r]

Rimam um, dois e quatro as quadras feitas

Segundo as leis das coisas imperfeitas

E o terceiro é suspenso e rima onde?

E sempre, ó Fado, errados dados deitas.

(Canções de Beber, p. 86)

 

O outro, um filosofema tematicamente densíssimo:

 

  [64-14r

São velhas as estrelas, e elas são

Grandes. Velho e pequeno é o coração,

E contém mais do que as estrelas todas,

Sendo, sem ‘spaço, mais que a imensidão.

(Canções de Beber, p. 82-83)

 

O esquema do “ruba’i” orienta, em muitos casos, o encaminhamento para o seu sentido. “Os dois primeiros versos introduzem um assunto, frequentemente sob a forma de uma pequena descrição: o terceiro introduz uma nova ideia, cujo desenvolvimento no quarto retorna ao primeiro motivo por uma volta inesperada. O segredo do “ruba’i” está na arte de dar ao terceiro verso a «curva conceptual» que permita ao quarto «virar-se», como que em ponta, como bem observou o orientalista italiano A. Bausani, que esquematizou assim este movimento: 

 rubayat_estrutura_poetica

 

(Traduzimos de Omar Khayyâm, Cent un quatrains de libre pensée, traduit du persan et présenté par Gilbert Lazard, Paris, Gallimard, 2002, p. 15). O “ruba’i”, como as nossas quadras, vive solto, inteiro por si, raro em breves silvas tenuemente ligadas. “Ruba’iyat” classifica uma composição dessas (como o “Rubaiyat”, de três “ruba’is”, de Fernando Pessoa na Contemporânea (Ver) ou uma colectânea contendo os “ruba’is” de um autor, como o caso do célebre Ruba’iyat de Omar Khayyám. As edições de Ruba’iyat omariano são inumeráveis e praticamente em quase todas as línguas de cultura de livro, nossas contemporâneas, ou, até, línguas mortas, duas traduções em latim, ou línguas virtuais, uma tradução em esperanto. As fontes das edições de traduções ou são directas, sobre um dos manuscritos, em persa, contendo “ruba’iyat” atribuído a Omar Khayyám e considerado pelos peritos como “fiável”, ou tradução indirecta, de alguma tradução tornada favorita ou mais conhecida: sobretudo a de FitzGerald mas também a de Nicolas (em prosa, Paris, 1867); a de Rosen (em alemão, 1909; em inglês, 1930); e, mais próxima de nós, a de Toussaint (em prosa, Paris, 1925).

Para Fernando Pessoa foi fulcral a de FitzGerald feita a partir do manuscrito persa de 1460 da Bodleian Library de Oxford. Da edição saída num só volume, na Tauchnitz, (copyright de 1910; ver “Canções de Beber”), Fernando Pessoa manteve na sua biblioteca, anotado e com traduções manuscritas a lápis, um exemplar do relançamento, em 1928, da reimpressão feita em 1926. Além da tradução de FitzGerald, Fernando Pessoa manteve na sua biblioteca uma outra obra, T. H. Weir, Omar Khayyám, The Poet, London, J. Murray, 1926, de que traduziu (documento presente na B.N.: E3 / 66-42 r e v), 6 “ruba’is”: 3 conclusos e 3 inconclusos. Weir trabalhou igualmente sobre o manuscrito Bodleiano de Oxford e traduziu integralmente a colecção dos 158 quartetos aí contidos. Tradução mais próxima ao original persa, “ruba’i” a “ruba’i”, e usa um sistema rimático seguindo o original, que não é, fixamente, aaba, mas também, frequentemente, aaaa.

FitzGerald adoptou o pentâmetro jâmbico sem vacilações e ateve-se ao jogo rimático aaba. A sua tradução resultou num magnífico livro de versos em língua inglesa, nem sempre fiel ao original persa mas, como poesia, um êxito. Foi a sua tradução (sobretudo a 1ª edição, 1859, mas também as traduções refeitas, em parte, da 2ª, 1868, 3ª, 1872, e 4ª, 1879) que propagou o “Ruba’iyat” de Omar Khayyám como uma moda estética social em toda a região de fala oficial inglesa, não apenas em Inglaterra. Fernando Pessoa adoptou para os seus “ruba’is” criativos (Ver Canções de Beber) a estrutura e esquema de FitzGerald: decassílabo com a rima aaba, e a mesma decisão mantém para as suas tentativas de tradução espalhadas pelas páginas do seu exemplar da edição na Tauchnitz. Perfeitamente consciente do trabalho oficinal e apuro técnico que o “ruba’i” pedia, a ele se dedicou e, quanto à fidelidade ao original, seguiu, com certa ironia, o credo estético de FitzGerald. Escreve na folha de rosto da edição FitzGerald a seguinte nota: “O.K. foi, não o author, mas a inspiração de FitzGerald d’estes versos”; e na p. 245, no final do mesmo livro, enfatiza: “Traduzi-os, como os traduzira Fitzgerald, com justa e proba improbidade.”

Além das traduções que seguem uma escolha e leitura de “ruba’is” de Omar Khayyám na sua preponderância de intelectual de pensamento livre e mais céptico que piedoso, há as opções interpretativas de Omar Khayyám como um poeta místico (em Nicolas) e em que, por exemplo, o predominante topos do vinho é lido como uma metáfora, na embriaguez, do êxtase místico da união espiritual com a divindade. Fernando Pessoa seguiu FitzGerald numa leitura não críptica mas sim racionalista do que é o mais forte do ideário omariano: a liberdade de pensar e interrogar.

 

Bibl.: The Ruba’iyat of Omar Khayyám, translated by Peter Avery and John Heath Stubbs, Penguin Books, 1981 (1ª ed. Allen Lane, 1979), “Introduction” (Peter Avery), pp [7]-31; Maria Aliete Galhoz “Ainda as Canções de Beber na obra de Fernando Pessoa – as suas tentativas de tradução de Ruba’iyat de Omar Khayyám. Notas sobre um estado de pesquisa”, em Leituras, Rev. da Bibl. Nac., Lisboa, Série 3, nºs 12-13, Abril 2003-Abril 2004, pp 192-196; Alberto Figueira Jardim, O Poema de Omar Khayyám, 1932, Separata da revista Biblos, vol. VII, pp 463-481, e VIII, pp 73-91, Coimbra Editora, Coimbra.

                                                                        

Maria Aliete Galhoz