O termo Rosa-Cruz, tal como a doutrina do movimento que o instituiu, data do século XVII. Fica a dever-se a um conjunto de obras de que a Fama Fraternitatis da Venerável Ordem da Rosa-Cruz (1614) e a Confessio Fraternitatis (1615) são as mais importantes. A Fama… é reeditada nove vezes até 1616. Nesta data surge um outro texto de igual importância: Bodas Químicas de Christian Rosencreutz no ano de 1459. Aqui pretendia o seu autor, Johann Valentin Andreae, sugerir que a tradição seria anterior ao século XVII. O sucesso desta novela hermética a mais de um título, é retumbante; na Alemanha, em França, em Inglaterra terá seguidores e detractores de todos os lados (sendo estes os que denunciam a obra como herética e diabólica).

O fundo doutrinal é de facto complexo e confuso: contém matéria alquímica, paracélsica, hermética, oriunda da tradição renascentista do Corpus Hermeticum, traduzido no século XV por Marsilio Ficino. O aparecimento da Fama…, da Confessio…, e das Bodas Químicas… no século XVII não deixa de ser significativo. Observa Jean Servier, no seu Dicionário do Esoterismo, que assim se revela uma apreensão analógica de Deus e do mundo pelos pensadores daquele tempo. A rosa é a matéria espiritualizada, tanto na tradição cristã como na hermética e alquímica (a “rosa mística” é um dos atributos da mãe de Deus); e no Zohar a rosa é a figuração da presença de Deus no mundo. Dante, na Divina Comédia contempla a “rosa eterna”, na esfera dos Bem-Aventurados. Quanto à Cruz – John Dee (o Mago Isabelino, alquimista e astrólogo célebre) descreve-a na Monas Hieroglyphica como representando a Trindade Divina, o ternário corpo-alma-espírito (próprio dos alquimistas). Não admira que Johann Valentin Andreae, autor das obras citadas, escolha para seu brasão as duas imagens unidas: a Rosa no centro da Cruz. Paracelso escrevera que o homem, regenerado pela cruz, recebera depois um corpo espiritual de que a rosa era o símbolo. Vive-se, nestes séculos, em pleno imaginário hermético.

No século XX o movimento adquire dimensão mundial: a ordem de AMORC é criada em 1917 por Spencer Lewis (1883-1939), na Califórnia. Sucedem-se várias filiais, destacando-se como mais influente a de Rudolf Steiner (1861-1925) que propaga a doutrina antroposófica. Fernando Pessoa, bem informado e muito curioso destas teorias e práticas, adquiriu para a sua biblioteca vários autores que lhe permitiram entender em profundidade, e transformar em matéria poética, as doutrinas ocultas.Todas as doutrinas esotéricas interessaram o poeta. O seu Mestre, nas leituras que fez sobre Alquimia, Rosicrucismo e outras, foi A.E. Waite: The Real History of the Rosicrucians, 1887. Waite estuda os Manifestos (de Johann Valentin Andreae) e outros escritos de iniciados que ajudaram à idealização de uma utopia que é a do Conhecimento do Universo e de Deus. Mas Pessoa dificilmente quebra o laço da Inteligência e da Consciência para se entregar, como um místico, apenas à Evocação. É filho do racionalismo grego, tanto quanto do messianismo português. Nos escritos sobre os Rosa-Cruz Fernando Pessoa entrega-se à meditação dos símbolos:

“O termo Rosicruciano, ou se se quizer, Rosa-Cruz, é legitimamente empregado em trez sentidos, excluindo o maçonico, em que designa simplesmente um dos individuos que tem qualquer dos sete ou oito graus que, em outros tantos ritos, incluem esse nome em seus titulos e os symbolos correspondentes, bem ou mal dados ou entendidos, nos seus rituaes. Convém, porém, dizer Rosicruciano nos sentidos mencionados, deixando o Rosa-Cruz para o maçonico. Assim se evitam confusões. / Os trez sentidos legitimos, excluindo este quarto, são os seguintes. / Podemos dizer Rosicruciano um individuo pertencente à chamada Fraternidade da Rósea Cruz (não da Rosa-Cruz) — fraternidade da qual ninguem sabe nada, nem quanto aos componentes, nem quanto às doutrinas ou conhecimentos, nem quanto à história. / Podemos dizer Rosicruciano alguem que pertença à Ordem Rosicruciana, ou, até, a qualquer das ordens d’ella derivadas, ou que tal pretendem — a G.D., a A.A, e outras. / Uma ordem differe de uma fraternidade em que uma ordem tem graus e, em geral, ritual, ao passo que uma fraternidade — neste sentido restrictivo e definidor da palavra — os não tem. A Ordem Rosicruciana, a Ordem-Mãe, appareceu (ao que parece) no século dezassete, não se sabe bem onde nem como, desenvolveu-se, quantitativa e ritualmente, no século dezoito, em que se tornou maçonica — isto é, fez como condição de admissão o ser-se Mestre maçon sob qualquer obediencia seguida — e subsiste hoje, com certas rectificações, e de novo sem a condição maçonica. Na sua primeira phase creou ou transformou a Maçonaria — a “Ordem Externa”, como estes Rosicrucianos lhe chamam —, mas se creou, ou, se transformou, até que ponto se transformou, são coisas que ninguem hoje sabe, ou, se o sabe, ainda o não veio trazer até ao mundo profano.” (E3 53B-36).

Para que o adepto realize em si a dualidade activa de Deus, que é o seu objectivo, “é preciso, primeiro, que seja homem, pois a emissão é a primeira condição activa de Deus. É preciso, porém, que em seguida se torne mulher, o que só pode fazer ‘retirándo-se’ de ser homem, tornando passivo o que nelle se destinava a ser activo. De ahi a exigencia rosicruciana, não da simples castidade, que é uma ‘retirada’ temporaria ou condicional, e portanto relativa, mas da virgindade, que é a ‘retirada’ absoluta, identica, pois, enquanto absoluta, à ‘retirada’ divina.” (E3 53B-45). Ao adepto cabe recriar em si a mulher que já foi, nesses tempos divinos, diminuindo, ou apagando, o homem que actualmente é, no tempo da decadência. (A esta luz deve ser entendido um poema como Eros e Psique).

Estas notas deixam ver como o poeta se tinha familiarizado com as várias doutrinas esotéricas, de que a simbólica rosa-cruz é apenas um exemplo. Na tradição da alquimia chinesa encontramos uma expressão idêntica da via mística de realização. Por aqui se compreende melhor a impossibilidade da relação com Ofélia, o fascínio e o temor do oculto, a necessidade compulsiva de estudar e a preocupação com o prémio, que pode ser castigo, no final.

Todo o conhecimento tem um preço. Pessoa arriscou pagá-lo. Diz ele que o mistério (que é tudo) não é compreensível senão à emoção (Esp. 53B-54). Daí que se entregue à poesia, que reserve para o exercício da alma através da busca e da conquista da palavra o melhor de si mesmo. E deste modo preservando a verdade, a que alude, mas sem a revelar nunca por completo.

A busca da verdade para lá do aparente, da luz para lá das trevas, da sabedoria para lá da ignorância espessa e generalizada, é uma constante da sua vida. Vida e obra, neste aspecto, apresentam grande coerência. Um poema com o célebre No Túmulo de Christian Rosencreutz só é decifrável à luz dos apontamentos que o poeta nos deixou sobre o Rosicrucismo: trata-se de um conjunto de fragmentos incompletos, onde é descrito o movimento fundado na Alemanha do século XVII por Johann Valentin Andreae, e logo divulgado pela Europa inteira com uma intensidade que nem no século XX se pode dizer que diminuiu. A maior dificuldade que estes textos levantam aos estudiosos é a de distinguir, principalmente nos apontamentos em inglês, onde começam as ideias de Pessoa e onde acabam as transcrições, por vezes directas, dos autores de que se estava servindo para estudar ele próprio essas doutrinas. Veja-se, a título de exemplo, o documento 53B-40, onde o nome de Waite se encontra referido, acompanhando as notas sobre o Rosicrucismo.

Roland Edighoffer, conhecido historiador do movimento Rosa-Cruz, na sequência de um Arthur Edward Waite (The Brotherhood of the Rosy Cross, que Fernando Pessoa tinha na sua biblioteca), de um Will-Erich Peuckert (Das Rosenkreutz), de um Paul Arnold (Histoire des Rose-Croix…), apresenta os textos fundadores: a Fama Fraternitatis, a Confessio Fraternitatis e o Chymische Hochzeit Christiani Rosencreutz Anno 1459, com uma detalhada explicação do que é histórico e do que é ficção na própria elaboração do mito que bebe na tradição alquímica e paracélsica muito do que expõe. Trata-se de uma alquimia que difere, nas suas operações fundamentais, da pura transmutação de chumbo em ouro. O que propõe é uma mutação da alma (o chumbo aqui é a matéria humana, a criação decaída), uma regeneração, individual e social, que passa, antes de mais, por uma mudança de atitude face aos valores ditos normais da vida.

É sabido que pensadores como Bacon, Newton, Leibniz, se interessaram pelas doutrinas Rosa-Cruz. E na Alemanha, autores como Herder e Goethe não só se interessaram como revelam nas suas obras uma directa influência. (Goethe escreve, entre outras coisas, o longo poema Os Mistérios, onde expõe a sua visão de um espaço ideal que permite a uma sociedade, não menos ideal, de iniciados eleitos de todas as partes do mundo, um convívio tranquilo, em que cada um pode, em toda a liberdade, venerar o seu deus). A atmosfera que rodeia as suas obras faz lembrar, como nota Edighoffer, a do Casamento Químico, em que a magia das peripécias envolvendo os heróis corresponde a formas de iniciação. Fernando Pessoa pertence a esta linhagem. O que se encontra nele é exactamente o fascínio destes autores e das suas doutrinas, é a questionação profunda do meio que o rodeia, e o desejo de uma mutação, individual e colectiva, a que dá voz nos seus textos poéticos tanto como nos ensaísticos. A doutrina Rosa-Cruz, tal como Pessoa a entende, afirma a dualidade divina representada pelas imagens da Força (ou Energia) e da Matéria — ou, melhor dizendo, da emanação e imanação, que já se encontra na mística Kabalista.

“Das sociedades herdeiras dos antigos detentores da Sciencia sobrehumana, só uma, conhecida vulgarmente por a Rosa-Cruz, verdadeiramente herda a verdadeira Sciencia. Esta mysteriosa fraternidade, de quem ninguém pode ao certo affirmar nada, tampouco sequer sonhar que conheceu um dos seus adeptos, vela-se por completo da realidade, veio atravez das epochas occultas em meio da vida e dos povos” (53B-72 a 74).

O simbolismo Rosa-Cruz radica em pulsões fundamentais, arquetípicas, no sentido em que Jung as definiria. Dizem respeito ao colectivo, ao essencial, ao universal no homem. E, por universal, perene. A Rosa e a Cruz exprimem a união dos contrários, a anulação das tensões que finalmente se harmonizam, bem como (e só na aparência paradoxalmente) a fixação da energia cósmica, do movimento de expansão e retracção, do “pulsar” do divino — que se reencontra e recupera no adepto capaz de o questionar e entender. Saber, ou procurar saber, não basta. É indispensável viver de acordo com o que se sabe. A lição de Pessoa é a de uma aprendizagem, fiel medida em todos os seus contornos.

Christian Rosencreutz transformou-se ao longo dos tempos num mito: o do herói que de iniciando passa a iniciado e a Mestre. É assim que Pessoa o vê, no seu célebre poema, condensando de forma exemplar o que é a Busca e a perplexidade com que se fica: pois o caminho faz-se do caminhar e não há revelações imediatas. O segredo é a marca do eterno.

 

 

 

Bibl.: Waite, Arthur Edward, The brotherhood of the Rosycross…, 1924; Dictionary of Gnosis and Western Esotericism,ed. Wouter J. Hanegraaf, Brill, Leiden e Boston, 2005; Y.K. Centeno, Fernando Pessoa e a filosofia hermética, Lisboa, Presença, 1985; Idem, O Pensamento esotérico de Fernando Pessoa, Lisboa, & Etc., 1990.

 

 

 

Yvette Centeno