Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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Heterónimo de Fernando Pessoa, foi feito nascer pelo seu criador no Porto, embora num horóscopo se leia, depois da data de 19 de Setembro de 1887, 4h. e 5m. da tarde, em Lisboa. Conforme Pessoa o descreve, na conhecida carta a Casais Monteiro de 13-1-1935, era um pouco mais baixo, mais forte do que Caeiro, mas seco, «de um vago moreno mate»; fora educado num colégio de jesuítas e era médico e monárquico, vivendo, expatriado, no Brasil, desde 1919. O facto de ser «um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria» é adequado a um autor de poemas de índole pagã, que Pessoa afirma ter começado a escrever por volta de 1912. Mas Reis só terá tomado forma após a «descoberta» do mestre Caeiro, surgindo como seu natural discípulo. Num texto incompleto sobre a vida e obra de Reis (Prosa, p. 278), Pessoa afirma, contrariando em parte a versão de 1935, que o Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da sua alma no dia 28 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite, na sequência de «uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização, da arte moderna». Constrói, então, uma teoria neo-clássica com a qual antevê poder reagir, «tanto contra o romantismo moderno, como contra o neo-classicismo à Maurras». Reis vem, portanto, dar corpo a esta teoria e toda a sua obra por vir fará por confirmá-lo. De resto, diz Pessoa, na carta acima referida, que escreve em nome de Ricardo Reis, «depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode» e que pôs nele toda a sua «disciplina mental».

Com efeito, dentro do universo pessoano, é porventura este o heterónimo que exige a Pessoa um maior distanciamento e um maior poder de despersonalização. Ele mesmo o deixa entender a Casais Monteiro: «Reis [escreve] melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque mais espontânea, em verso». É compreensível, pois, que tenha sido sobretudo através da poesia, apesar do seu registo a contra-corrente, que Reis se impõe. A sua escrita, fiel aos cânones clássicos, concretiza-se, realmente, quase sempre em odes. Pessoa define-o, aliás, numa nota solta, como um «Horácio grego que escreve em português». O próprio heterónimo, num texto em prosa, reconhece que «Quem na infância leu Horácio no original, ainda que penosamente, poderá, adulto, escrever versos sem metro, ou sequer ritmo regular, mas qualquer equilíbrio haverá nesses versos que não conseguiria dar-lhes quem não teve esse passado, ainda que formalmente esquecido» (Prosa, p. 269). Devedoras da poética latina de Horácio, são, de facto, pela «forma da expressão», muitas dessas odes. Como Horácio, dirige-se a Lídia, usando o plural «nosso» e a 1ª pessoa do plural: «Quando, Lídia, vier o nosso outono / Com o inverno que há nele, reservemos / Um pensamento (...)», escreve numa ode de 13-6-1930; «Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. / Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos / Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. / (Enlacemos as mãos)», começa uma outra de 12-6-1914. Numa carta de 27-6-1914, o próprio M. de Sá-Carneiro considera as odes de Reis, «admiráveis», «uma maravilha de impessoalidade», pelo modo como «conseguiu uma “novidade” clássica horaciana». O modelo sintáctico horaciano é, com certeza, o que melhor se adequa à poética de Reis, fundamentada numa disciplina que age ao nível do ritmo. Diz ele, num apontamento em que se demarca da poesia de Campos, que «a ideia, ao servir-se da emoção para se exprimir em palavras, contorna e define essa emoção, e o ritmo, ou a rima, ou a estrofe, são a projecção desse contorno, a afirmação da ideia através de uma emoção, que, se a ideia a não contornasse, se extravasaria e perderia a capacidade de expressão», como acontece, precisamente, nos versos de Campos (Prosa, p. 208). A emoção poética exige, pois, uma disciplina do ritmo, isto é, nas palavras de Reis, «a frase, súbdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve» (Prosa, p. 211). Curiosamente, encontramos a mesma asserção numa das suas odes: «Ponho na altiva mente o fixo esforço / Da altura, e à sorte deixo, / E as suas leis, o verso; / Que, quando é alto e régio o pensamento, / Súbdita a frase o busca / E o scravo ritmo o serve.» Sobressai aqui, de algum modo, o artificialismo da linguagem poética de Reis, no extremo oposto da do mestre. Reis força-se, muitas vezes, à desarticulação sintáctica, tendo em vista a submissão do pensamento ao ritmo, criando, assim, um efeito classizante na sua poesia. É o que acontece em inúmeros exemplos, como numa conhecida ode: «As rosas amo dos jardins de Adónis, / Essas volucres amo, Lídia, rosas, / (...)»; ou nesta outra: «A nada imploram tuas mãos já coisas, / Nem convencem teus lábios já parados, / No abafo subterrâneo / Da húmida imposta terra./ (...)». No mesmo sentido de dar à expressão poética um «clima latinizante» (no dizer de J. Prado Coelho), vai o uso de latinismos, helenismos e arcaísmos vários, bem como de palavras com um significado muito próximo do etimológico. Nos modelos clássicos greco-latinos, colhe Pessoa-Reis a ideia de disciplina que organiza a sua poética. A Disciplina, escreve ele num texto em prosa, «é a única deusa ética dos estóicos» e «o estoicismo é a mais alta moral pagã» (Prosa, p. 88). É no estoicismo que vai beber a força para suportar o fatalismo da morte ou a dor de viver: «Sereno aguarda o fim que pouco tarda. / Que é qualquer vida? Breves sóis e sono. / Quanto pensas emprega / Em não muito pensares» (ode de 31-7-1932); «Ó deuses imortais, saiba eu ao menos / Aceitar sem querê-lo, sorrridente, / O curso áspero e duro / da strada permitida.» (ode de 5-5-1925); «Negue-me tudo a sorte, menos vê-la, / Que eu, stóico sem dureza, / Na sentença gravada do Destino / Quero gozar as letras.» (ode de 21-11-1928). É ao epicurismo que vai buscar a apologia da suprema indiferença: «Meus irmãos em amarmos Epicuro / E o entendermos mais / De acordo com nós-próprios que com ele / Aprendamos na história / Dos calmos jogadores de xadrez / Como passar a vida.// (...) Imitemos os persas desta história, / E, enquanto  lá por fora, / Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida / Chamam por nós, deixemos / Que em vão nos chamem, cada um de nós / Sob as sombras amigas / Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez / A sua indiferença.», lê-se no poema intitulado «Os Jogadores de Xadrez».  Ou a apologia do gozo comedido: «Prazer, mas devagar, / Lídia, que a sorte àqueles não é grata / Que lhe das mãos arrancam.» (ode XIX de Athena); «Cada dia dia sem gozo não foi teu: / Foi só durares nele. Quanto vivas / Sem que o gozes, não vives.» (ode de 14-3-1933).  É ainda no carpe diem de Horácio que se inspira, quando escreve «Vive sem horas. Quando mede pesa, / E quanto pensa mede.» ou «Tão cedo passa tudo quanto passa! /(...) / Circunda-te de rosas, ama, bebe / E cala. O mais é nada.».

Reis é, pois, como o seu criador, «um poeta animado pela Filosofia»: a filosofia dos antigos que faz sua e que Pessoa resume, pela voz de Campos, deste modo: «Conformemo-nos com esse universo externo, o único que temos, assim como nos conformaríamos com o poder absoluto de um rei, sem discutir se é bom ou mau, mas simplesmente porque é o que é. Reduzamos a nossa acção ao mínimo, fechando-nos quanto possível aos instintos que nos foram dados (...). Comamos, bebamos e amemos (sem nos prender sentimentalmente à comida, à bebida e ao amor, pois isso traria mais tarde elementos de desconforto); a vida é um dia, e a noite é certa; não façamos a ninguém nem bem nem mal, pois não sabemos o que é bem ou mal, e nem sequer sabemos se fazemos um quando supomos fazer o outro; a verdade, se existe, é com os Deuses (...). Nem crença na verdade, nem crença na mentira; nem optimismo nem pessimismo. Nada: a paisagem, um copo de vinho, um pouco de amor sem amor, e a vaga tristeza de nada compreender e de ter que perder o pouco que nos é dado – tal é a filosofia de Ricardo Reis» (Notas para Recordação do meu Mestre Caeiro, p. 51).

Dessa sua poesia neo-clássica, publicou Pessoa, em vida, um conjunto de vinte odes, sob o título Livro Primeiro, na revista Athena, nº 1, Outubro de 1924. Atendendo aos vários projectos existentes no Espólio, com vista à publicação da obra de R. Reis, as suas odes seriam organizadas em Livros  (de que previu, pelo menos, cinco). Este foi, no entanto, o único efectivamente acabado. Além desse conjunto, Pessoa fez publicar, dispersamente, na revista presença, entre 1927 e 1933, oito odes. Toda a restante produção poética de Reis foi, por conseguinte, publicada postumamente. A mesma coisa sucedeu, aliás, com a sua prosa. Muito menos conhecida, e até mesmo ignorada do grande público, esta é, ainda assim, de extensão razoável. Pessoa atribui ao seu heterónimo neo-pagão a tarefa de dar a conhecer o mestre e reconstrutor do paganismo Alberto Caeiro, prefaciando a sua obra poética. Embora Pessoa hesite, por vezes, quanto a esta atribuição, já que também António Mora aparece, em vários planos, incumbido da mesma tarefa de prefaciador de Caeiro, o nome de Reis prevalece nos textos destinados ao referido prefácio. Existem mais de quarenta fragmentos, onde se podem encontrar, na encenação de Pessoa, a reconstuição, feita por Reis a pedido dos familiares de Caeiro, da vida desse «grande Libertador, que nos restituiu, cantando, ao nada luminoso que somos; que nos arrancou à morte e à vida» (Prosa, p. 46) e a glorificação da obra do «maior poeta moderno». Esta obra surge como «um livramento e um repouso, um refúgio e uma libertação», para um espírito, como o de Reis, «que se sente exilado entre a confusão e a imperícia da vida contemporânea», para um pagão moderno, como Reis, «exilado e casual no meio de uma civilização inimiga» (Prosa, pp. 159-161). É também atribuída a Reis, a elaboração do chamado Programa geral do Neo-Paganismo Português, onde o autor declara: «nós, neo-pagãos portugueses, rejeitamos a obra cristã por completo, na sua forma directa, e nas suas formas indirectas» (Prosa, p.177). São estas formas: a democracia e todas as formas de governo anti-aristocrático, o humanitarismo, o feminismo, as «ternuras anti-científicas» como o vegetarianismo, o anti-alcoolismo, o anti-viviseccionismo, e o eugenismo, o princípio pacifista e os imperialismos modernos, de índole católica. Este programa é compatível com a defesa que Reis assume do Regresso dos Deuses e do Ideal Pagão (títulos de dois textos que lhe são igualmente atribuídos). E está também subjacente na forma como pugna, em vários textos em prosa, pela adopção da Ciência como disciplina intelectual, substituta das disciplinas sentimentais da religião e da moral, cristãs ou católicas. A única força intelectual na sociedade moderna é a Ciência, pois, como diz, é «a única coisa capaz de se opor ao ensimesmamento cristão e romântico» e, por isso, entre os homens cultos, «a Ciência substituirá a religião» (Prosa, p. 239-241). A sua acção disciplinadora provém da Inteligência em que se funda, ao passo que o Catolicismo, por exemplo, o que tem de disciplinador é «a intransigência e a rigidez do dogma». É na Grécia, que encontra, como se viu, as raízes dessa disciplina que repele o excessivo da emoção e se baseia num «racionalismo equilibrado». Ricardo Sequeira Reis (de seu nome completo, conforme a morada, escrita numa folha solta, dando-o como residente no Peru) escreveu ainda alguns textos contra Álvaro de Campos, como um intitulado «Polémica entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos quanto à classificação das artes», o que nos mostra como este heterónimo foi, realmente, concebido numa entreacção com os outros e, nessa conformidade, deve ser interpretado. Ele é o discípulo e o divulgador de Caeiro e ele é o contraponto ao desregramento de Campos. É este, por sua vez, que, nas suas Notas para Recordação do meu Mestre Caeiro, relata o encontro entre todos, definindo Reis como «um pagão por carácter», para quem a antiga civilização pagã era «uma memória querida da infância – uma educação que se entranha no ser». Seria, por isso também, encarregado da espinhosa tarefa, que não chegou a realizar, de traduzir poemas da Antologia Grega, de Safo e Alceu, o Prometeu Preso de Ésquilo e a Política de Aristóteles.

 

Bibl.: Álvaro de Campos, Notas para a Recordação do meu Mestre caeiro, ed. Teresa Rita Lopes, Lisboa, Estampa, 1997; Ricardo Reis, Poesia, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003.

 

 

Manuela Parreira da Silva