(1867 – 1930)
Nasceu na Foz do Douro (Cantareira), na rua que tem hoje o seu nome e dantes se chamava da Bela Vista. Da casa paterna, que então se destacava na «vila de pescadores e de marítimos», avistava-se o «mar diáfano ou colérico», cenário grandioso de uma infância marcada pelo desaparecimento do avô materno «com toda a tripulação do seu brigue»; pelo drama dos naufrágios costeiros; por figuras redivivas nas páginas das Memórias e d’Os Pescadores: a avó Margarida, o pai, armador de pesca e leitor de Camilo; a mãe, de quem herdou o amor pelas árvores e o sonho «que a devorou até final»; a velha criada Maria Emília, que lhe inspirou a ternura com que urde a personagem mais comovedora da sua ficção (Joana). Depois de passar por uma escola local, ingressa no Colégio portuense de S. Carlos. A rudeza da pedagogia merece-lhe esta nota: «há quem tenha saudades do colégio: eu sonho às vezes com ele e acordo sempre passado de terror» (BRANDÃO 1925, 1999 : 179). O confronto com uma realidade desconhecida, e por vezes brutal, leva-o a refugiar-se no sonho, espaço de resistência inexpugnável que se tornará um tema maior na sua obra. Em 1880, transita para o Liceu Central do Porto, onde virá a concluir os estudos liceais. Em 1888 «frequenta, como ouvinte, o Curso Superior de Letras» (CASTILHO 1979: 497) e colabora n’ O Monitor (Leça da Palmeira), onde publica os primeiros textos. A escolha da carreira militar leva-o a seguir os trâmites indispensáveis à aceitação da sua matrícula na Escola do Exército.
Impressões e Paisagens (1890) é o seu livro de estreia, colectânea de contos brevíssimos que, segundo a «Nota» de fecho, já «não representam a (sua) maneira actual de sentir nem de escrever». O esclarecimento ganha apreciável importância no contexto da literatura finissecular, quando o realismo‑naturalismo entra em fase descendente e uma plêiade de escritores novistas, insubmissos ou nefelibatas se proclama em ruptura com os cânones estéticos vigentes, embora, nalguns casos, não possamos ver mais do que prolongamentos ou reformulações de tendências anteriores. Por esta altura, junta-se ao grupo dos decadentes e simbolistas portuenses, de que fazem parte, entre outros, Justino de Montalvão e Júlio Brandão, a quem dedica o texto «O Nefelibata Júlio Brandão», publicado nas Novidades (1891) e tendo como pano de fundo o sofisticado meio artístico em que se moviam os jovens literatos da cidade invicta. As suas reuniões no atelier do pintor Inácio de Pinho são evocadas no folheto Os Nefelibatas, editado sob o pseudónimo colectivo de Luís de Borja em fins de 1891 ou no início de 1892, e de inegável interesse histórico-literário. Autorizada a matrícula no curso de arma de Infantaria (23 Out. 1891), Raul Brandão fixa residência em Lisboa por dois anos e inicia-se no jornalismo, escrevendo para O Imparcial. Relaciona-se com artistas plásticos como Celso Hermínio e Columbano, que o retratará em duas magníficas telas, a última das quais com sua mulher. Publica Vida de Santos (1891), de parceria com Júlio Brandão, e escreve para a Revista de Portugal («O Livro de Aglaïs de Júlio Brandão», Porto, 1892) e a Revista Ilustrada (Porto, 1892-93). Concluído o curso (Out. 1893), segue-se o estágio de oficial do exército na Escola Prática de Infantaria de Mafra (1894), após o que presta provas práticas como cadete no Regimento de Infantaria n.º 6, no Porto. É lançada a Revista d’ Hoje (Porto-Lisboa, 1894-96), que dirige com Júlio Brandão. Alguns dos textos que aí edita – a meio caminho entre a estesia dolorista e a utopia anarquista, o fragmentarismo autobiográfico e a ficção – serão recolhidos na História dum Palhaço (v. infra). Nos anos de 1895 e 1896 colabora assiduamente n’ O Correio da Manhã (dir. Pinheiro Chagas), escrevendo crónicas e narrativas breves sobre o tema da exclusão social em cenários urbanos de doença e delinquência. Alguns destes textos são células germinativas de futuros livros. Em Maio de 1896 é promovido e transferido para o Regimento de Infantaria n.º 20, em Guimarães, onde conhece Maria Angelina d’Araújo Abreu, onze anos mais nova e por quem se enamora. Após o casamento, em 11 Março de 1897, compra uma quinta na Nespereira, cuja «vivenda antiga à lavradora» se transformará na Casa do Alto. Este período da sua vida está abundantemente documentado no livro Um Coração e uma Vontade, de Maria Angelina Brandão (1959), que é também a sua primeira e rigorosa biógrafa. A publicação de História dum Palhaço (1896) assinala uma nova fase da vida literária de Raul Brandão, como é realçado por Justino de Montalvão na revista portuense A Arte (1898), ao apresentar o «Psicólogo e Poeta» cuja «prosa […] acutângula e mordida […] feita aos bruscos rasgões dolorosos […] dúctil e nervosa» parece «como nenhuma outra apta para estenografar o drama complexo desta era torturada de revoltado pessimismo e de misticismo niilista». Seguem-se dois textos de Brandão: um excerto do romance inédito A Vida e a Dor (nunca publicado); e «Uma carta» autobiográfica ao modo “nefelibata”. Em princípios de 1899 sobe à cena, no Teatro D. Maria II., A Noite de Natal, drama escrito em co-autoria com Júlio Brandão, e que é calorosamente saudado por Abel Botelho (Brasil-Portugal, 1 Fev. 1899). Neste mesmo ano, colocado a seu pedido no Quartel-General do Porto, passa a viver na Cantareira. Nomeado correspondente literário da revista Brasil-Portugal (1899-1905), Raul Brandão é também um dos seus principais colaboradores, publicando, entre outros textos, a “História do Batel Vai com Deus e da sua Companha” – dez quadros sobre a vida dos pescadores, vindos a lume em sucessivos números (1 Jan. – 16 Jul.) e que antecipam Os Pescadores.
Em 1901, depois de nova promoção, pede para ser transferido para Lisboa, passando a colaborar n’O Dia, n’O Século (supl. «Revista Literária, Científica e Artística»), no Diário de Notícias. O teatro D. Amélia leva à cena sem sucesso «O Maior Castigo», um novo drama escrito a solo, cujo original se perdeu. Segue-se a entrega, no Teatro D. Maria II, de uma peça em cinco actos de que também se perdeu o rasto (O Triunfo, 1902). Em 1903 é secretário de redacçãod’O Dia (dir. José Maria de Alpoim), onde publica uma série de reportagens não assinadas sobre hospitais, cadeias, manicómios, teatros; e inquéritos sócio-profissionais à vida dos pescadores, dos camponeses e dos operários. Em Maio de 1906, com a saúde abalada em consequência de um esgotamento nervoso, faz um cruzeiro pelo Mediterrâneo, em companhia de sua mulher, e visita várias cidades europeias. Em 1908, já tenente do exército, condecorado com a Medalha Militar de Prata de classe “Comportamento Exemplar”. É nomeado Cavaleiro da Real Ordem Militar de S. Bento d’Aviz (1 Jan. 1910) e obtém a patente de capitão (25 Jan. 1910). Pouco tempo depois pede a reforma e passa à disponibilidade (8 Jun. 1911). Há uma nota comovida sobre a morte do pai (23 Jul.) e da mãe (4 Ago.) no volume I das Memórias. Por Decreto de 17 de Fevereiro de 1912, é reformado no posto de Capitão de Arma de Infantaria. A sua saúde frágil contribuiu para que a carreira militar – seguida por pressão familiar e não por vocação (como ele próprio confessa) – fosse desde cedo feita nos serviços administrativos do Exército. Várias comissões de serviço permitiram-lhe desempenhar as funções de bibliotecário, mais adequadas à sua condição de escritor, e coligir materiais para uma história de Portugal que chegou a projectar. Sabemo-lo pela correspondência travada com Pascoaes, com quem se relaciona a partir de 1914, tornando-se sócio da Renascença Portuguesa, que edita a primeira edição de Húmus, e colaborador d’ A Águia, onde publica importantes textos. Esta amizade inter pares, feita de mútua admiração, fica selada pela co-autoria da tragicomédia Jesus Cristo em Lisboa (1927). A partir de 1912 passa a residir na Casa do Alto, consagrando-se à escrita e à exploração agrícola da sua quinta. Contudo, continua a passar os meses de Outono e Inverno em Lisboa, onde procura o convívio intelectual com os seus amigos, alguns dos quais integram o Grupo da Biblioteca, núcleo da Seara Nova, de que foi sócio fundador em 1921. A sede da revista, que ficava na praça de Camões, passa a ser um ponto de paragem obrigatória no seu habitual «périplo do Chiado» (CASTILHO 1979: 65, ss.). A alternância entre a vida rural e a vida lisboeta – depois de longas permanências na York House acaba por alugar um andar na Lapa – não se faz contudo sem regressos regulares à casa da Cantareira, frente ao Cabedelo. O último terá ocorrido entre 10 e 16 de Novembro de 1930: A Foz está viva! Tenho-a diante de mim [...]. A Foz vai doirando lentamente, ano atrás de ano [...]» (BRANDÃO 1923, 1973: 21-22). Em 31 de Maio de 1927 é nomeado sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. Morre em Lisboa, aos sessenta e três anos, na sua casa da Rua São Domingos à Lapa, deixando uma obra consolidada, a que se virão juntar dois livros inéditos, além da curiosa produção do «pintor das horas perdidas» que também foi.
Considerado em sentido lato como um escritor de desinência pós‑naturalista (LOPES 1987: 343) ou, numa perspectiva comparatista, como «exemplo paradigmático do escritor de transição» (MACHADO 1999: 13), Raul Brandão pôs radicalmente em causa as concepções estéticas vigentes na sua época, por uma vontade de ruptura indissociável da intensa vocação indagadora que sustenta a singularidade do seu projecto estético. Abolindo a oposição entre prosa e poesia, subvertendo as categorias genéricas, desvalorizando os elementos convencionais da narrativa, a ficção brandoniana antecipa as experiências mais inovadoras efectuadas no âmbito da narrativa contemporânea. É tempo de se reconhecer que o papel de Raul Brandão relativamente à novelística portuguesa contemporânea excede em larguíssima medida a importância que lhe tem sido atribuída, uma vez que, com ele, é um novo paradigma ficcional que está em emergência: o de uma ficção minada pela suspeita de que a vida é «uma mentira trágica» levantada «até ao céu a poder de palavras»[i]. Ler Raul Brandão hoje implica não apenas um confronto com os problemas teóricos que a sua obra levanta, mas também a necessidade de os avaliar em função do efeito de ruptura que ela produziu. Sem deixar de interrogar criticamente o seu tempo, a escrita de Brandão surge hoje aos nossos olhos como uma extensa, profunda e dilacerada meditação sobre a condição humana face à finitude. Se essa meditação não teve condições para frutificar num terreno tão visceralmente adverso à especulação metafísica, apesar de se desenvolver no âmbito de uma experiência estética investida pelo pathos de uma subjectividade interpelante, contribuiu, no mínimo, para reforçar o estatuto ambíguo da sua obra, embora tal ambiguidade tenha sido frequentemente interpretada como o reflexo de uma deficiência estrutural, e não como um inequívoco sinal de modernidade extrema. Segundo certa crítica, tratar‑se-ia mesmo de uma absoluta incapacidade de construção narrativa, argumento que tem servido para aferir a sua grandeza por defeito. Raul Brandão é autor de uma obra vasta e multímoda, que se reparte por vários géneros – ficção, teatro, memorialismo, literatura de viagens, ensaio historiográfico – além de ter cultivado a crónica jornalística e diversas modalidades de crítica (literária, teatral e de artes plásticas). Contudo, por ela se projectar muito para além do horizonte estético do seu tempo, nem sempre beneficiou de uma recepção crítica que estivesse à altura de a julgar na justa medida da sua grandeza, não obstante o seu assinalável êxito num meio literário restrito. No prefácio a Memórias (vol. I, 1919), datado de Setembro de 1910, Raul Brandão define lapidarmente a condição trágica do homem moderno, apontando simultaneamente o fundamento da sua angústia existencial: «A nossa época é horrível porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem tecto, entre ruínas, à espera...» (1919, 1998: 36). Sob o signo do desastre, a sua obra não é mais do que a expressão sublime da renúncia à felicidade da escrita – uma escrita que traz consigo o germe da destruição de qualquer sentido estável, que representa o irrepresentável, que dá a ver o invisível, que dá a ouvir o silêncio mortal que cerca cada palavra. Se a arte de Raul Brandão surge muitas vezes na fronteira da vida com a literatura, é porque ele concebeu a função do escritor em termos autenticamente modernos, isto é, em íntima conexão com uma atitude intelectual que a cada momento reivindica o livre exercício do espírito contra todas as formas de degradação dos valores humanos e contra todos os dogmas. A sua intuição estética leva‑o a conciliar a herança romântico-simbolista com uma mundividência agónica e paradoxal, alimentada pelo radicalismo crítico que é o nervo da sua criação.
O seu livro de estreia, Impressões e Paisagens (1890) é uma colectânea de contos brevíssimos que, segundo a «Nota» de fecho, já «não representam a (sua) maneira actual de sentir nem de escrever». O esclarecimento ganha relevo no contexto da literatura finissecular, quando o realismo‑naturalismo entra em fase descendente e uma plêiade de escritores novistas, insubmissos ou nefelibatas se proclama em ruptura com os cânones estéticos vigentes, embora, nalguns casos, não possamos ver mais do que prolongamentos ou reformulações de tendências anteriores. No ano de 1890, depois do Ultimatum, abre‑se uma crise política que vem agudizar o sentimento de uma irreversível decadência nacional, herdado da geração dos vencidos da vida, de que Antero é o símbolo sacrificial. Sob o impulso de várias influências, por vezes contraditórias, a nossa estética finissecular, impregnada de satanismo e transfundindo o spleen baudelairiano no pessimismo de Schopenhauer, depressa se diversifica em tendências de sinal contrário, que oscilam entre o puro esteticismo e o panfletarismo literário. Comuns aos movimentos europeus que despontam por essa época são, em doses variáveis, os temas da revolta individualista, ou da fraternidade mística, o ódio à burguesia, à sua moral, aos seus valores, às suas instituições, a atracção pelo anarquismo utópico, pelo espiritismo, pelas ciências ocultas, pela heterodoxia religiosa – e um niilismo prolixo, que deixa entrever no horizonte o advento de futuros messianismos redentores. De tudo isto encontramos ecos na Revista d’ Hoje e nas publicações literárias da época. As correntes que ganham terreno no fim do século (decadentismo, simbolismo e neogarretismo), e que reflectem as novas tendências estéticas, são o resultado quer da «influência do estrangeiro», quer da «regressão ao génio nacional», expressões utilizadas por Moniz Barreto no ensaio intitulado «A Literatura Portuguesa Contemporânea», publicado na Revista de Portugal em 1889, e onde o crítico aponta à nova geração «um vasto campo de actividade e reforma». É interessante constatar que o folheto Os Nefelibatas, editado no Porto e tendo como presumíveis redactores Raul Brandão, Júlio Brandão e Justino de Montalvão, fica a meio-termo entre a paródia e o manifesto. Na revolta contra uma Tradição caduca e na dogmática que aí se enuncia, devemos ver mais do que uma atitude snob e local de importação estrangeira. Trata-se, sim, de uma manifestação do espírito iconoclasta europeu que fará eclodir as vanguardas do século XX e ganhará uma irreprimível força no contexto literário português. A rejeição dos modelos literários do passado e a recusa de qualquer inscrição social ou religiosa levam os jovens nefelibatas a fazer uma profissão de fé no anarquismo intelectual. Apresentam-se como «uma legião indisciplinada, não inscrita no recenseamento da Tradição ou no recenseamento da Academia, fora do Manual do Bom‑Tom, em revolta com o Padre‑Eterno e o Dicionário de Rimas de Castilho […] Ateus do Preconceito e da Opinião Pública [...] não professando nenhum culto, nenhum Evangelho, nem o do Classicismo nem o do Catolicismo, cuspindo em todas as hóstias consagradas dos ritos burgueses. Anarquistas das Letras, petroleiros do Ideal, desfraldando ao vento sobre os uivos e os apupos dos sebastianismos retóricos o estandarte de seda branca da Arte Moderna!...» (apud GUIMARÃES 1988: 31).
Raul Brandão é aqui retratado como «o alto e loiro filho de marinheiros», em cuja «compósita intelectualidade» são reconhecíveis duas faces: a diurna, «a das claras e azuis vagas»; e a nocturna, a «do claro‑escuro pesadelo, a fase torcionada e alucinada da sua nevrose». Uma das passagens mais significativas do opúsculo é aquela em que podemos reconhecer – ainda que saída por blague da pena de Luís de Borja – a fórmula estética em que se baseia o ideário artístico de Brandão: «A arte é a Sinceridade: cada um deve escrever como numa confissão» (ed. cit., p. 38). O seu sentido é completado mais adiante: «[…] um livro devia ser uma confissão, com uma personagem única, o autor: – A autobiografia, bem simplificada, é em breves linhas a teoria de Arte que me parece a mais simples, a mais natural, a mais humana. / Ninguém como K. Maurício pôs em prática esta teoria de arte» (p. 40). Esta figura literária, criação exclusiva de Raul Brandão, é o protótipo do artista decadente e nevropata, que vive para a Arte sem a dissociar da Vida: «assim decidiu deixar um livro sofrido. [...] o seu livro Confissão é uma autobiografia estranha, de uma tristeza indefinida. K. Maurício para escrever esse livro fez‑se uma doença de medula» (ibidem).
A recuperação desta figura nas páginas do Correio da Manhã (1895-96) e nos dois primeiros números da Revista d’ Hoje (1894‑95) explica o subtítulo do seu segundo livro: História dum Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício), publicado em 1896. A fórmula estética d’Os Nefelibatas está, pois, na base de um programa estético que alcança aqui o primeiro desenvolvimento consequente É com este livro que a nossa modernidade literária conhece uma nova direcção, marcada pela dualidade e pela negatividade. Numa espécie de prefácio («K. Maurício»), Raul Brandão apresenta‑o como «autor» póstumo de um conjunto de inéditos, «amálgama de lama e de dor», de que destaca um «romance incompleto [...] que é quase uma autobiografia» e corresponde à «segunda parte» do livro («O Palhaço e o Amor»). A «primeira parte», constituída por excertos «dos seus papéis» e pelo seu «Diário», abre com uma introdução de três páginas. A terceira parte, «Os Seus Papéis», inclui quatro pequenas narrativas (1896, 2005: 7-16). De K. Maurício, figura quase sempre vista como o alter ego ficcional de R. Brandão, quase se diria ser um heterónimo de vida curta, que tendo surgido com Os Nefelibatas ganha alguma consistência nas publicações subsequentes. A sua filosofia, timbrada pelo pessimismo finissecular, salda‑se numa voluptuosidade niilista em que a morte surge como a única saída para o desespero existencial. Se uma estética está necessariamente ligada a uma concepção do mundo, este livro pode ser visto como um libelo anarquista em que a estrutura fragmentária e o recurso à elipse traduzem no plano estético o desejo de destruir um corpo social repulsivo e de desarticular os valores que o perpetuam. Num artigo publicado em dois números da Revista d’ Hoje («O Anarquismo»), Brandão já expressara de modo eloquente a sua compaixão pelos excluídos, através do discurso veemente do filófo Pita cujas palavras transitam para a História dum Palhaço. Por conseguinte, os grandes temas brandonianos já aqui comparecem esboço: a dualidade do «eu», o sonho, a vida como ilusão, a dor, a miséria, a marginalidade, a morte, o grotesco e o absurdo da condição humana. Essa rede temática é o substrato de uma construção simbólica onde já se torna patente o pendor expressionista de toda a sua obra e um inconformismo estético que afirma uma postura inequivocamente moderna, reveladora de um poder de negação não assimilável às tendências literárias da época. O desdobramento da narrativa, a dualidade dos narradores, a fuga ao sentido comum – à doxa – através de um discurso paradoxal que se organiza por meio de uma técnica de ascensão metafórica e do recurso frequente a figuras como a antítese, o oximoro, o quiasmo, são alguns dos aspectos que terão mais amplo desenvolvimento em obras posteriores, e que atingirão toda a sua magnitude no Húmus. A «utopia» e a «fé num ideal» são aspectos vitais do anarquismo que Brandão transpõe para a sua obra e que, na sua configuração disfórica, assumem uma ressonância trágica: desde as produções juvenis até às da maturidade, que se inscrevem já num sistema estético‑literário específico, onde avultam as antinomias defluentes da dicotomia vida/arte. A atracção de Raul Brandão pelo jornalismo traduz o desejo de superar esta e outras dualidades, uma vez que, através do exercício da crónica ‑ o seu género predilecto ‑, foi possível transgredir‑lhe as fronteiras e transformá‑lo numa forma artística de intervenção imediata e de alcance ético: naquela «arte de situação», preconizada por Proudhon, que é «função do tempo e do lugar». Neste aspecto, é elucidativo que Raul Brandão dê tanto realce à função testemunhadora do jornal no folheto O Padre (1901). Nas páginas vibrantes do opúsculo, em que se evidencia a heterodoxia do autor, adquire expressivo relevo a temática da revolução social. Na interpretação de T. Ramires Ferro, ela decorre de um dos motivos centrais e obsessivos do seu pensamento: a desagregação do presente histórico e o fim da civilização. Posteriormente, essa temática cristalizará na imagem da insurreição popular e ligar‑se‑á ao tema da palingenesia, como acontece na tragicomédia Jesus Cristo em Lisboa (1927) e numa das suas obras publicadas postumamente: O Pobre de Pedir (1931).
Raul Brandão escreve Os Pobres entre Maio de 1899 e Janeiro de 1900, mas o romance só é publicado em 1906. O livro assinala o início de uma nova fase de criação literária, em que o autor, nas palavras de Guilherme de Castilho, «assume plenamente a responsabilidade do seu destino de artista» (CASTILHO 1979: 165]. Para o seu relativo êxito terá certamente contribuído a «Carta‑Prefácio» de Guerra Junqueiro, uma das grandes figuras literárias da época, datada de 1902‑3 (1906, 1984: 33-48). Mas o aspecto mais importante prende‑se com o facto de a obra reflectir o contacto do seu autor com uma realidade urbana onde os contrastes sociais se revelam chocantes. O impacto dessa experiência, proporcionada pela actividade jornalística, reforça o seu desinteresse por uma literatura de moldes convencionais e leva‑o a explorar os caminhos abertos pela narrativa simbolista, em que a história se dilui e as personagens, mais poéticas do que romanescas, são ícones de uma visão trágica da existência. A simpatia de Raul Brandão por aqueles que habitam as margens de uma sociedade «dominada pelo oiro», onde impera a lei do mais forte pelo mesmo determinismo que governa a Natureza, torna‑se o motor da sua criação estética. Se esta é herdeira de um Romantismo social de inspiração saint‑simonista e lamartiniana, onde a influência de um Michelet e, sobretudo, de um Proudhon ‑ que preconiza «uma arte nova, concebida nas entranhas da Revolução» ‑, se conjuga com o visionarismo épico‑metafísico de um Victor Hugo, a verdade é que, tanto pelo sopro de inconformismo que a percorre, como pela capacidade inovadora que traduz, ela transpõe num surpreendente isolamento o limiar de uma Modernidade extrema.Com Os Pobres, é‑nos revelado o mundo dos excluídos ‑ ladrões, prostitutas, órfãos, sonhadores, fracos ‑, cuja vida é «um rio de lágrimas, de brados, de mistério»; o «enxurro humano», feito de seres segregados por uma sociedade implacável, a quem só resta a escolha entre a violência e o sonho. É através do sonho que todas essas personagens sublimam a violência que as tenta, padecendo a dor de existir numa sociedade que resultou da «vitória dos arrogantes sobre os humildes, dos fortes sobre os débeis, da besta sobre o anjo», diz Guerra Junqueiro (1906, 1984: 38). A dor, por detrás da qual se desenha uma Dor maior, de cariz metafísico, universal e redentora, que faz do pobre um mártir. Perante a omnipotência do Destino e a inelutabilidade do sofrimento, a vida dos pobres parece encontrar o seu derradeiro sentido no próprio processo de degradação física e moral que conduz ao desespero e à abjecção grotesca. Mas a via negativa da degradação alarga‑se inesperadamente para uma dimensão transcendente, em que o sofrimento individual se transfunde num dolorismo universal que adquire um valor salvífico. Na meditação brandoniana, onde se repercute o miserabilismo patético de Victor Hugo, prolongado pelo alegorismo social e panteísta da poesia anteriana e pelo dinamismo pampsiquista de Junqueiro. Se o romance traz ao primeiro plano a realidade sociológica que é o pobre, segundo Vitor Viçoso (1906, 1984: 15, ss.), o seu sofrimento assume um sentido messiânico, porque através dele se repete o mistério crístico da redenção. Sem um fundamento ético de inspiração cristã, a dor dos pobres seria inaceitável e absurda. Contudo, a meditação de Gabiru ultrapassa de modo inesperado este sentido implícito, para colocar a questão do sofrimento na dependência de uma vontade obscura e omnipresente que se exerce sobre todos os seres da criação. Mesmo assim, a sua filosofia acaba por superar o pessimismo e encontrar, através de um desvio poético, uma justificação para a dor no prodigioso processo alquímico que faz com que a matéria se transforme em sonho e a dor em beleza (VIÇOSO 1999: 210, ss.). As personagens do romance aparecem directa ou indirectamente referidas a um espaço comum: um velho casarão «de pedra e de sonho», em cuja mansarda vive o filósofo Gabiru, alter ego do narrador que transitará para Húmus. O seu papel é essencial na estratégia de enunciação dialógica aqui ensaiada e relançada no Húmus. Na filosofia do Gabiru, que ocupa vários capítulos da obra, o ideal utópico não é redutível à ideia de igualdade preconizada por uma qualquer teoria social colectivista, nem ao postulado ético do triunfo do Bem sobre o Mal, uma vez que se abre a um sentido último, informulável e inatingível pela via da razão, mas de que a intuição tem uma clara presciência. A concluir estas brevíssimas reflexões sobre Os Pobres, sublinhe-se a presença do grotesco (na sua revivescência hugoliana) e o papel que ele desempenha na subversão das categorias narrativas. No que toca a este livro, podemos falar de uma anamorfose generalizada que é signo de uma visão trágica da realidade humana e que se coaduna com um estilo forte e fracturante.
Quando Raul Brandão publica A Farsa, em 1903, vinda a lume antes de Os Pobres, o Neo‑Romantismo lusitanista encontra‑se em franca ascensão. É ao arrepio desta corrente literária, cujo ideário edificante e nacionalista se irá impor, que Raul Brandão prossegue o seu caminho, ensaiando uma nova forma discursiva afectada pelo «desencanto do mundo» (Max Weber). A Farsa coloca, tal como os livros anteriores, o problema da sua classificação genérica: o quadro inicial (uma cena intensamente teatral que antecipa o clima de O Avejão); a linearidade temporal; a concentração temática (que não impede ocasionalmente uma certa dispersão); a focalização quase constante da personagem central, à volta da qual poucas mais gravitam, a catástrofe final, aproximam‑na mais da novela que do romance. Mas o que chama a atenção do leitor é a dissolução da fronteira entre a narrativa e o drama (a prosa poética de Os Pobres levou João Gaspar Simões a considerar o seu Autor «mais poeta que romancista», num texto publicado no n.º 9 da revista Tríptico, que assinala a segunda edição bastante refundida desta obra, em 1925), vindo a sugestão de teatralidade do próprio título. Se o assunto do livro é o ódio recalcado de Candidinha, que lhe alimenta o sonho de uma vingança perpetrada até ao mínimo detalhe, a representação é o seu tema, facto que pode explicar determinadas opções a nível da construção narrativa. O tema do theatrum mundi atravessa toda a sua obra de Brandão. A comparação da existência humana com uma representação teatral e a duplicidade do ser humano são temas que voltam a estar na moda no modernismo, conhecendo registos novos e surpreendentes em Pirandello e Valle‑Inclán. O tema da máscara aflora em História dum Palhaço, mas só ganha verdadeira espessura nas reflexões do Gabiru sobre a dicotomia sinceridade/fingimento: «[...] se quiseres viver com os outros tens de representar. [...] tens de afivelar a tua máscara igual à do homem que precisas de conquistar» (1906, 1984: 132). Na prodigiosa novela que é A Farsa, a“filosofia” do Gabiru» repercute-se no discurso ferozmente crítico do narrador: «[...] todos nós somos mais ou menos actores para levarmos a vida a termo. Tudo na natureza cumpre o seu destino com gravidade ‑ só o homem é histrião» (1903, 2001: 70). Afirmações como esta fazem ressaltar com toda a nitidez a coerência de pensamento que presidiu à criação genial de Candidinha ‑ uma personagem absolutamente ímpar na literatura portuguesa e que constitui um modelo acabado de dissimulação e de ressentimento. A sua provável filiação queirosiana, pelos traços que nela apontam um certo parentesco com a Juliana do Primo Basílio (LOPES 1987: 335-6), em vez de a diminuírem, engrandecem‑na: em ambas surpreendemos o mesmo espírito de vingança, alimentando uma revolta insidiosa; e a mesma implacável frieza na execução de um plano maquiavélico a que não é alheia uma componente sádica. Também nos dois casos o triunfo do fraco é conseguido através da exploração oportuna de uma fraqueza do poderoso, que se torna na presa odiada de um carrasco impiedoso e amoral. A resistência de Candidinha à humilhação e ao sofrimento vem‑lhe da sua natureza dúplice e se o seu sonho de desforra acaba por ruir como um castelo de cartas, é porque o desastre estava inscrito no seu destino. Cumpri‑lo é falhar o seu sonho – «o sonho que não triunfa» – e refluir à zona de opacidade maléfica onde já só lhe resta a máscara. Mas «a máscara, por mais que se queira, já a não consegue arrancar. Afivelou‑se‑lhe para sempre à cara. Seu castigo é esse» (1903, 2001: 186). Em R. Brandão, o “sentimento trágico da vida” é inseparável do tema da representação e da força obscura do sonho, o que o coloca na antecâmara do nosso modernismo, cujas fronteiras podem ser hoje redesenhadas com maior precisão. Há porém outras dimensões de teatralidade que A Farsa nos apresenta, sendo uma das mais fascinantes aquela que se prende com o projecto de um «teatro cinematográfico», anunciado na 1.ª edição de Húmus, e que se malogrou. Contra todas as convenções de género, a vida de Candidinha é apresentada como uma sucessão de cenas e quadros de intenso visualismo que estão próximos do cinema expressionista [Reynaud, 2004: 83, ss.]. O comportamento do narrador omnisciente não prima pela coerência: ora subalterniza as personagens com as suas intervenções directas, ora se limita a comentar a acção, podendo mesmo esvaziar‑se até ao ponto em que os comentários dão lugar a simples didascálias. Apesar do afastamento das normas da novela clássica, A Farsa é, mesmo assim, o livro «que mais se conforma com as regras (do) romance» e com as liberdades formais que se tornam correntes na narrativa posterior. (CASTILHO 1979: 210-11). A sua leitura coloca-nos no cerne da arte brandoniana – a sua vocação expressionista: «A morta continua a sorrir, com os dentes arreganhados e um lenço apertado no queixo, numa imobilidade pétrea (…). De quando em quando uma boca mastiga no escuro» (1903, 2001: 52).
Entre a publicação de Os Pobres (1906) e Húmus (1917), Raul Brandão dedica-se ao estudo de temas históricos que o apaixonam, acabando por ceder à tentação de publicar uma série de ensaios onde a história se recria à luz do drama trágico e grotesco das figuras que a protagonizam: El‑Rei Junot (1912); A Conspiração de 1817 (1914), reeditada três anos mais tarde com o título de 1817 ‑ A Conspiração de Gomes Freire (1917) e o «Prefácio» ao Cerco do Porto ‑ Pelo Coronel Owen (1915). A sua concepção da História como drama humano é enunciada no capítulo introdutório de El-Rei Junot: «A história é dor, a verdadeira história é a dos gritos. (...) A verdadeira história é imaterial; é, (...) a história da consciência humana que pouco e pouco se aproxima de Deus» (1912, 2007: 23). É a sua atenção à história viva, in fieri, que explica o vasto acervo de notas coligidas ao longo de muitos anos e a partir das quais Raul Brandão redige os dois primeiros tomos das suas Memórias, deixando um terceiro inacabado. No primeiro volume (1919), os textos mais recentes são de 1918: «Prefácio» (Aos Mortos) e último capítulo, «O Mundo Político» (1919, 1998: 31-39; 233), embora o A. inclua textos muito anteriores, que se reportam a 1900), havendo uma maior incidência no período final da monarquia, onde se destaca o relato do regicídio. O segundo volume abre com o magnífico trecho intitulado «O silêncio e o lume» (1925, 1999: 39-48), datado de 1924, e incorpora textos cujas datas oscilam entre 1910 e 1923, sendo de assinalar os que dizem respeito à implantação da república e ao período revolucionário subsequente. O terceiro e último volume (1933), intitulado Vale de Josafat – e editado postumamente – , abre com o conhecido texto de confissão autobiográfica, «Balanço à Vida» (1933, 2000: 35-48), geralmente visto como um dos mais significativos escritos de Brandão, e considerado pelos seus biógrafos João Pedro de Andrade e Guilherme de Castilho o seu «testamento espiritual». Apesar de a organização do volume não obedecer a um critério cronológico, é curioso verificar que os textos mais antigos, que Raul Brandão deixou fora dos outros volumes, são de 1911; e o mais recente, de 1930.
Húmus é não só a obra-prima de Raul Brandão, mas «uma obra-prima em qualquer literatura» (MOURÃO-FERREIRA 1992: 181). Por várias razões, o livro ocupa um lugar à parte no conjunto da ficção brandoniana: publicado em 1917, foi posteriormente submetido a um profundo trabalho de refundição, de que resultaram mais duas versões: a de 1921 e a de 1926, que corresponde à edição «de última mão» (ne varietur), resultante da sua derradeira intervenção, a quatro anos da morte, e representando a sua última vontade (BRANDÃO 1917, 2000). Esta submissão periódica do texto a um processo de reescrita, de que há significativos ecos na correspondência trocada com o poeta Teixeira de Pascoaes, constitui um dos aspectos mais perturbantes da obra. Sabemos também, através do precioso testemunho de Câmara Reys, que Raul Brandão considerava o Húmus a sua melhor realização literária: «Tenho essa afirmação, do seu próprio punho, na dedicatória dum exemplar da 2.ª edição desse livro» [Reys, 1942: 102-3]. Esta informação, saída da pena de um escritor que raras vezes se referiu à sua própria obra, revela uma ponderável capacidade de autocrítica. Numa carta escrita a Albino Forjaz de Sampaio pouco tempo antes de morrer, e na qual se escusa a redigir uma autobiografia literária com destino à «Colecção Patrícia», faz um balanço sintético da sua obra, sem deixar de referir o Húmus: «Tenho horror às palavras postas umas ao lado das outras, em préstito (...). O que eu procuro encontrar nos livros é humanidade e outra coisa viva que se pega para todo o sempre ao papel e à tinta» (Diário de Notícias, 6 Dez. 1930). Quando em 1927 José Régio fala de «Literatura Viva», no n.º 1 da Presença, definindo‑a como «aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria», há uma notória ressonância de Raul Brandão, a quem três anos antes dedicara um clarividente artigo na Bysancio: «Raul Brandão compraz‑se em denunciar nos homens, a par da vida quotidiana e aparente, a vida íntima, profunda e verdadeira. Esta vida, que todos os seus personagens vivem com uma intensidade dolorosa, pesquisa‑a Raul Brandão com audácia, com obsessão, quase com ferocidade, num estilo que lhe vem dos nervos, todo em golpes e em gritos» (6 Jan.1924). Voltando à Presença, é sintomático que um dos autores escolhidos para exemplificar essa espécie de literatura, a que ele opõe a «literatura livresca», seja Raul Brandão (“Literatura Livresca e Literatura Viva”, Presença 9, Fev. 1928; RÉGIO 1977: 46-7), Todos os elementos valorizados no ensaio Em Torno da Expressão Artística (1940) estão presentes, por antecipação, em R. Brandão que, nas palavras de Régio, é «um visionário do grotesco, possui um modo próprio de exprimir e sentir, é um psicólogo fragmentário, mas audaz e lúcido...» (RÉGIO 1977: 49). A «intuição psicológica», a qualidade que ele mais admira em Brandão, é indissociável do conceito regiano de «expressão». «Um artista é (...) um homem que possui faculdades anormalmente desenvolvidas; que possui a necessidade de as realizar pela exteriorização», ou seja: pela expressão» (“Lance de Vista”, Presença 6, Jul. 1927; RÉGIO 1977: 36). Ora Régio «faz depender a «individualidade artística» de uma personalidade humana excepcional, capaz de garantir a originalidade» e a «sinceridade» da arte. A «outra coisa viva» de que fala Brandão extravasa desta (ou de qualquer) definição: enraíza no fundo obscuro da natureza humana, com os seus tumultos e as suas tensões irresolúveis; nas profundezas abissais do «eu», onde as tensões dilacerantes se acumulam; na zona inefável do ser. Por tudo isto, a sua obra tem uma dimensão ontológica que é rara na nossa literatura ‑ e que a projecta num horizonte pouco familiar. Como escreve Gaspar Simões, «visitado pelo Anjo da Morte», expressa na sua obra o que ele viu com os seus segundos olhos» (SIMÕES 1931, 1971: 111).
A existência de três edições originais abre a possibilidade de outro tipo de abordagem que, partindo do seu confronto, procure demonstrar a razão profunda de um trajecto onde a ideia de perfeição se confunde com a busca progressiva de uma verdade interdita ou inacessível. Deste modo, a obra torna-se espelho de uma mobilidade espiritual que é indissociável do sistema de pensamento que recusa a identificação hegeliana da verdade com a totalidade, para apenas reivindicar uma verdade fragmentária, regida pelo princípio do inacabamento (REYNAUD 2000). Em Húmus (um diário lacunar que se reporta a uma temporalidade puramente simbólica), a escritafaz-se e refaz-se no compulsivo work in progress de um texto sempre futuro. Tudo se passa como se ela buscasse, na espiral do pensamento que a mobiliza, o livro onde a palavra e o tempo mutuamente se abolissem – «le livre à venir», na bela expressão de Blanchot. A vila fantasmagórica de Húmus, verdadeiro personagem deste romance poético, é habitada por figuras decrépitas e com nomes burlescos (Dona Procópia, Dona Biblioteca, Elias de Melo, Melias de Melo, Dona Restituta, Dona Bisbórria, o padre Ananias, etc.), cujo quotidiano é registado por um narrador anónimo, numa espécie de diário fragmentário e elíptico. O narrador tem porém um alter-ego: Gabiru, o filósofo louco, o alquimista do sonho, que é o contraponto dialógico da sua voz, ou melhor: da sua consciência desdobrada, onde se repercutem, recalcitrantes, as vozes exteriores das velhas cujo sorriso é um esgar, numa vertiginosa duplicação enunciativa. Através da sua ilimitada capacidade de sonho e das suas experiências alquímicas, o Gabiru consegue banir a morte da vila. Mas, com a supressão da morte desapareceram o céu, o inferno e Deus. O pânico, a degradação e o caos grassam numa vila que se torna ainda mais grotesca pela irrupção de um absurdo maior. A «intriga», no sentido clássico do termo, não existe, embora o narrador não deixe de ligar cada uma das personagens a uma história pessoal, em que o dever se contrapõe à violência dos recalcamentos. Destaca-se entre as demais Joana, a única personagem positiva e com consistência diegética (cf. «A mulher da esfrega», «A velha e os ladrões», «A árvore» (1917, 2000: 123; 155; 201), que concita a ternura do narrador. Cria-se assim uma acção simbólica, dominada pelo tema da duplicidade do ser, que serve de suporte a uma meditação poético‑metafísca sem precedentes sobre a relação entre a vida e a morte, a realidade e o sonho, o ser e o parecer: «E quando tiro a máscara? Mas eu já não posso tirar a máscara, mesmo quando me fecho a sete chaves: a mentira entranhou‑se‑me na carne» («A vila e o sonho», ed. cit.: 84). A estratégia discursiva, sustentada pela disjunção da instância enunciadora num narrador‑locutor e num narrador‑personagem (o Gabiru), justificada em todos os planos da narrativa (cf. «Papéis do Gabiru», 1917, 2000: 133; 163; 209), pode ser vista como uma ruptura formal sem precedentes, na medida em que é posta em causa a concepção em que se baseia o romance tradicional (e não apenas o romance realista e naturalista), a qual pressupõe a unicidade do sujeito de enunciação e a sua identificação com o «sujeito de consciência». O questionar metafísico de Raul Brandão, que nalguns momentos de Húmus surge profundamente sintonizado com o pensamento de um dos escritores que ele mais admirava, Dostoievski, torna-o o primeiro ficcionista de "ideias", o que primeiro esboçou «o que vulgarmente se vai chamar "romance‑ensaio", ou (...) "romance‑problema"» (FERREIRA 1991: 195-6). A concepção dialógica que Brandão transpõe para o romance toma como valor exponencial a categoria da Relação, fazendo do texto um espaço de abertura ao Outro e da enunciação literária um modo interactivo de comunicação.. Por último, veja-se que no Húmus, o A. tenta articular «o sonho de não morrer» com o problema moral da morte de Deus, criando uma tensão crescente e sem apaziguamento, que se salda num grito que atinge a sua culminância nas últimas páginas do livro: «Para onde vamos aos gritos? para onde vamos aos gritos?» (1917, 2000: 221). Raul Brandão abre assim um novo horizonte especulativo, em que a escrita ficcional de Vergílio Ferreira se virá mais tarde inscrever, como se prolongasse a ressonância desse grito que continua a repercutir‑se na consciência dilacerada do leitor actual.
Cabe agora perguntar se Húmus é uma obra menos modernista do que O Livro do Desassossego. Segundo Eduardo Prado Coelho, «é um texto tão denso e perturbante para a literatura portuguesa como é o Livro do Desassossego (1982). São duas obras-primas da literatura europeia, que marcam entre nós o século XX. Ambas indecisas na fixação da sua textualidade ou arquitectura, e no entanto ambas abrindo um novo espaço no curso da modernidade» (E. P. COELHO 2003: 4). Note-se que, numa carta enviada a João Gaspar Simões (4 Abr. 1931), Fernando Pessoa faz este comentário: «Recebi, sim, a Presença, e achei muito bom e seu estudo sobre o Raul Brandão» (Cartas a João Gaspar Simões). Trata-se de «Raul Brandão, poeta» (Presença, n.º 30, Jan.-Fev., 1931), editado em O Mistério da Poesia (1931). Pré-modernista, é-o sem dúvida, acontecendo que, depois de marcar de forma profunda os maiores escritores da segunda metade do século XX – representativos de várias correntes literárias – fez a sua entrada imperceptível, mas impositiva, na ficcção pós-modernista. Multiplicando enigmas em torno da origem e do destino do homem, Raul Brandão elabora uma filosofia da dor e do absurdo da condição humana que o inscreve no diapasão existencialista.
Entre o Húmus e O Pobre de Pedir, a criatividade de Raul Brandão volta-se de novo para o teatro. Depois de um largo interregno (v. supra), edita três peças surpreendentes num único volume, com o título Teatro (1923): O Gebo e a Sombra (drama em quatro actos); O Doido e a Morte (farsa em um acto); e O Rei Imaginário (monólogo). Depois destas, seguem-se mais duas peças: o monólogo Eu sou um homem de bem, publicado na Seara Nova (n.º 104), em 1927; e O Avejão (Episódio dramático), publicado primeiramente na revista (n.º 150) e dado à estampa em 1929. Há ainda a assinalar a publicação de Jesus Cristo em Lisboa, Tragicomédia em sete quadros escrita em colaboração com Teixeira de Pascoaes e editada nos princípios de 1927. O seu teatro existencial, embora sintonizado com os temas da ficção – miséria, marginalidade, sonho, honra, dever – não é tão radical na contestação de uma ordem social injusta, excepção feita a Jesus Cristo em Lisboa, texto de uma insólita e exuberante polifonia (REYNAUD 2004: 59, ss.) É geralmente sublinhado pela crítica o seu contributo para a renovação da dramaturgia portuguesa e a sua sintonia com as correntes do teatro europeu da época. Basta pensar n’ O Doido e a Morte, que é, segundo Régio uma «afirmação de génio» (RÉGIO 1977: 55). Sendo «do ponto de vista do género a mais perfeita» [Andrade, 2002: 201], ela «bastaria para consagrar um dramaturgo – como o Rei Ubu bastou a Alfred Jarry» (REBELLO 1985: 38), porque aí se fundem, magistralmente, o grotesco, a crítica social e o absurdo. A presença do sagrado torna‑se mais evidente no último livro de Raul Brandão, O Pobre de Pedir (1931), escrito em três meses e concluído um ano antes da sua morte, como testemunha Maria Angelina Brandão no prefácio que acompanha a edição póstuma. As várias interpretações críticas coincidem na sobrevalorização da sua dimensão autobiográfica, vendo nele, como acontece em Óscar Lopes, a manifestação mais directa da «atitude confitente» do protagonista, «um pequeno-burguês» que enfrenta a sublevação dos pobres e um «remorso social» avassalador (LOPES 1987: 362, ss.). Os ecos da Sonata a Kreutzer, de Tolstoi; ou de Crime e Castigo, de Dostoievski (a figura angelical de Stela lembra Sónia e «Santa Eponina», protagonista do conto com o mesmo título, publicado em A Morte do Palhaço e O Mistério da Árvore, 1926, versão refundida de História dum Palhaço), têm sido realçados pela crítica. A omnipresença da figura crística, que se vislumbra por detrás do rosto dos mendigos, é simbolizada pelo pobre de pedir. Próximo de «Balanço à Vida», pórtico de Vale de Josafat (COELHO 1976: 232), o livro «insere-se numa estética do pânico e do crepuscular», sendo o seu tema axial a oposição entre o eu-individual e o outro-social (VIÇOSO 1984: 21). No cenário apocalíptico de O Pobre de Pedir, e na fronteira da ficção com a verdade, ocorre uma experiência‑limite de autognose onde Deus se revela uma representação tão vulnerável como a fé do homem.
Os Pescadores (1923) e As Ilhas Desconhecidas – Notas e paisagens (1926) compõem um «incomparável díptico de prosa impressionista» (CASTILHO 1979: 84), a que poderíamos juntar muitas páginas de Portugal Pequenino (1931), obra de que é co-autora Maria Angelina Brandão e que se inscreve na vertente solar da sua criação. Foi o sucesso obtido com a primeira destas obras que lhe trouxe o reconhecimento tardio e consensual do seu enorme talento. A inflexão poética da sua escrita, o intenso visualismo que a percorre, o esplendor que a língua portuguesa aí atinge, até nos assomos da mais pura vernaculidade, são elementos que ajudam a explicar tal sucesso. Nas Ilhas Desconhecidas, ao «impressionismo atlântico» de que fala Aquilino Ribeiro vem agora juntar-se um realismo cru, de onde irrompe um frémito de inquietação que faz deslizar a escrita para o lado do expressionismo dramático. Na carta, já citada, a Albino Forjaz de Sampaio, Raul Brandão fala da alegria com que se detém «a fixar a paisagem e a luz», subitamente toldada pela aparição do «outro [que] só gosta de nódoas escuras». É esta alternância entre o «esplendor da luz» e abismo «negro» da dor que faz de Raul Brandão um escritor de hoje e de sempre.
BIBL.: Raul Brandão, El-Rei Junot (1912), ed. Maria de Fátima Marinho, Lisboa, Relógio d’Água, 2007; Raul Brandão, Húmus (1917), ed. Maria João Reynaud, Porto, Campo das Letras, 2000; Raul Brandão, Memórias, II (1925), Lisboa, Relógio d’Água, 1999; Raul Brandão, Os Pescadores (1923), Lisboa, Relógio d’Água, 1999; Guilherme de Castilho, Vida e Obra de Raul Brandão, Lisboa, Estúdios Cor, 1973; Eduardo Prado Coelho, A Escala do Olhar, Lisboa, Texto, 2003; Jacinto do Prado Coelho, Ao Contrário de Penélope, Lisboa, Bertrand, 1976; Vergílio Ferreira, Espaço do Invisível, II, Lisboa, Bertrand, 1991; Óscar Lopes, Entre Fialho e Nemésio, Lisboa, IN-CM, 1987; Álvaro Manuel Machado, Raul Brandão entre o Romantismo e o Modernismo, 2.ª ed., Lisboa, Presença, 1999; David Mourão-Ferreira, Tópicos Recuperados, Lisboa, Caminho, 1992; Luís Francisco Rebello, “Um Teatro de Dor e de Sonho”, in Raul Brandão, Teatro, Lisboa, Comunicação, 1985; José Régio, Páginas de Doutrina e Crítica da “presença”, Porto, Brasília, 1977; Maria João Reynaud, Metamorfoses da Escrita – Húmus de Raul Brandão, Porto, Campo das Letras, 2000; João Gaspar Simões, O Mistério da Poesia (1931), 2.ª ed., Porto Inova, 1971; Vítor VIÇOSO, A Máscara e o Sonho. Vozes, Imagens e Símbolos na Ficção de Raul Brandão, Lisboa, Cosmos, 1999.
Maria João Reynaud