(1886-1964)
Sodoma Divinizada é o mais famoso título de Raul Leal, o de um manifesto várias vezes republicado, que em 1923 entra numa polémica em torno das Canções de António Botto, em que se envolveram Raul Leal, Pessoa, Álvaro Maia e a Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa. Raul Leal que marca um lugar na cultura portuguesa junto de Sá-Carneiro, Pessoa, Ângelo de Lima, Almada, Santa Rita Pintor – latu sensu,a Vanguarda. Por exemplo, a primeira edição de O Virgem Negra, de Mário Cesariny, inclui duas cartas inéditas suas, escritas em 1916. São decerto um dos momentos de maior violência da emoção que aqueles anos puseram a circular. Violência que Sá-Carneiro definia assim: «um pesadelo sem sono, qualquer coisa de alucinante e miserável, de pôr os cabelos em pé». Violência, sobretudo, ego-teo-metafísica, segundo uma citação que Cesariny faz dela (1989: 103): «O precursor do Divino Paracleto, a Vertigem, que no nosso século se espera, sou Eu, uma grande vitória alcançarei sobre a Águia Prussiana, Génio do Anticristo, Génio do Absoluto, do Limite que assim se dissipará e erguendo enfim o Mundo ao Deus que ele lhe envia, o Próprio Deus enfim, Me Tornarei!!...»
Quem é Raul Leal? Começa por publicar, logo aos 24 anos, em 19l0, uma conferência: A Situação do Estudante em Portugal. Não tem nada a ver com o que o título indica, e, em períodos desmesurados, que forçam a sintaxe a prodígios de elasticidade, toca temas de análise rácica e nacionalista muito datados, na base de um positivismo naturalista ambiente. É o seu primeiro texto, mas já o caracteriza o que até ao dia da morte todos os seus textos foram: uma variação em torno do pólo temático do «feérico ideal da sublimidade», da convulsão infinita. Só a partir do mais longo (135 pp.) ensaio A Liberdade Transcendente, de 1913, e do conto em Orpheu 2, “Atelier”, é que essa incessante variação se vai centrar na palavra «vertigem». E com tal carácter de obsessão que lembra, estranhamente, Teixeira de Pascoaes, cuja obra completa roda em torno da palavra «saudade». São obras, e vidas, construídas em torno da paixão obsessiva por uma palavra.
No caso de Raul Leal, o cume «vertigínico» é talvez atingido em 1917, no texto inserto no Portugal Futurista, que se cifra na quase pura repetição mântrica da palavra, assim realizando em simulacro a própria vertigem que diz, isto é, assim sendo capaz de a descrever. Em 1915, edita e distribui (pelo menos nos cafés da Baixa e num comboio da linha de Cascais em 3-7-1915) o manifesto O Bando Sinistro (publicado pela primeira vez no catálogo Os Caminhos de Orpheu, editado por Richard Zenith, Lisboa, BNP/Babel, 2015, pp. 184-185), que passa a constituir, assim, um dos momentos fortes da tensão vanguardista daquele ano de Orpheu. De escopo geral ideológico na aparência anti-republicana, trata-se de uma provocação em forma de arte pública, algures entre a performance e a reflexão filosófica, e em que a própria sintaxe tendencialmente ilegível vai funcionar como um dos elementos de provocação. É também por essa altura que escreve a Marinetti uma carta a explicar o que é a vertigem, aproveitando para lhe propor a criação de uma Igreja Paraclética.
Não é, pois, sem razão que Mário Saa há-de escrever n’A Invasão dos Judeus, livro de 1924: «Raul Leal é dos primeiros futuristas portugueses» (LEAL 1923, 1989: 129). Ou o que ele próprio dirá de si mais tarde (em «As tendências orfaicas e o saudosismo», Tempo Presente 5, 1959): «[as] minhas concepções futuristas, ou antes, ultrafuturistas(...)». É curioso, ainda, que Raul Leal, um dos mais sinceros e longevos futuristas portugueses, em nada se pareça com os futuristas de escola, seja ela italiana ou russa – ao contrário de Santa Rita ou Almada. Raul Leal é a imagem mesma da pulsão irresistível para o bizarro e o excessivo, o disparo de girândolas de energia num ego que se expande até ao horizonte. Como Mário Cesariny sugere num dos poemas d’O Virgem Negra: Raul Leal é o mais Orpheu de todos. Nem Ângelo de Lima, em cujos poemas se ouve o ultra-simbolismo a estilhaçar-se. Nem Sá-Carneiro (que acerca de Raul Leal escreve, numa carta a Pessoa de 5 de Novembro de 1915: «É muita pena que o rapazinho seja um pouco Orfeu demais»), nem Pessoa, nem sequer Campos ficam assim tão colados ao epicentro mais alucinante da Vanguarda. Só Almada, Santa Rita e Amadeo se aproximam...
Para termos provas dessa posição extrema de Raul Leal no quadro literário e intelectual do seu tempo, basta recordar a recensão de A Liberdade Transcendente, insultuosa e repugnada, que o filósofo Leonardo Coimbra publica n’A Águia em 1913. Depois, o manifesto humilhante da pré-fascista Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa (LEAL 1923, 1989: 97-98). E, muitos anos mais tarde, Gaspar Simões, simpático em geral para com os modernistas, escreve: «(...) desde sempre, Raul Leal vivera segundo leis alheias à nossa compreensão, pelo menos alheias à minha compreensão» (1974: 139).
Um elemento essencial da concepção vanguardista de Raul Leal prende-se com a sua valorização do teatro. Em Orpheu 2 é anunciada uma conferência, Teatro Futurista no Espaço, de que não há notícia de realização, mas que ainda ecoa no artigo que publica na presença 8, em 1927, «A Criação do Futuro». Seria, na mais directa inspiração futurista, um Teatro nos Espaços, ou Astralédia: «todo aquele delírio de luxuriosa e sinistra loucura astral da Astralédia-Ambiente arrebatará em tão intensas convulsões anímicas os seus espectadores, colocados no centro dele para melhor o absorverem, que deixando-se eles assim inundar da mesma loucura, da mesma vertigem, esta se tornará com efeito toda a sua vida, através de que surgirão assim como actores do Grande Drama Vertigínico de Morte e Luxúria».
Muitos dos textos de Raul Leal trazem o nome Henoch acrescentado entre parêntesis. Ora, esse nome do judaísmo esotérico aparece também no primeiro e único tomo de Le Dernier Testament, datado de 1918 e publicado em 1920: Antéchrist et la Gloire du Saint-Esprit – Hymne-Poème Sacré. Este poema em 91 oitavas é a sua obra-prima. A radiação europeia que podia ter foi, se chegou a ser tentada, nula – aliás, como a das edições da poesia em inglês de Pessoa. O profeta Raul Leal – que tencionava explicar «A Legenda de Henoch» no livro (perdido?) Fernando Pessoa, Precursor do Quinto Império, para o fim da vida já só acrescenta a inicial do nome ocultado, H., ao seu próprio nome, quando assina em jornais as suas colaborações sobre uma sua nova invenção, a Biomântica - isto é, uma sistematização numerológica de adivinhação e conhecimento hermético em que a sua fougue sobrevive. Fougue que convulsiona o texto que publica na Athena de Pessoa, em 1924, A Loucura Universal, ou aquele que sai em 1935, integrado numa publicação revivalista dos de Orpheu organizada pela Sudoeste de Almada: o «primeiro capítulo» de Super-Estado. Aí surge com a sua veia de pensador político – que haveria de dar (mas só em 1960) um Sindicalismo Personalista que se pretende conciliador de, nada menos, «comunismo, individualismo e fascismo». Nesse «primeiro capítulo» anuncia, para fundamentar um dos seus pontos, dois projectos: um «poema apocalíptico» e um «tratado teológico». Pelo que mais uma vez se revela o seu trabalho como amálgama de poesia, ficção e especulação filosófica.
Essa vontade de superação das diferenças entre géneros e códigos, de encarnação na vida quotidiana da própria energia de síntese por que se queria provocar a irrupção do novo, essa materialização do Ideal, eis o que foi também o modo de ser de Sá-Carneiro, por exemplo. E o que designa a fidelidade a Orpheu, até ao limite, de um dos mais singulares dos seus artistas.
BIBL.: Raul Leal, Sodoma Divinizada, ed. Aníbal Fernandes, Lisboa, Hiena, 1989;Mário Cesariny, O Virgem Negra,Assírio & Alvim, 1989; Pinharanda Gomes, Raul Leal – Iniciação ao seu Conhecimento, Guimarães, 1962; Pinharanda Gomes, Um d’Orpheu – Raul Leal: Ensaio Bio-Bibliográfico, Lisboa, 1965.
Fernando Cabral Martins