A)  Joel Serrão e António Quadros são dois dos autores que mais atenção consagraram ao estudo do Quinto Império na obra de Pessoa. Esta noção, religiosa, filosófica e histórica é bebida na obra de Joaquim de Flora, conhecido místico cistercience da Calábria (séc. XII), e no seu mito das Três Idades, exposto no Livro das Figuras. Na revelação que descreve, Joaquim de Flora compreende o sentido e a transformação do Cristianismo futuro (que ele situará em finais do século XIII); escreve uma Concordia do Antigo e do Novo Testamento, um Comentário do Apocalipse e um Psaltério; vê a história do mundo dividida em três partes: a Idade do Pai, a Idade do Filho e a Idade do Espírito Santo, aquela que diz estar mais próxima; esta será a Idade do Evangelho Eterno, e com ela se formará uma geração de viri spirituali, Ordem exclusivamente dedicada à vida espiritual, de que faria parte uma élite de homens de dignidade igual entre si, sem dependência de nenhum superior. A era do Espírito Santo seria a continuação do Antigo e do Novo Testamento, culminando numa era de liberdade e amor que uniria num só movimento todas as religiões do livro. A inspiração provém do Quarto Evangelho, o de João (IV, 21, 23). E a proposta feita é a de uma nova Igreja, sem diferenças, nem divisões, construindo para lá de todas elas um edifício uno de profunda espiritualidade. A fraternidade levaria igualmente à abolição das diferenças sociais e económicas, sendo os membros da Igreja os primeiros a dever dar o exemplo, com o abandono das suas riquezas supérfluas e excessivas. A Idade do Espírito Santo seria uma época de ouro, de contemplação e edificação da Jerusalém Celeste: uma utopia, enfim, erguida sobre o alicerce do Evangelho Eterno (a que Lessing, no século XVIII se refere, e que Pessoa também cita). Serão os Franciscanos os primeiros a aperceber-se da importância desta doutrina, passando a divulgá-la na Europa e no mundo. Dante coloca no Paraíso, Joaquim de Flora, profeta. A Igreja do Evangelho Eterno é uma Igreja interior, como é interior a Jerusalém Celeste, a cidade da paz divina. Joaquim de Flora será, anos mais tarde, considerado herege pela Igreja, no IV Concílio de Letrão. Jacob Böhme, Lessing (na Alemanha) como o Padre António Vieira e Pessoa em Portugal serão seus admiradores.

Será o Padre António Vieira, entre nós, com a História do Futuro, a principal fonte de Pessoa. Mais recente será Sampaio Bruno, com O Encoberto, a outra fonte, inspiradora de uma recuperação da alma de um país que vive na saudade dessa ausência. Teremos ainda, para o caso do poeta, as Profecias de Bandarra, sapateiro de Trancoso (ed. de D. João de Castro), Quinto Império (Augusto Ferreira Gomes, com prefácio de Pessoa). Nas trovas do Bandarra se fundam as leituras proféticas de D. João de Castro, António Vieira e Pessoa. Abre-se com eles a esperança do mítico regresso do Encoberto, o jovem monarca D. Sebastião desaparecido na trágica batalha de Alcácer-Quibir. Mas será Vieira a recuperar, a seu modo, a profecia de Daniel, aludindo ao Quinto Império, “o Império consumado de Cristo debaixo do nome de Quinto Império”, seguindo-se à derrocada dos quatro impérios dos Asírios, Persas, Gregos e Romanos…” Citará a lenda das palavras de Cristo ao rei D. Afonso Henriques: “Volo in te et in servire tuo imperium mihi stabiliri” (Defesa do Livro intitulado Quinto Império). Pessoa, ao escrever Mensagem tem presente a memória profética lusitana, histórica, religiosa e poética. Ultrapassa, no modelo e na proposta, o Neo-Romantismo saudosista anterior, sublinhando a existência de um Destino oculto que teria de ser assumido para chegar a existir. A sua existência mítica era a base mesma da sua credibilidade, pois o mito é o universal, o eterno existente, que sai da sua latência por força do imaginário colectivo que o transforma e actualiza: “O mito é o nada que é tudo. / O mesmo sol que abre os céus / É um mito brilhante e mudo - / O corpo morto de Deus, / Vivo e desnudo”. Os poemas de Mensagem foram escritos ao longo de vários anos, pelo menos desde 1913 (D. Fernando) até 1934, quando a obra foi publicada. Mensagem é a obra que condensa a visão mítica e profética de um Quinto Império sonhado, como no poema de 1934 «Vibra, clarim, cuja voz diz». Aqui, estrofe a estrofe, se relê e revê a história mítica de um Portugal desejado (e adiado). Da geração de Avis à perda do Rei-menino, D. Sebastião, celebra-se o “ser profundo” de um Portugal que é o mundo. “É a hora!”, proclama Pessoa, “aqui!” Por outras palavras, é ele quem actualiza um mito fundador, o de uma pátria (da história e da alma) que só ele, como um Super-Camões, um Super-Sebastião, pode ajudar a erguer, a sair do Nevoeiro: “E, se o futuro é já presente / Na visão de quem sabe ver / Convoca aqui eternamente / Os que hão de ser!”. E, a seguir: “Todos, todos! A hora passa / O génio colhe-a quando vai. / Vibra! Forma outra e a mesma raça / Da que se esvai”.  O apelo é mágico: a todos “feitos num”. E o Mistério é proclamado, para que se aceite um Destino firme, ainda que oculto (como o do Pai Rosa-Cruz): “Glosam, secretos, altos motes / Dados no idioma do Mistério / Soldados não, mas sacerdotes / Do Quinto Império”. Trata-se da visão de um Portugal “feito Universo”, uma pátria “universal perante a Cruz” também ela universal e mítica, como o Deus Jesus com que acaba o poema. Pessoa exprime, em Mensagem, o “sonho português” de ser ele mesmo e mais, muito mais do que ele mesmo. Com três avisos define três espaços, o histórico, o mítico e o místico; em cinco tempos narra a saudade do Encoberto, o desejo da Hora que deveria chegar, marcando o início-fim do Quinto Império. (O longo poema «Vibra, clarim, cuja voz diz», ressuscitando a história e o mito de Portugal, é o grito que corta o nevoeiro da Mensagem. O que estava oculto é ali posto a descoberto: uma visão só mística da pátria).

O gosto da ordenação tripartida é muito frequente em Pessoa. Exprime assim a ordem espiritual no homem, no universo e em Deus. D. Sebastião, enquanto figura mítica, reúne em si estes três elementos: o Poder, a Inteligência e o Amor da tradição cristã (o Pai, o Filho e o Espírito Santo). Representa a súmula da manifestação e é, nesta medida, perfeito. Pode dizer-se dele o que René Guérion disse do Rei do Mundo: é Rei, Sacerdote e Profeta. A intenção da Mensagem é espiritual, significa mais um passo na obtenção do grau de Mestre, que Pessoa definiu no Essay on Initiation, como “a fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática em algo para lá de todas elas” (Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, 70). Com o jogo da heteronimia, marco do modernismo português, e com Mensagem, cumpre o poeta o múltiplo destino de ser muitos, de ser tudo e todos de todas as maneiras — de ser o outro, completamente o outro, face à nudez do eu. A obra de Pessoa não é senão o esforço de uma vida em busca da sua alma: múltipla, repartida, no ponto mais exterior buscando o mais interior, intensamente.

Portugal é o centro da mediação possível entre a espiritualidade das Ordens Internas (que busca) e a materialidade das Ordens Externas (que recusa), abrindo uma terceira via: a da Terceira Ordem de Portugal, que bem merece ser estudada. Para Pessoa é especialmente importante a fundação da Ordem de Cristo, pois que ele a relaciona, de modo profético, com o futuro de Portugal. Assim vemos que num dos documentos mais curiosos do espólio vai somar a 1318 o número da Besta do Apocalipse, 666, obtendo 1984, número à frente do qual aponta “que ano?” (E3 53-79). É também de modo profético que ele relaciona com a Ordem de Cristo o sapateiro Bandarra, Nostradamus português: “O nome Bandarra que é de facto o apelido do sapateiro profeta, passou a designar, a dentro da Ordem de Christo, qualquer dos irmãos que assumira a mesma luz, ou, falando figurativamente, o mesmo grau. Assim a maior parte das profecias, ou trovas, ditas do Bandarra nada têm que ver com a pessoa do sapateiro de Trancoso. Sobretudo o não tem o chamado Terceiro Corpo, a obra profética mais completa (no sentido, por assim dizer, artístico ou intelectual) que se tem visto no mundo” (Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, 39). O problema do Bandarra remete-nos para o problema do Sebastianismo e da Terceira Ordem de Portugal, sucessora das do Templo e de Cristo, no entender do poeta. Compõe-se de elementos de uma obscura Ordem Sebastianista que fundiu “certas teorias e profecias como a teoria mística e simbólica do regresso do Rei D. Sebastião” e ainda de outros elementos mais recentes, todos judeus portugueses. (E3 53B-56).

O sapateiro Bandarra, o Rei desejado e encoberto, são os símbolos do Templo que permanece escondido na alma nacional. Só na alma, e não no mundo, encontrará Portugal a tradição que é sua: a tradição dos romances de cavalaria, onde passa, próxima ou remota, a Tradição Secreta do Cristianismo, a sucessão Super-Apostólica, a Demanda do Santo Graal” (Sobre Portugal, 177). O poema À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais (1920) é o manifesto de uma utopia nacionalista ao gosto de Vieira, com dimensão mais idealista do que histórica, como se o destino lusitano que o poeta antecipasse fosse já o da espiritualidade que só a gnose mística podia proporcionar. A Mensagem termina com a saudação Rosacruz: Valete, Frates. E deixa a lição de que chegou a hora de romper o nevoeiro; o poema à memória de Sidónio Pais termina com um apelo ao Desejado; e o Quinto Império anuncia-se a seguir como Oração, apelo ao Deus que em tudo manda, “Osíris-Deus”, mas cujo nome ninguém abertamente pronuncia. O “Portugal perante a Cruz” é o país que foi pátria acolhedora dos Templários e da Ordem de Cristo (a “Cruz universal”) e por intermédio dessa Ordem, ou de outra que a renova que poderá ser recuperado o Quinto Império. Para Pessoa, como se pode ver no texto sobre A Destruição do Templo (E3 53B-72-74) a renovação virá pelo movimento e pela doutrina Rosacruz.

Em algum dos documentos recolhidos por Joel Serrão, é a partir de uma ideia de Portugal que Pessoa elabora a doutrina ou a visão do Quinto Império desejado:

1- «Se o nosso imperialismo é um imperialismo cultural, ou, em outras palavras, se é um imperialismo cujo ponto de apoio é a Cultura, é evidente que, para a sua organização dinâmica se deve apoiar aos elementos a que culturalmente pertence ou com que culturalmente se conjuga; sendo certo que se não deve de esquecer que um imperielismo, embora cultural, é sempre um imperialismo, isto é, que, embora uma política cultural, é sempre uma política. / Ora os laços culturais são de três ordens, se os considerarmos não só como cultural, senão também como políticos. Vimos já (?) que há, primeiro, nações, depois grupos civilizacionais, finalmente a civilização. A determinação do sentido cultural de um país tem, portanto, que definir-se pela sua determinação em relação a si própria, ao grupo civilizacional a que pertence, e à civilização em geral. / Em relação a si própria o critério definidor é a língua, que é o que define a nação para si mesma. A nação que pretenda a um imperialismo cultural deve, portanto, começar por unificar os elementos que falam a sua língua, porque não há império sem unificação, nem, portanto, império cultural, sem unificação cultural. Há três casos possíveis neste caso da unificação: ou só a nação de que se trata fala a sua língua, e em toda a parte dessa nação se fala essa língua e nenhuma outra; ou a nação de que se trata inclui povos que, embora culturalmente falem a sua língua, falam naturalmente outra; ou a nação de que se trata exclui povos, que não pode integrar em si, que falam a mesma língua. O melhor exemplo da primeira é a Itália, que não tem senão dialectos, e em que todos falam italiano, sem que haja colónia alguma italiana, no sentido superior e nacional da palavra “colónia”. O melhor exemplo da segunda é a Espanha, que inclui a Catalunha e Euzkadi, que falam línguas diferentes do espanho. Para o terceiro exemplo serve Portugal, que, sendo uno no continente, tem, por exemplo, uma colónia espiritual, o Brasil, onde se fala a mesma língua mas que é inevitávelmente, por uma razão geográfica de distância, um povo diferente. / Para cada espécie de povo destes, posto que esteja o problema do imperialismo cultural, esse problema se põe de maneira diferente. / Portugal, na determinação do apoio do seu imperialismo cultural, tem que buscar, primeiro, o Brasil, que tem por língua nacional o português. / Portugal, na determinação do seu apoio em grupo civilizacional, tem que buscar a Ibéria, de cuja personalidade espiritual participa. […] / Portugal não difere no género, senão na espécie, das outras regiões da Ibéria. Isto é, os inimigos culturais de Portugal são os inimigos culturais da Ibéria, e vice-versa. Como se trata de grupo civilizacional, a questão, aqui, não é política; e por isso pode haver inimigos políticos de Portugal que o não sejam de Espanha, e de Espanha que o não sejam de Portugal» (SP 232-233).

2- «I. O conceito de Quinto Império e as interpretações que se dão aos cinco impérios. A nossa interpretação. / II. Explicação da última interpretação. Indicação sociológica e histórica da evolução da civilização europeia desde a Grécia até nós. Dedução do que deverá ser o Quinto Império, considerando a linha íntima da evolução europeia através dos outros quatro. / III. A evolução portuguesa, os três estorvos ao Primeiro Movimento Imperial (precisa explicar-se primeiro o que são os três géneros de império). / IV. As figuras simbólicas dos cinco impérios; não referir (por motivos da quarta) quais são as figuras dos primeiros quatro impérios. D. Sebastião: as razões porque é a figura simbólica do Quinto Império e, no mesmo passo, de Portugal. / V. A tradição profética sebástica» (Sobre Portugal, 233-234).

3- «Esta profecia pode ser interpretada de três maneiras diferentes, entendendo-se, porém, de três maneiras certas. Todas as profecias têm três realizações, e isto é simbolizado pela tripeça, que tem três pés. Não é por isso tão fácil como se julga dar a interpretação de uma profecia, pois que uma só interpretação (sempre fácil de conseguir, dado certo engenho) nada vale se não for acompanhada de mais duas, que com ela devem ter certa relação. / Essa relação pode ser de três ordens: espacial, temporal, intelectual. Se um evento profetizado cai sob a ordem espacial, então dá-se no mesmo lugar ou país em três tempos diferentes, e tem que haver concordância perfeita (a história repete-se) entre os três eventos. Se um evento profetizado cai sob a ordem temporal, então dá-se ao mesmo tempo (ou, pelo menos, no mesmo ano) em três países. Se o evento cai sob a ordem intelectual, então dá-se três maneiras iguais (idênticas) no material, no intelectual e no espiritual. / Império é domínio, e pode ser domínio material, domínio intelectual e domínio espiritual. A fórmula profética do Quinto Império é pois aplicável a estes três planos, e em cada plano se revelará da mesma maneira. / No plano material, que é o que se tem suposto até agora ser o único, os quatro Impérios que precedem o Quinto são os de …, de …, de Grécia, de Roma; o Quinto será o europeu, de sorte que nesta interpretação a profecia está consumada. Estamos já, segundo ela, no Quinto Império. / No plano intelectual, como o reino da Inteligência começa só com a Grécia, onde nasceu o espírito crítico, que é o em que a inteligência se define, os quatro impérios são o grego, o romano, o cristão ou medieval, o europeu, e ainda falta o quinto, que deverá ser o Universal. / Na ordem espiritual, como o domínio do espírito verdadeiramente começou com os egípcios, os três primeiros são o de Osíris, o de Baco, e o de Cristo, em que estamos, devendo notar-se que, entendidos em certo modo, estes três Deuses são três formas do mesmo Deus. Faltam-nos ainda dois magnos impérios até a consumação dos tempos e cessação de ser necessário o mundo. O sentido em que tomaremos particularmente as profecias aqui expressas é o segundo, pois o primeiro está extinto, o terceiro muito longe na sua consumação» (Sobre Portugal, 234-235).

4- «Pertencem Os Lusíadas à espécie ínfima do género supremo em literatura. / Podermos vir a ter esse império não prova, é certo, que viermos a tê-lo; porém se o não podermos ter é que com certeza o não teremos. / Preparemos o caminho dos grandes génios portugueses, ainda que, contra a voz profética, eles não venham nunca. Teremos perdido o jogo, porém ganhado a experiência dele. O esforço de um alto propósito é, de per si, um resultado desse alto propósito, o que se nos acrescenta de grande por pensarmos sempre em grandes cousas. Não se poderá dizer que nunca se realiza um alto propósito, se ele chega a ser um alto propósito. Já, com sê-lo, em certo modo se realizou» (Sobre Portugal, 240-241).

B)  A Imago Templi é uma imagem restauradora da primitiva harmonia que Henry Corbin redescobre na tradição da cavalaria iniciática, perpetuada através dos séculos, nas várias gnoses, islâmicas e cristãs, de que se ocupou. O laço espiritual que une os cavaleiros de então com os de hoje em dia é quanto basta para que os consideremos herdeiros e sucessores legítimos da tradição que invocam. O laço é existencial, não histórico, e Henry Corbin encontra-o, a seguir à destruição da Ordem do Templo por Filipe O Belo, em 1314, em vários momentos representados pelo Templo do Graal ou pela Ordem de Cristo de Portugal como sobrevivência da Ordem do Templo. Mas não conheceu a robustez da tradição que se seguiu e de que encontramos em Pessoa, em pleno século XX, talvez o mais fiel, embora inquieto, herdeiro. Poemas como Mensagem, ou outros de menor ambição, dizem a sua filiação de cavaleiro espiritual, montado em cavalo de sombra, em busca do infinito de alma. No Livro do Desassossego há “fragmentos de uma autobiografia” que atestam suficientemente esta ideia.

Não sabemos se chegou alguma vez a descobrir o mistério supremo. Mas sabemos que o procurou, que reflectiu sobre ele, durante toda a vida. Encontram-se no espólio vários fragmentos que vale a pena divulgar, pois se relacionam com as matérias que nos interessam, da cavalaria espiritual e da conquista do mundo. Pessoa é peremptório a este respeito: onde se ganha o mundo perde-se a alma, e foi o que aconteceu a Portugal. Perdido agora o mundo, talvez tenha chegado “a Hora”, de que Pessoa fala, em que se ganhe a alma novamente.

Passando aos documentos: são eles relativos à “Ordem do Templo” ou “Ordem Templária de Portugal”, à “Ordem de Cristo de Portugal”, e à “Terceira Ordem de Portugal”. A Ordem Templária de Portugal era composta, segundo Pessoa, por uma Ordem Externa e por uma Ordem Interna (que a Ordem de Cristo conservou). Entre os símbolos que manifestavam a verdadeira natureza da Ordem, Pessoa refere o emblema da Ordem, um cavalo em que estão montados, não um, mas dois cavaleiros. Os dois cavaleiros significam, não a pobreza, como “ingenuamente se julgou”, mas “a dupla constituição da Ordem, o facto de que tinha um lado Militar e um lado Sacerdotal, ou, em outras palavras, um lado exotérico e outro esotérico, um lado externo e outro interno” (E3 54A-18/19). Da Ordem Interna faziam parte as três seguintes: Ordem Menor, Ordem Maior e Ordem Máxima: “A Ordem Menor tem na escala iniciática uma categoria idêntica à Maçonaria, entendida esta como constituída fundamental e essencialmente pelos Graus Simbólicos” (E3 53-55). O grau de Adepto Menor é, nestes como noutros documentos, o ponto de partida de toda a iniciação. Os caminhos da iniciação são três: “pela emoção, pela vontade e pela intelligencia” ou “pelo enxofre, pelo sal, e pelo mercúrio” (E3 54-4).  No “caminho mercurial”, busca-se o desenvolvimento da intuição pelo desenvolvimento da inteligência, de que depois a intuição se alimenta (E3 54-59). O Adepto Menor tem por tarefa desenvolver a sua intuição até ao ponto em que ela chega ao limite do que é humanamente possível. Chegado a este ponto passa ao grau de Adepto Maior, onde volta a dar atenção à inteligência e trata de a desenvolver à luz da intuição recebida. Fundida a inteligência com a intuição – pois tal é o resultado desta operação que Pessoa chama “mágica” (E3 54-41) – o Adepto Maior pode passar a Adepto Exempto. A abertura da personalidade à intuição, pela abdicação da inteligência pessoal, é o que é figurado em linguagem oculta pela obtenção da “Inteligência e Conversa do Anjo da Guarda”: “Fundida nele a intelligência com a intuição, o Adepto Maior está, por assim dizer, angelizado, isto é, a sua personalidade está similhante, salvo a origem e a differença, às dos anjos, ou às personalidades superiores a quem assin designamos” (E3 54-41). Poderíamos comparar este Anjo da Guarda da revelação de Pessoa como o Anjo da Humanidade de que nos fala Corbin nos seus escritos sobre esoterismo islâmico, e que é semelhante ao Espírito Santo, ou ao Anjo Gabriel enquanto Anjo da Revelação e do Conhecimento. Da fusão da inteligência com a intuição nasce a “imaginação activa” dos alquimistas, a que dá forma às visões mais íntimas da alma, tornando-as manifestas. A Pessoa é só a visão mais íntima que interessa, o que ele julga ser a chave do destino — do seu, como do seu país.

O caso de Portugal é complexo. Pessoa analisa o país como centro de mediação entre a espiritualidade da Ordem Interna e a materialidade da Ordem Externa — abrindo uma terceira via, a do Terceiro Templo, a que Henry Corbin também alude: “o motivo dos três templos é o motivo dominante do templarismo desde a teologia ezekeliana do Templo…” Assim se abre o horizonte do Terceiro Templo, que se segue aos de Salomão e de Zorobabel. Estes foram ainda erguidos por mão de homem, mas o Terceiro Templo erguer-se-á na “alta montanha”, na “confluência dos dois mares”, é um templo de origem divina, embora requeira ao seu serviço uma cavalaria (CORBIN 1981: 384-385). Assim a Ordem do Templo não foi internamente destruída: “Disfarçou-a D. Dinis em Portugal. […] Ao centro da cruz rubra da Ordem de Christo abriu-se um espaço branco, em cruz também, para signal, como espaço, de que para além havia outra cousa; para signal, como branco, da innocencia crucificada dos Templários” (E3 54-46).

A Ordem de Cristo de Portugal também se dividia, como a Ordem do Templo, em duas partes, uma externa e social, em que os homens eram cavaleiros, e outra interna e individual, em que os homens eram sacerdotes: “Junctas, no princípio, em sua acção, não tardou […] que as duas partes tivessem que dividir-se e esquecer-se. E assim, uma, a externa, de degeneração em degeneração, veio a ser uma simples Ordem Militar, externa até no externo que dá condecorações; e a outra, a interna, de sublimação em sublimação, uma Alta Ordem Iniciática, que nada tem a dar, senão tudo” (E3 54-42).

Reflectindo sobre a tradição portuguesa, diz Pessoa: “Qual é a tradição portuguesa? O vago espirito nacional, cavalheiresco e lírico, que foi enchendo a Primeira Dinastia e culminou, extinguindo-se, no princípio da Segunda? O imperialismo de Tanger e de Arzila? O imperialismo marítimo dos descobrimentos? O dos descobrimentos só, ou o deles e das conquistas? Tudo isto é português, tudo isto é tradição, mas uma ou outra destas coisas temos que escolher, pois todas entre si se contradizem em seu íntimo sentido, e, sobretudo, no em que podemos guiar-nos por ele” (E3 53A-4). Foi por não ter escolhido — ou por ter escolhido mal — que Portugal “ganhou quási todo o mundo, e, como na promessa negra do Evangelho, perdeu quási toda a alma” (E3 53B-65v). Mas há um novo caminho a descobrir. E Pessoa volta, pacientemente, a dizer qual é. É o caminho oculto que vem da Ordem do Templo, passa pela Ordem de Cristo e culmina nesta Terceira Ordem, neste Terceiro Templo que ele julga que está a ser erguido. “A alma lusitana está grávida de divino”, escreve Pessoa. E ainda: “O verdadeiro patrono do nosso País é esse sapateiro Bandarra. Abandonemos Fátima por Trancoso”. Ou seja, preconiza o regresso às origens, sendo elas a interioridade, a espiritualidade da alma, que se perdeu, com a conquista do império.

Bandarra, D. Sebastião Desejado e Encoberto, são os símbolos do Templo que permaneceu escondido na alma nacional. Nela encontrará Portugal “a tradição dos romances de cavalaria, onde passa, próxima ou remota, a Tradição Secreta do Cristianismo, a Sucessão Super-Apostólica, a Demanda do Santo Graal”, diz ainda Pessoa. Trata-se de “quebrar com Roma”, ou seja, com o exterior: “Quebrar com Roma. Quebrar com a ideia monárquica. Quebrar com a ideia de Pátria como entidade oposta a qualquer outra coisa neste mundo”. Pessoa não é, nunca foi, um patriota no sentido restritivo da palavra. É um cidadão do mundo. Mas o seu mundo não é um mundo visível. É o vasto mundo de dentro, o das conversas com o Anjo de todo o esoterismo. Obras como Mensagem (que se chamava primitivamente Portugal), ou o citado poema «Vibra, clarim» só podem entender-se plenamente no contexto esotérico que esta documentação do espólio ajuda a clarificar.

Pessoa é, no século XX, o nosso melhor representante da cavalaria espiritual que serve o Terceiro Templo. A sua voz dá testemunho de um Portugal oculto e diferente, o dos sacerdotes do Quinto Império que abandonaram o gládio e o escudo para galgar o céu: “De um rasgo de ir além de tudo, / De passar para além de Deus, / E, abandonando o gládio e o escudo, / Galgar os céus”.

 

BIBL.: Y.K. Centeno, Fernando Pessoa: Magia e Fantasia, Lisboa, Asa, 2004; Henry Corbin, Temple et Contemplation, Paris, Flammarion, 1981; Marjorie Reeves, Joachim of Fiore and the Prophetic Future, Londres, Harper and Row,1976.

 

 

BIBL.: Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, ed. Yvette Centeno, Lisboa, Presença, 1985.

 

 

 

Yvette Centeno