Quaresma, Decifrador é o título geral sob o qual se agrupam as novelas policiárias em português que Fernando Pessoa escreveu. Todas possuem, como elo comum, uma personagem central: o médico, raciocinador e decifrador das charadas da vida real, Abílio Fernandes Quaresma. Existem no Espólio do autor vários esquemas que comprovam o cuidado dedicado à organização e publicação futura das obras deste conjunto. Pretendia publicar algumas novelas agrupadas em volumes, embora outras, de maior extensão, ocupassem um volume só. Pertencem a Quaresma, Decifrador os seguintes títulos: O Pergaminho Roubado, O Caso do Quarto Fechado, O Roubo na Quinta das Vinhas, O Desaparecimento do dr. Reis Gomes/Dores, O Ouro do Banco da Galícia/O Caso do Triplo Fecho, O Caso da Janela Estreita/Pequena, O Crime da Ereira (Baixa), A Morte de D.João, Crime, O Roubo da Rua dos Capellistas, O Caso do Banco de Viseu, A Carta Mágica, Os Cúmplices  e O Caso Vargas. Os esquemas de publicação, em que Quaresma, Decifrador surge organizado de diferentes formas, foram sendo produzidos ao longo dos anos, sofrendo modificações nos títulos e na sua ordenação, assim como na exclusão de alguns títulos e inclusão de outros. Num dos projectos, coloca-se a hipótese de publicação mensal, noutro incluiu, a concluir a série, o título Shakespeare, novela que deveria tratar, certamente, das teorias acerca da verdadeira identidade do dramaturgo inglês. Existem registos de ideias a desenvolver. Num desses registos, surge a possibilidade de transformar parte de «Antheros», no que respeita à especulação psicológica, e grande parte  de «Daphnis e Chloe» num conto Quaresma, onde esses raciocínios formem uma parte preparativa para conclusões especiais.  Serve de introdução ao conjunto o «Prefácio a Quaresma». Nesse texto introdutório, o autor apresenta Abílio Quaresma como se de uma pessoa real se tratasse. Tendo lido, na necrologia, a notícia da sua morte em Nova Iorque, esta causou-lhe dolorosa impressão, não pelos laços de especial amizade, mas pela razão seguinte: Amargou-me n’alma isto de um homem como Quaresma nem um dia ter de fama. Quaresma nunca buscara essa fama, mas era justo que a tivesse. Por isso, o autor chama a si a missão de tornar conhecido do público aquela figura notável, mas desconhecida. Como consequência desta lógica narrativa, o autor desse Prefácio passa a palavra a diferentes narradores, todos eles intervenientes nos casos de Quaresma, a quem compete narrar aquilo a que assistiu. Nas palavras do Prefácio: Preferi que cada um pessoalmente contasse o “caso” que sob os olhos a dentro da sua experiência se passara. A referência a casos ocorridos em vários pontos do mundo e, mais adiante no referido texto, a os indivíduos nacionais ou estrangeiros, a quem houvera de me dirigir, indicam a intenção de alargar as novelas a casos passados fora de Portugal, o que é confirmado por alguns projectos que incluem, em Quaresma, Decifrador, as histórias policiais inglesas dos primeiros tempos, como por exemplo The Case of Mr. Arnott, que passa a integrar o projecto com os títulos A Morte do snr. Arnott ou O assassínio no Chalet Heloísa. Um projecto de novela de Quaresma, acerca da morte de um senhor Charles Westley, propõe uma investigação combinada entre Portugal e Inglaterra. Já num projecto de 1914 encontramos títulos dos policiais ingleses adaptados para o português e incluídos numa série Quaresma: O Caso da Equação ao 2º grau, O caso do professor de Ciências e O caso de Mademoiselle Roubiny. Num dos documentos de «Prefácio a Quaresma», o autor afirma que reuniu doze histórias. Já as Detective Stories dos primeiros tempos estavam projectadas em igual número. É, no entanto, possível encontrar mais de doze histórias de Quaresma. Esse número corresponde, no entanto, a um dos esquemas: no Volume I, com o título geral de O Pergaminho Roubado, haveria “Prefácio”, O Pergaminho Roubado, A Morte de D.João e O Roubo da Quinta das Vinhas. No Volume II, com título geral por definir, haveria O Caso do Banco de Viseu, O Crime da Ereira Baixa, O Desaparecimento do Dr. Reis Dores, O Quarto Fechado, A Janela Estreita (Pequena) e A Carta Mágica. Isoladamente, três outras obras: O Caso Vargas, Cúmplices e Shakespeare. Nenhuma das novelas deste conjunto foi finalizada, embora algumas estejam bastante desenvolvidas, como O Caso Vargas. De outras, no entanto, pouco mais se conhece que o título. A organização por capítulos facilita a reconstituição do enredo de algumas novelas. O Caso Vargas é a novela mais ambiciosa, pelas temáticas e pela extensão.Existem registos da organização por capítulos que, numa das versões, chegam ao XVII. A definição e dinâmica das personagens Quaresma e Guedes fazem crer que se trata de um texto mais tardio. Um homem, Carlos Vargas, surge morto a tiro numa azinhaga de Benfica. Ao assassinato, disfarçado de suicídio, junta-se o roubo dos planos de um submarino da algibeira do morto. O desenvolvimento do enredo serve de pretexto para o tratamento de temas que são caros a Fernando Pessoa, na área da psicologia patológica. São definidos e descritos os quatro tipos mórbidos de homem: o idiota, o louco, o génio e o criminoso. É feita uma classificação dos crimes, como crimes de temperamento, de impulso e de ocasião, e dos tipos de criminoso. Outros temas amplamente tratados são o suicídio e a arte de raciocinar. Embora menos desenvolvida, A Carta Mágica é outra novela extensa, onde a relação entre Quaresma e Guedes é bem caracterizada. Com uma datação provável de 1926, data registada num dos documentos, a novela teria cinco capítulos Trata-se de um crime em quarto fechado, um clássico da narrativa policial. Nesta novela, Quaresma resolve o crime através do diagnóstico da patologia psicológica da criminosa e prevê o futuro assassinato do marido devido à paranóia da mulher. Na novela O Roubo da Quinta das Vinhas, planeada para cinco capítulos, a personagem que narra o caso revela-se no final o criminoso, estrutura inovadora e tecnicamente difícil. O Quarto Fechado e O Pergaminho Roubado são mais duas novelas com maior desenvolvimento. A primeira trata de um crime num quarto fechado de uma pensão lisboeta, disfarçado de suicídio. Abílio Quaresma analisa a patologia do suicídio e a vítima é descrita como um histero-neurasténico, designação que Fernando Pessoa aplica a si próprio noutro local. A segunda novela, O Pergaminho Roubado, segue a usual organização em cinco capítulos. Trata-se de outro mistério em quarto fechado, o roubo de um importante pergaminho, uma concessão de brasão numa das versões, um detalhe do rito bracarense noutra versão, guardado num precioso cofre antigo. De A Janela Estreita (ou Pequena) existe no Espólio um menor número de documentos. A personagem Tio Porco ocupa um lugar central, com o seu discurso sobre o raciocínio e os três tipos de inteligência: a inteligência científica, que examina os factos, e tira deles as suas conclusões imediatas; a inteligência filosófica que extrai dos factos o facto; a inteligência crítica que vive apenas de ver as falhas das outras duas. A novela Cúmplices situa-se num tribunal, onde são julgados dois réus acusados de assassinar um advogado. Quaresma resolve o caso enquanto assiste ao julgamento. O verdadeiro criminoso é apresentado como um homem de superior inteligência, um homem forte, o que dá origem a considerações sobre o insucesso dessa categoria de homens junto das mulheres. Deduz-se da leitura das novelas deste conjunto a existência de uma Lisboa onde as suas personagens se movem, centrada no eixo Governo Civil – Rua dos Fanqueiros, onde mora Quaresma, com passagem pelo Nicola, pelas azinhagas de Benfica e por Campo de Ourique. Apesar do seu carácter incompleto, todas as novelas revelam aspectos dignos de nota, pelo desenvolvimento de temas que Pessoa apreciava, pelo retrato do quotidiano da cidade de Lisboa e, sobretudo, pela definição da personagem do médico sem clínica e decifrador de charadas da vida real, Abílio Fernandes Quaresma.

 

BIBL.: Fernando Pessoa, Escritos sobre Génio e Loucura, edição de Jerónimo Pizarro, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2006; Fernando Luso Soares, A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa, Editora Diabril, Lisboa, 1976.

 

 

Ana Maria Freitas