Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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As Quadras de Fernando Pessoa são geralmente consideradas, dentro do conjunto da obra pessoana, uma das partes mais modestas, ou seja, uma obra menor ante a grandiosidade, em termos de qualidade e quantidade, que esse legado constitui. O próprio poeta, numa das suas quadras, insere a expressão “versos / Feitos em modo menor”. No entanto, e ao contrário do que possa parecer, talvez a escrita destas quadras “populares” tenha tido para o poeta uma importância maior do que supomos, pois a não ser assim por que teria escrito mais de quatrocentas composições, quase todas exactamente em 1934 e 1935, os últimos anos da sua vida. Também neste sentido se situa um plano abrangente de 1934 onde, a par de outras obras suas, aparecem mencionadas as Quadras, embora não haja indicação do número ou do tipo de quadras.

Sabemos, através de uma nota de Armando Côrtes-Rodrigues, que Fernando Pessoa iniciou em 1908 o seu estudo da poesia portuguesa e, segundo aquele autor, 1908-1909 foi o período de contacto e de “influência” de Garrett, Correia de Oliveira e António Nobre, todos eles ligados, de certo modo, à escrita de quadras integradas na poesia não popular e à revalorização da poesia tradicional e de certos valores nacionais perdidos. Na mesma nota refere-se também que, após a leitura de Garrett, “Num súbito impulso […] começa a escrever versos portugueses” (Cartas a Armando Côrtes-Rodrigues, p. 76). São exactamente desse ano as oito primeiras quadras registadas em seu nome.

Num projecto não datado (E3 17 A-9) mas talvez de 1908, que coincide com essas primeiras tentativas poéticas escritas em português, Pessoa discrimina os vários tipos de quadra que pretende escrever sob o título de Cantares:

1. Amorous (all kinds).  2. Elegiac. 3. Philosophic and general. 4. In other’s mouths. 5. Objectionable.

Teríamos então cantares de temática amorosa; em tom elegíaco; de índole filosófica e geral; com o texto posto na boca de outrem (certamente feminina); censuráveis ou reprováveis.

Essa designação antiga de Cantares faz-nos supor, quer pelo título quer pelo projecto em si, poder tratar-se de uma réplica aos cancioneiro antigos ou aos tradicionais, pois os items em questão, atribuídos às quadras, correspondem aos tipos incluídos nessas compilações: cantigas de amor (1); cantigas de amigo (4); de saudade e tristeza (2); de cariz sentencioso e conceptual (3). Só das quadras mencionadas em último lugar (5), que corresponderiam a composições de escárnio ou de sátira, não foram deixados exemplares representativos.

Também em relação aos outros tipos que constam do acervo, as quadras de temática amorosa são as predominantes e em tão elevado número em relação às restantes, que seria impossível, dado esse desequilíbrio, uma organização em função desse primeiro projecto. Aliás o próprio Pessoa, que começou por sinalizar com I (ou 1envolvido por um círculo), II, III e IV algumas das suas composições, parece ter abandonado a primitiva ideia de as agrupar por temas, abandonando também a designação de “cantares” para a substituir por “quadras” no plano já referido de 1934.

Mas retomando o primeiro projecto e relacionando as quadras de Pessoa com as cantigas medievais, vemos que, intencionalmente ou não, lá estão representados e actualizados alguns recursos técnicos e formais, assim como reminiscências, agora em forma de quadra, de temas e motivos antigos. Para além de muitas composições de certo modo semelhante às cantigas de amor, temos no conjunto algumas quadras no feminino, em dupla despersonalização, a lembrar as cantigas de amigo:

Vou trabalhando a peneira / E pensando assim assim: / eu não nasci para freira. / Gosto que gostem de mim.

A festa, onde o poeta não está ou está de fora, e que é um motivo recorrente da sua poesia, aparece também nesta série, lembrando aqui em especial a cantiga de romaria:

Nunca houve romaria / Que se lembrasse de mim… / Também quem se lembraria / De quem se lamenta assim?

A dança é também motivo nas quadras e em ambiente de bailia aparecem ainda algumas.

Meia volta, toda a volta, / Muitas voltas a dançar… / Quem tem sonhos por escolta / Nunca pode regressar…

O humor, o maldizer reflecte-se noutras, posto na boca do sujeito:

Chamam-te boa, e o sentido / Não é bem o que eu supunha; / Boa não é apelido: / É, quando muito uma alcunha.

Em forma de desafio popular ou da antiga tenção, precursora da quadra a duas vozes, temos por exemplo:

Disseste-me quase rindo: / “Conheço-te muito bem!” / Dito por quem me não quer, / Tem muita graça, não tem?

O bucolismo e a simplicidade rústica desta quadra trazem ecos duma pastorela e de outras composições do Pessoa ortónimo:

Ó pastora, ó pastorinha, / Que tens rebanhos e riso, / Teu riso ecoa no vale / E nada  mais é preciso.

E para fechar esta apresentação, uma velha alba ressoa nesta madrugada:

Toda a noite ouvi os cães / P’ra manhã ouvi os galos. Tristeza – vem ter connosco. / Prazeres – é ir achá-los…

Existe no espólio uma composição de 1934 junto à qual o poeta registou a indicação “for first”, manifestando o desejo que essa quadra fosse a primeira de uma colectânea ou de algum livro em projecto. Em complemento do que acabámos de ver, terá interesse notar o emprego do vocábulo Cantigas no início da série, em detrimento de outras antigas escolhas como cantares ou  trovas.

Cantigas de portugueses / São como barcos no mar – / Vão de uma alma para outra / Com risco de naufragar.

Um outro ponto a considerar nas Quadras de F. Pessoa são as quadras em si mesmas, muitas vezes chamadas “populares” e teoricamente popularizantes, como é próprio chamar-se às composições do género, da autoria de poetas cultos. No entanto, em Pessoa há muitas composições que escapam ao conceito generalizado de produção popularizante. Se é certo que encontramos no conjunto muitas quadras perfeitas, na sua intenção mimética, dentro dos moldes da poesia popular / tradicional / oral, outras há que, embora obedecendo à estrutura básica e à métrica em redondilha, não se podem considerar realmente popularizantes. Umas distanciam-se desse pressuposto pelo vocabulário empregue ou pela estrutura sintáctica, outras pela complexidade temática e outras ainda pela semelhança com alguns poemas pessoanos. Na sequência deste apontamento, vejamos uma quadra realmente popularizante, que poderia ser de autor anónimo:

A abanar o fogareiro / Ela corou de calor. / Ah, quem a fará corar / De um outro modo melhor?

Outro tipo de quadra é aquela que, sendo popularizante pelo tema e pelos motivos, introduz no discurso expressões ou vocábulos de origem culta ou uma certa figuração que denota a autoria de um qualquer poeta erudito. Como exemplo vejamos estes dois dísticos:

Morena dos olhos baços /Velados não sei de quê […] ou ainda Loura dos olhos de céu / Com um azul tão fatal […]

E agora a quadra que, pelo tema ou pelos elementos que a informam se pode dizer popularizante, mas que, pelas marcas peculiares e pela linguagem em que se desenvolve, já não pode pertencer a qualquer poeta culto, mas apenas a F. Pessoa.

Na quinta que nunca houve / Há um poço que não há / Onde há-de ir encontrar água / alguém que te entenderá.

Finalmente aquela composição que, mantendo a forma de quadra, se autonomiza como poema, um poema-síntese, tão pessoano como outros mais longos do mesmo autor.

Quando eu era pequenino / Cantavam Para eu dormir. / Foram-se o canto e o menino / Sorri-me para eu sentir.

Quanto à temática desenvolvida nas Quadras, podemos ver aqui os principais temas e motivos da lírica portuguesa, a nível popular e culto – o amor, a saudade, o desdém, ou o vento, a noite, a nuvem, o céu, os olhos, o cabelo, o sorriso, a boca, etc., mas sobretudo o coração. Esta vasta produção de quadras sobre o amor indica, tratando-se de Pessoa em cuja obra o tema não tem peso, o carácter mimético destas composições.

Contudo, nas quadras onde Pessoa mais se revela, lá estão os topoi habituais da sua poesia, sobressaindo inesperadamente do tom calmo, leve e bem disposto em que decorrem as restantes. Temos então o sonho, o pensamento, a infância, o fingimento, o adiamento, a vontade, a insónia, o esquecimento, etc., a surgir teimosamente da “máscara” do poeta popular, para nos dar a ler o Poeta.

No que diz respeito à estrutura, embora em muitas quadras o sentido acompanhe o desenrolar do assunto ao longo dos seus quatro versos, na maioria das composições aparece uma estrutura dicotómica, à maneira tradicional, em que os dois dísticos se ligam por um elemento comparativo, ou onde a ideia esboçada no primeiro é interrompida pela pontuação para  se completar no segundo. Contudo, à semelhança dos cancioneiros populares mais antigos, Pessoa usa muitas vezes a estrutura bipartida, formada por dois dísticos aparentemente sem qualquer relação entre si, porque se perdeu a ligação lógica entre os dois membros da quadra. 

Eu voltei-me para trás / Para ver se te voltavas. / Há quem dê favas aos burros, / Mas eles comem as favas.

Este tipo de texto, que aparece nas mais antigas recolhas, devia ter atraído Pessoa pela sua modernidade e pela proximidade de processos usados no seu próprio discurso para criar situações de ambiguidade ou de absurdo.

Apenas ainda uma breve menção ao espaço e ao tempo em que decorrem as quadras. Se olharmos as referências a locais, objectos, alimentos ou vestuário, vemos que eles se integram em ambientes que logo sugerem dois espaços distintos: o rural e o urbano. O espaço rural é-nos mostrado em vocábulos e expressões como: adro da igreja, feira, peneira, púcaro de barro, candeia, bilha à cabeça, alcatruzes da nora, pastora, etc.

Dentro do espaço urbano poderíamos distinguir: o popular ou urbano-rústico, que aparece em largo da praça, manjerico, saia de chita, xaile, chinelas, cabaz, chaleira, carapaus, latas de atum, pratos de arroz-doce, etc; e o citadino, correspondente a uma sociedade classe-média na primeira metade do século XX, principalmente no que envolve adornos femininos e hábitos alimentares: relógio de pulso, cabelo cortado, colar de pérolas, lenço de cambraia, luva, leque, chapéu, salva de prata, camarão, queijadas, capilé, etc.

As quadras de F. Pessoa aparecem assim, não só como um documento literário bastante inesperado, vindo de um autor predominantemente intelectual, mas também como um testemunho epocal e sociologicamente interessante, pois nos dá a conhecer o tempo e o espaço em que o poeta se moveu e os ambientes que recriou usando a pequena forma poética nacional.

 

 

BIBL.: Fernando Pessoa, Cartas a Armando Côrtes-Rodrigues, ed. Joel Serrão, Lisboa, 1945, 3.ª ed., Lisboa, Horizonte, 1985; Prefácios de Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho in Fernando Pessoa, Quadras ao Gosto Popular, Lisboa, Ática, 1979; Luísa Freire, O Feitiço da Quadra, Lisboa, Veja, 1999.