A ideia de que os modernismos de Portugal e do Brasil se ignoraram mutuamente - ou a de que o modernismo  brasileiro impôs a ruptura “definitiva” entre as literaturas de dois países com uma história e uma língua comum - foi alimentada por alguns modernistas, e por longas décadas teve a tácita aceitação ou a indiferença da crítica portuguesa (Pedro da Silveira ainda em 1981 dava alguns simbolistas como “os últimos luso-brasileiros”) mas foi apoiada ou sublinhada pela generalidade dos historiadores e ensaístas da literatura brasileira, entre os quais  Antonio Candido e Afrânio Coutinho. Antes de averiguar da verdade ou falsidade dessa ideia, e de outras que correm a respeito dos dois mais importantes movimentos culturais que a língua portuguesa  produziu no século XX, conviria precisar de que modernismos se fala, pois podem conceber-se vários, com flutuações conceptuais e temporais que às vezes indiciam prefixos como pré, proto, neo, pós, contra, anti. Os modernismos em causa definem-se  tanto pela ruptura com as estéticas parnasiana e simbolista como por novas propostas inspiradas ou impulsionadas sobretudo pelo futurismo francês e italiano; além de livros, geraram ao longo da segunda e terceira décadas do sec.XX manifestos, revistas, acções de agitação e propaganda; e  tiveram o seu lugar e momento  culminante, ou fulminante, um em Lisboa, em fins de Março de 1915, com a publicação da revista Orpheu, e o outro em  S.Paulo, com a Semana de Arte Moderna de 13 a 17 de Fevereiro de 1922, considerando-se como regra terminado o período de militância modernista portuguesa em 1927 (quando apareceu a revista presença) e o de militância modernista brasileira em 1930 (quando foi publicado o livro de Drummond Alguma Poesia). São bem conhecidos os agentes principais desses movimentos - os lisboetas Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, a que se associaram autores como Luís de Montalvor, Alfredo Guisado, Armando Côrtes Rodrigues, e os paulistanos Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, e outros como os cariocas  Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho, vindo a entrar também no movimento outros grandes criadores em diversas cidades, como Cecília Meireles, Drummond, Jorge de Lima, Gilberto Freyre, Raul Bopp. Não é porém muito referido o diferenciado quadro histórico-cultural dos dois países no tempo de incubação e de manifestação dos dois modernismos. Portugal viveu desde 1880, ano do Ultimatum ingês, um dos períodos mais agitados da sua  história: revoltas, greves, regicídio, proclamação da república, atentados, perseguições, perturbações relacionáveis com a Grande  Guerra e com a revolução russa, assassinato de Sidónio Pais, proclamação da Monarquia do Norte, revolução de 28 de Maio (de 1926), início da ditadura salazarista. Já o Brasil teve então uma autêntica “belle époque”, favorável ao “ufanismo” teorizado em  1900 por Afonso Celso, e não desmentido por acidentes pontuais e localizados como a Revolta da Armada (1893), a rebelião dos Canudos (1896-7), a Revolta dos Marinheiros (1910); só exactamente a partir de 1922 começam a surgir graves perturbações políticas e sociais: o tenentismo, a fundação do Partido Comunista e a movimentação da coluna Prestes, a revolta contra o presidente Bernardes, a revolução de 1930. Mas, se em Portugal se instalou o pessimismo que traduziram os versos de Pessoa (“Ninguém sabe que cousa quer”...), no Brasil, e em especial em São Paulo, assistiu-se ao frenesim dos “frementes anos 20”, marcados pelo crescimento urbano e industrial e por novidades como as do cinema, da rádio, do automóvel, do jazz, etc.

Este quadro ajuda logo a perceber algumas diferenças entre os modernismos português e brasileiro. Mas conviria lembrar razões concretas que determinaram algum afastamento entre as  culturas de que eles saíram, e que, com ou sem ironia (veja-se o “manifesto antropófago” de Oswald de Andrade, em 1928, ou a “conferência da Academia” de Graça Aranha em 1924), muitos textos do modernismo brasileiro preconizaram: 1) A progressiva consciência independentista dos brasileiros, tanto mais que se cumpriu em 1922 o I Centenário da Independência do Brasil; 2) A multiplicação de pequenos conflitos luso-brasileiros, como o corte diplomático de Floriano Peixoto, as manifestações de 1913, no Rio e em São Paulo, contra  os portugueses que dominavam a imprensa, a questão dos “poveiros” em 1922, até à “Noite das Garrafadas” de 1931; 3) A Guerra de 1914-1918,  que além do mais dificultou as comunicações transatlânticas; 4) Os novos emigrantes do Brasil, desde os italianos aos árabes ou, a partir de 1908, aos japoneses, que em certas zonas secundarizavam, também culturalmente, os portugueses; 5) A questão da “literatura brasileira”, suscitada desde Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, e geradora de   polémicas nacionalistas; 6) A questão da língua, a começar pela “língua literária”, que Alencar também suscitou; 7) A questão da ortografia, associada à questão anterior e agravada com sucessivas tentativas falhadas de unificação ortográfica; 8) A preponderância no Brasil  do modelo cultural francês, que aliás era apoiado por portugueses de Paris e  de Portugal, onde também era seguido; 9) A má imagem recíproca de portugueses e brasileiros, relacionável com algum ressentimento de ex-colonizador e ex-colonizado, e  traduzida até em gentílicos nada gentis: pés-de-chumbo, marotos, portugas... macacos, mulatos, brasucas... Mas, a par de razões para o afastamento das duas culturas, no período em causa também houve razões para a sua aproximação. Lembremos as seguintes: 1) Leitura, em livros, em almanaques  ou em revistas, de escritores portugueses no Brasil, e de escritores brasileiros em Portugal – basta pensar  nos nomes de Camilo, Eça, António Nobre, Junqueiro, Eugénio de Castro, Malheiro Dias..., ou  de Olavo Bilac, Raimundo Correia, Luiz Guimarães Júnior, Coelho Neto, Euclides da Cunha, Sílvio Romero... 2) Circulação no Brasil de  revistas, almanaques  e jornais de Portugal e das comunidades emigrantes portuguesas – muitas publicações previam o mercado de Portugal e do Brasil, e queriam-se luso-brasileiras, entre as quais algumas  já do período modernista, como A Águia, Orpheu, Atlântida; 3) A emigração portuguesa para o Brasil, que tradicionalmente era o país mais procurado pelos portugueses, em levas anuais desiguais, mas mais numerosas em anos como os de 1910-1913, devido ao exílio de muitos monárquicos; 4) A presença de agentes culturais portugueses no Brasil e de agentes culturais  brasileiros em Portugal -  como, já na véspera ou no tempo do Modernismo, Paulino de Oliveira, Ana de Castro Osório, Luís de Montalvor, Alberto de Oliveira, António Patrício, Correia Dias, Álvaro Pinto, António Sérgio, Jaime Cortesão, António Ferro, José Osório de Oliveira, os livreiros Francisco Alves, Heitor Antunes, Joaquim Antunes e Joaquim Saraiva, numerosos actores (entre os quais António Silva  e Adelina Abranches), e Olavo Bilac, João do Rio, Álvaro Moreira, Felipe de Oliveira, Oswald de Andrade ; 5) A celebração de vários acordos culturais entre  governos ou entre instituições de Portugal e do Brasil (por exemplo, de propriedade literária e artística e de dupla nacionalidade); 6) Os debates sobre a ideia de uma Confederação Luso-Brasileira – ideia antiga, de 1882, que se reavivou em 1908 –1909, e que previa uma estreita ligação política, económica e cultural entre os dois países; 7) A criação de embaixadas no Rio e em Lisboa, em 1913,  e a criação de uma cadeira de estudos brasileiros  em Lisboa, em 1923- esta última graças sobretudo aos esforços que desde 1915 fez o poeta e cônsul português Alberto de Oliveira; 8) A edição e venda de livros brasileiros em Portugal e de livros portugueses no Brasil – lembre-se apenas os esforços da Lello no Porto e do Anuário do Brasil no Rio, lembre-se que Manuel Bandeira admirava as edições coimbrãs de França Amado, que quis seu editor, e lembre-se esta informação de Marisa Lajolo : “Em 1924, o Brasil tinha importado 179.793 quilos de livros de Portugal e exportado 648”; 9) A primeira travessia aérea do Atlântico (Lisboa / Rio)  feita por Gago Coutinho e Sacadura Cabral de 30 de Março a 17 de Junho de 1922, e a visita que nesse mesmo ano (do Centenário da independência do Brasil) fez ao Brasil o presidente António José de Almeida.

Embora o sopro do Modernismo não se fizesse sentir em muitos dos factos referidos, é fácil  intuir os exageros de Afrânio Coutinho:”No sec.XX, a distância entre o Brasil e Portugal é maior que entre o Brasil e a França”; ”a ponto de que os dois modernismos – o luso e o brasileiro – quase nenhum contacto mantivessem, e mais, o português passasse quase ignorado no Brasil”. Na realidade, há curiosos paralelismos e analogias entre alguns textos de modernistas brasileiros e portugueses, que beberam em fontes comuns da tradição culta e popular, ou da estética moderna, pós-simbolista e futurista, nalguns casos com influência clara (Leviana, de António Ferro, em Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade), noutros duvidosa; menos duvidosa é a presença de pré-modernistas em modernistas, por exemplo, a de Olavo Bilac em Pessoa - que foi lido no Brasil como tradutor desde 1913, desde a publicação da importante Biblioteca Internacional de Obras Célebres - , e a de Gomes Leal, António Feijó, António Nobre e Eugénio de Castro em Bandeira, para dar só um exemplo. Mas  é possível falar de outras relações relevantes dos dois modernismos: relações pessoais (Luís de Montalvor e António Ferro relacionaram-se com  vários pré-modernistas ou modernistas brasileiros, Oswald de Andrade e Ronald de Carvalho com portugueses); relações epistolares (cartas de Ferro para Oswald e vice-versa, de Ronald para Montalvor  e vice-versa, de Pessoa para Ronald); relações de colaboração (Sá-Carneiro colaborou num jornal e em revistas do Rio logo em 1913 e 14, Ronald colaborou no Orpheu, Ferro colaborou na Klaxon, Oswald colaborou na Contemporânea, Gilberto Freyre colaborou na Portugália...); relações de leitores das mesmas publicações (luso-brasileiras ou não); relações de críticos (Montalvor sobre Ronald, Ronald sobre Sá-Carneiro e sobre Montalvor, ou sobre o intercâmbio luso-brasileiro, Ferro sobre “os novos do Brasil” e sobre Oswald, este, tal como Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Carlos Drummond de Andrade, Ronald e José Lins do Rego sobre Ferro).

            É possível assinalar diferenças  entre os dois modernismos, que, como foi dito, surgiram em quadros nacionais distintos; um que “explode” em 1915, outro em 1922; um que dura, em militância, até 1927, outro até 1930; um que é de Lisboa, com um pequeníssimo arremedo em Faro, outro que é de São Paulo e do Rio, mas também de várias capitais (Recife, Maceió, Bahia, Belo Horizonte, Cataguases, Porto Alegre...); um que constituiu uma só equipa, em número aproximado ao de uma equipa de futebol, outro várias; um que, salvo no caso de Pessoa, que foi toda uma literatura, e de Almada, deixou uma produção escassa (mas é espantosa a produção de Sá-Carneiro, que só viveu 25 anos), outro que deixou uma vasta produção; um, mais cosmopolita, que explorou sobretudo temas relacionados com a condição humana e com os mundos interiores, outro mais nacionalista, e mais extrovertido, que se preocupou especialmente com a realidade  brasileira; um mais dramático e pessimista, outro mais dado ao humor e ao optimismo; um valendo-se de uma língua mais ou menos canónica mas como que renovada ou revolucionada por dentro, outro desviando-se ostensivamente de normas até então vigentes e abrindo-se, às vezes despudoradamente, à oralidade e ao analfabetismo ( Mário de Andrade até inventou uma inconsistente Gramatiquinha da Fala Brasileira). Mas não são poucos os pontos de encontro entre os dois modernismos. Os seus protagonistas, só homens –  as mulheres viriam a participar activamente noutros movimentos do sec. XX – , nasceram  depois de 1886 (Manuel Bandeira, Raul  Leal); dois anos mais novo que Pessoa, Sá-Carneiro nasceu em 1890, como Oswald de Andrade; Almada Negreiros nasceu em 1893, ano em que nasceram Mário de Andrade, Ronald de Carvalho e Jorge de Lima; se o mais jovem modernista português, António Ferro, nasceu em 1895, Drummond, um dos mais jovens modernistas do Brasil, nasceu em 1902. Os dois modernismos, que surgiram em quadros nacionais diferenciados, foram apesar de tudo condicionados pelos mesmos ou idênticos  fenómenos  político-sociais internacionais: a guerra, a crise das oligarquias, o crescimento urbano, o acelerado progresso técnico e industrial, os governos ditatoriais ou autoritários. Os dois  modernismos usaram as mesmas estratégias de afirmação - manifestos, polémicas, performances, revistas: Orpheu, Portugal Futurista, Athena, Contemporânea...; Klaxon, A  Revista, Revista de Antropofagia, Verde... - , fizeram o mesmo tipo de ruptura com os que Mário de Andrade chamou “mestres do passado” (parnasianos e simbolistas),  manifestaram idêntico desprezo pelos académicos e pelos conservadores, tipificados no Dantas de Almada, nos “mandarins da Europa” de Pessoa e nos “burgueses” do mesmo Mário de Andrade, e transitaram por ismos: Paulismo, Interseccionismo, Sensacionismo, futurismo..., futurismo, desvairacionismo, verde-amarelismo, antropofagismo... Os dois modernismos investiram especialmente na poesia, para eles a modalidade artística por excelência, tendo deixado uma escassa produção fictiva e uma ainda mais escassa produção teatral, e exploraram os limites de géneros e de regras: verso livre, poema em prosa ou prosa poética, poema piada, novo épico, discurso carnavalesco, fragmentações, discontinuidades, explorações verbo-visuais.

            Mau grado as restrições ou os limites que os pós-modernistas apontam aos modernismos, e que Ledo Ivo apontou ao modernismo brasileiro, os dois modernismos empenharam-se em cumprir como que religiosamente uma elevada missão cultural, estética e ética, pretendendo com as suas novas criações a  criação de um novo país ou de um homem novo, inteiro, livre, comprometido na luta contra desigualdades, tabus e preconceitos. Finalmente, ambos os modernismos se encontraram nalguma ignorância mútua, motivada ou não  pelas razões já apontadas. Porque  se contam sem dúvida entre os mais importantes movimentos culturais que já houve em Portugal e no Brasil, talvez devêssemos perguntar até onde poderiam ter ido se houvesse entre eles – entre os seus grandes criadores – uma bem mais sólida aliança, um estreito intercâmbio. Mas essa pergunta é agora impertinente ou estéril. O que não é impertinente é dizer que com eles ou por eles cada um dos dois países  se tornou mais digno e mais rico, e  ganhou afinal outros motivos de  aproximação - os que impõem novas obras primas escritas em língua comum, mesmo se com outra norma. Essas obras, que dão prazer e abrem os horizontes dos que se incluem na pátria da língua portuguesa, contribuem também, e de que maneira, para que esta pátria, ou esta língua e a sua cultura, tenha a acção e o reconhecimento internacional que não tem tido.

 

BIBL.: LAJOLO, Marisa, “Correspondência entre Ana de Castro Osório e Monteiro Lobato”, in Brasil e Portugal: 500 Anos de Enlaces e Desenlaces, n.º especial de Convergência Lusíada 17,  Rio de Janeiro, Real Gabinete Português, 2000; RICARDO, Cassiano, Arte & Independência, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1973; SARAIVA, Arnaldo, Modernismo Brasileiro e Modernismo Português (1986), Campinas, Unicamp, 2004.