Uma auto-interpretação de Fernando Pessoa é bastante conhecida através da qual entendemos que o nosso poeta foi durante a vida quase sempre “animado pela filosofia”. Todavia, folhando os seus numerosos fragmentos filosóficos repara-se imediatamente numa imensa preponderância ao lado da ontologia. Para além das suas vastas considerações sobre a estética e sobre a teoria do conhecimento, parece que Pessoa nunca esteve muito interessado nos problemas da filosofia prática. E mesmo em vários textos que não são propriamente filosóficos pode-se sentir escondidamente a preocupação pessoana sobre a nossa existência, seja ela verdadeira, ilusória ou simplesmente sonhada. Em suma, muitos raciocínios pessoanos giram em torno do problema do Ser, relevando aqui, como poeta, uma verdadeira preocupação filosófica, ou mais concretamente, ontológica. “It is nothing but the problem of substance, or of being, the central question of all philosophy.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos I, Ática, Lisboa 1968, p.201).Se nos perguntarmos de onde vem esta inquietação ontológica, chegamos rapidamente aos seus estudos filosóficos feitos muitas vezes na Biblioteca Nacional. Sem grande surpresa, reconhecemos que uma enorme parte destes estudos foi dominada pelos filósofos pré-socráticos. E, de facto, na tentativa de perceber melhor o pensamento filosófico de Fernando Pessoa temos de recapitular as suas pesquisas dentro do universo dos sete sábios, dos filósofos iónicos e pitagóricos, dos atomistas e sobretudo dos eleatas. Tal como estes pré-socráticos, Fernando Pessoa preocupou-se durante muito tempo com a questão central sobre a arché, sobre a primeira causa ou sobre o início de todas as coisas, ou em geral em saber se a (nossa) existência é real ou não. 

Neste ponto é possível verificar que Pessoa teve já muito cedo contacto com Anaximandro que definiu o princípio das coisas como uma substância única, eterna e infinita chamada apeiron. Pessoa reconheceu esta argumentação sobre o infinito como a fonte de todos os sistemas metafísicos, embora tenha desde logo sublinhado a incapacidade do raciocínio humano em perceber uma coisa infinita: “The problem of the infinity and eternity of the world cannot be put, because we have no elements to solve it.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos II, Ática, Lisboa 1968, p. 70). Para além disso, há mais um outro problema ontológico que Pessoa viu nitidamente. Se alguém admitia a existência de uma substância básica e única como a origem de todas as coisas, não ia conseguir encontrar uma solução para a questão do movimento ou da mudança. Como seria possível que uma substância se transforme em outra coisa? Ou seja, como podemos pensar um mundo onda não há movimento? É natural que se procurem aqui soluções na filosofia dos eleatas sobre os quais parece que Pessoa planeou vários ensaios (por ex.: ESSAY ON THE ELEATIC SCHOOLS; I. Xenophanes. II. Parmenides. III. Zeno. IV. Melissus. V. Gorgias. VI. Reduction of all systems to the system of the Eleatics. [E3 24-26r-v]). Assim encontramos nos seus textos filosóficos muitas reflexões sobre o Ser e o movimento, influenciado principalmente por Parménides, Mellisus e Zenão. Curiosamente, é esta ocupação que tem uma enorme importância para compreender uma grande parte da sua obra, muitas vezes bipolarizada entre a razão abstracta e os sentidos concretos. Tudo indica que Pessoa concordou com a opinião dos eleatas a partir da qual nenhum objecto poderia transformar-se em algo diferente do que era. À primeira vista, pode parecer absurdo afirmar que não há movimento no mundo quando todos os nossos sentidos dizem que as coisas se movem ininterruptamente de um lado para o outro. Porém, Pessoa parece concordar com a negação do movimento, recorrendo aos famosos paradoxos de Zenão. Se nos referirmos ao problema do contínuo ou da possibilidade em dividir as coisas eternamente, não pode existir movimento. Pessoa recorre aqui especialmente ao paradoxo de Aquiles e da tartaruga. Embora os paradoxos de Zenão representem mais uma estratégia de defesa dos argumentos do seu mestre Parménides e embora os mesmos possam ser facilmente refutados, Pessoa chegou através destes argumentos mais uma vez à sua característica indecisão sobre a existência do universo: “O argumento de Zenão não nega o movimento no universo: afirma apenas que o facto de haver movimento no universo mostra que o universo não é uma realidade absoluta, não é o ser – porque o movimento não é (o argumento prova-o) característica do real, do ser.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos I, Ática, Lisboa 1968, p. 83). Todavia, o mais marcante dos filósofos eleatas foi Parménides de quem Pessoa conheceu muito bem a célebre frase “Nada nasce do nada, e nada do que existe se transforma em nada”. A partir da escola eleática em geral e de Parménides em particular, Pessoa distinguiu filosoficamente entre a unidade e a imobilidade do Ser (alétheia), e entre o mundo sensível como ilusão (dóxa), ou seja, de um mundo do qual não se pode ter nenhuma certeza: “The world as we know it does not exist – it exists only in our senses and somewhat in our thought. (…) The world, as it is, has no existence at all.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos II, Ática, Lisboa 1968, p. 229). Sob este ponto de vista, torna-se bastante interessante a confrontação de Pessoa com Heraclito que é quase sempre considerado como o oposto absoluto quando defendeu a tese de que tudo está em perpétua mutação. Pessoa entendeu rapidamente que esta oposição entre as duas visões do todo passa a ser cada vez menor se olharmos para as relações entre sujeito e objecto. Sob o título Change, Pessoa anotou o seguinte: “All things changing, says Heraclitus, no knowledge is possible. My answer is that, all things changing, myself change with them, and so am in a relative stability. Subject and object changing perpetually are stable one in relation to the other. The world is only in perpetual change when contrasted to something immutable.” (F. Pessoa, Textos Filosóficos I, Ática, Lisboa 1968, p. 113).

Estas numerosas considerações, meditações e reflexões podem parecer meros exercícios de divertimento intelectual dentro do universo das abstracções metafísicas. Porém, esta ocupação com a filosofia pré-socrática foi extremamente importante para o desenvolvimento geral da obra pessoana e o fundamento decisivo para o racionalismo rígido de Pessoa. Ou seja, através dos sentidos podemos perceber que as coisas mudam. Todavia, a nossa razão ia intervir dizendo que logicamente não existe a possibilidade de que um objecto se modifique e permaneça igual. Pessoa escolheu para si a razão como fonte principal da sua percepção do mundo. Mas como os racionalistas são em geral também muito cépticos, Pessoa fez nascer Alberto Caeiro que viveu com uma inabalável confiança nos seus sentidos. Ou, por outro lado, na sua obra podemos encontrar um dos seus famosos aforismos que nos diz: “Nada se «move»: tudo muda.”

 

BIBL.: Dix, S., “O Poeta «animated by philosophy» ou A Admiração perante a Existência do Universo”, in: Dix, S. e Pizarro, J. (org.), A Arca de Pessoa, Lisboa 2007.  Rebelo, L.S., “Alberto Caeiro e o Neopaganismo”, in: Poemas Completos de Alberto Caeiro, Lisboa 1994.

 

 

Steffen Dix