(1891–1918)

António Cardoso – 25/09/-11/06/) foi colega de Mário de Sá-Carneiro no seu tempo de liceu e integrou, junto com o poeta de Dispersão e com outros estudantes interessados em discutir questões relativas à arte e à literatura modernas nos anos que imediatamente antecederam e sucederam a proclamação da República em Portugal, um grupo de jovens intelectuais cujas atividades académicas contemplavam sistematicamente o teatro. Do grupo participou também Tomás Cabreira Júnior, que se suicidaria em 1911, poucos meses depois de escrever, em colaboração com Sá-Carneiro, os três actos da peça Amizade, que haveria de representar-se e editar-se em 1912.  

            Ponce de Leão e os seus camaradas começaram a destacar-se na realização de pequenas récitas escolares que, sempre com intuito beneficente, acabaram por conduzir à criação de uma União Dramática de Caridade – à frente da qual estavam o actor Mário Duarte (que se distinguiu como director do grupo) e Mário de Sá-Carneiro (como autor dramático  e também como actor) –, que depois passou a chamar-se Grupo Dramático Mário Duarte e, em seguida, Sociedade de Amadores Dramáticos (foi esta a responsável, aliás, pela representação de Amizade no teatro do Clube Estefânia, em Lisboa, em Março de 1912). Não foi pequena a participação do Ponce (assim afectivamente nomeado por Mário de Sá-Carneiro em várias cartas enviadas de Paris a Fernando Pessoa) nesse grupo que, afinal, parece ter ajudado a lançar, em Portugal, as bases de um Pré-Modernismo que carece ainda da atenção dos críticos de literatura e de teatro. Com efeito, além de ter escrito, em parceria com o autor de A confissão de Lúcio (obra que lhe foi, aliás, dedicada) a peça Alma, em acto único – precisamente no ano de 1913, o mesmo ano em que Fernando Pessoa escreveria O marinheiro –, António Ponce de Leão compôs outros quatro textos dramáticos, dos quais dois foram também escritos em parceria: O passado, com a co-autoria de Mário Duarte, e A mãe dos nossos filhos, em colaboração com Oliveira Mouta. Os outros dois têm a autoria exclusiva de Ponce de Leão: A onda, peça em um acto, foi publicada em Lisboa, pela Livraria Ventura Abrantes, no ano de 1915, depois de ter sido representada, também em Lisboa e a 27 de Março desse mesmo ano, no Teatro do Ginásio Dramático, ao qual estava então ligado o actor e director Mário Duarte; e Venda, peça em três actos que até hoje, curiosamente, se mantêm inéditos, assim como inéditas estão as duas peças escritas em parceria com Mário Duarte e com Oliveira Mouta, que também nunca chegaram a representar-se. A esta produção acrescenta-se ainda: um pequeno (e ingênuo) poema dramático, O relógio do Sr. Cura (provável fruto das primeiras experiências literárias do autor); uma tradução, feita em parceria com Mário de Sá-Carneiro, da peça Os fósseis, de François de Curel – texto que, entretanto, se perdeu –; uma peça em quatro atos, intitulada Mentirase composta também em colaboração comSá-Carneiro, com a qual os jovens autores tencionavam abrir o primeiro espetáculo da Sociedade de Amadores Dramáticos, em 1912 (como se depreende de uma entrevista concedida à Folha da Tarde, de Lisboa, no dia 3 de Março daquele ano), e que, todavia, não chegou a ser representada, tendo-se perdido, possivelmente, o manuscrito; e um livro de crítica e crónicas de teatro editado pelo autor em 1917 com o título Se Gil Vicente voltasse..., no qual se reúnem vários textos de sua autoria acerca do teatro que no seu tempo se produzia em Portugal – dentre essas crónicas e artigos de crítica teatral, merece destaque uma “Carta ao Sr. Victoriano Braga”, na qual Ponce de Leão tece elogios ao autor de Octávio, peça que se estreara em Lisboa, em 1916, e que o crítico considera “obra de verdadeiro teatro moderno com páginas de verdadeira beleza” que, no entanto, os seus contemporâneos não souberam compreender.

            O teatro de Ponce de Leão dá-nos a impressão de um teatro de passagem, ou de transição, que não rompe ainda com o modelo naturalista – os seus diálogos ainda são, convencionalmente, os do drama burguês e as suas personagens ainda se relacionam entre si, embora possamos detectar aí algo como um prenúncio do colapso das relações intersubjectivas –, mas que se situa já na antecâmara, digamos assim, do teatro propriamente moderno. É que ao compor, sistematicamente, personagens que se esforçam por ocultar a sua verdadeira face (ou os seus desejos mais secretos), o autor parece confirmar a sua adesão à moderna dialéctica da alma dissociada, do sujeito intermédio entre o Eu e o Outro. Isto fica bastante evidente nas três peças que parecem ser, dentre as que ele escreveu, as mais significativas: A onda, Venda e Alma.

A onda, como a descrevia o crítico de A Capital no ano de 1915, “abre por uma cena burguesa de comédia que não deixa adivinhar a intensidade dramática do diálogo em que uma viúva ardente e sedutora, dominada pelas extravagâncias de uma complicada histeria, expõe a um jovem advogado as tendências do seu espírito mórbido”. Também o drama do protagonista de Venda é o de uma fractura psíquica: dividido entre os apelos da razão, que se lhe impõem, e a força dos instintos que ele insiste em recalcar, Augusto Ávila só inconscientemente, dominado por lapsos decorrentes de crises de epilepsia, consegue dar vazão aos desejos sexuais que o levam ao encontro da mulher com quem se casara e a quem ele, conscientemente, decidira desprezar por julgar que o matrimónio fora, para ela, uma conveniência financeira. Em Alma, por fim, dois homens e uma mulher constituem um estranho triângulo amoroso: só a um Clara entrega o seu corpo – a Jorge, que é poeta e dramaturgo, um idealista confesso que antes gostaria de possuir a alma que o corpo da sua mulher –; ao outro ela reserva toda a sua alma – a Ricardo, seu primo, espírito resignado que não hesita em assumir uma missão militar em Timor para fugir da sua frustração amorosa. Em busca de uma plenitude ilusória que jamais se consuma, as personagens desta peça de Ponce de Leão (e também de Mário de Sá-Carneiro, convém lembrar) desdobram-se em corpo e alma, dispersam-se, duplicam-se.

Se o que se vê nesse teatro não é ainda o indivíduo radicalmente isolado, auto-centrado, que confere ao mundo a dimensão e o teor da sua própria subjetividade – tal como o podemos ver entre os protagonistas do teatro moderno propriamente dito –, é decerto para ele que aponta o dramaturgo Ponce de Leão, decididamente interessado pelos escaninhos da alma e pelos seus desdobramentos.

António Ponce de Leão foi acometido por doença pulmonar que o levou à morte antes mesmo de completar os seus 28 anos de idade, em 1918 – mesmo ano em que Portugal perdia também dois importantes pintores do Modernismo: Santa-Rita Pintor, aos 29 de Abril, e Amadeo de Souza-Cardoso, aos 25 de Setembro.

 

 

BIBL.: PONCE DE LEÃO, António Cardoso, Se Gil Vicente voltasse…, Lisboa, s.n., 1917;  REBELLO, Luiz Francisco, “Nota introdutória”, in PONCE DE LEÃO, António Cardoso, SÁ-CARNEIRO, Mário de, Alma, Lisboa, Rolim, 1987, p. 9-24; REBELLO, Luiz Francisco, “Um dramaturgo português desconhecido: António Ponce de Leão”, in Colóquio-Letras (Lisboa), n. 34, p. 25-33, 1976.

 

 

Renata soares Junqueira