A poesia dramática – entendida como drama em verso - culmina em Shakespeare, segundo Pessoa o afirma em muitas passagens. E Shakespeare é um dos seus modelos permanentes. Mas a extensão do género pode ser entendida de outro modo, se pensarmos no exemplo dos monólogos dramáticos de Browning ou no dos monodramas de Tennyson, ainda dentro da tradição inglesa. De todo o modo, a associação deste(s) género(s) à poesia dos heterónimos é feita pelo próprio Pessoa, e tomada a sério pela crítica, sobretudo em Teresa Rita Lopes e José Augusto Seabra. A reivindicação da qualidade dramática da heteronímia é feita por Pessoa nas cartas a João Gaspar Simões ou a Adolfo Casais Monteiro (v. Heteronímia – História), ou, ainda, numa carta, menos citada, de 10 de Agosto de 1925 a Francisco Costa, em que surge a síntese seguinte, claríssima pela ligação que tece entre o drama como género e o fingimento como poética, a propósito de um livro  de poemas que este lhe enviara: «Para mim, pois, a arte é essencialmente dramática, e o maior artista será aquele que, na arte que professa – porque em todas as artes, condicionado isto pela “matéria” delas, se podem fazer dra­mas, isto é, sentir dramaticamente – mais intensa, profusa e complexamente viver tudo quanto não é ele, isto é, que mais intensa, profusa e complexamente exprimir tudo quanto em verdade não sente, ou, em outras palavras, sente apenas para exprimir» (Correspondência, II, 84-85).

Em fragmentos póstumos, podem ler-se apresentações muito claras desta definição genológica. Propõe, por exemplo, «um poeta que seja vários poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica. Cada grupo de estados de alma mais aproximados insensivelmente se tornará uma personagem, com estilo próprio, com sentimentos porventura diferentes, até opostos, aos típicos do poeta na sua pessoa viva. E assim se terá levado a poesia lírica - ou qualquer forma literária análoga em sua substância à poesia lírica - até à poesia dramática, sem, todavia, se lhe dar a forma do drama, nem explícita nem implicitamente» (Prosa Íntima, 150). O fragmento em que esta definição é mais perfeita é um dactiloscrito dos últimos anos, em que se enumeram os graus da poesia lírica, que correspondem a sucessivos graus de despersonalização, tendo a poesia dramática como referência: «O primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, de temperamento intenso e emotivo, exprime espontânea ou reflectidamente esse temperamento e essas emoções. […] / O segundo grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, por mais intelectual ou imaginativo, pode ser mesmo que só por mais culto, não tem já a simplicidade de emoções, ou a limitação delas, que distingue o poeta do primeiro grau. […] / O terceiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, ainda mais intelectual, começa a despersonalizar-se, a sentir, não já porque sente, mas porque pensa que sente; a sentir estados de alma que realmente não tem, simplesmente porque os compreende. Estamos na antecâmara da poesia dramática, na sua essência íntima. […] / O quarto grau da poesia lírica é aquele, muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda mas igualmente imaginativo, entra em plena despersonalização. Não só sente, mas vive, os estados de alma que não tem directamente. Em grande número de casos, cairá na poesia dramática, propriamente dita, como fez Shakespeare, poeta substancialmente lírico erguido a dramático pelo espantoso grau de despersonalização que atingiu. […] / Suponhamos, porém, que o poeta, evitando sempre a poesia dramática, externamente tal, avança ainda um passo na escala da despersonalização. Certos estados de alma, pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos, tenderão a definir para ele uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente» (Páginas de Estética, 67-69).

Existe, igualmente, um fragmento de um projectado Ensaio sobre a Iniciação, em inglês, em que a própria progressão iniciática é associada a uma crescente despersonalização dramática: «O grau de Mestre será, da mesma maneira: 8) o escrever poesia épica, 9) o escrever poesia dramática, 10) a fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática em algo para lá de todas elas» (Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, 70). Restará saber se a «fusão de toda a poesia» é uma exemplificação da iniciação gnóstica, uma exemplificação da ideia hegeliana de poesia dramática como a fase mais elevada da arte ou uma simples metáfora da criação heteronímica.

 

 

BIBL.: Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética. Fragmentos do Espólio, ed. Yvette Centeno, Lisboa, Presença, 1985; Fernando Pessoa, Prosa Íntima e de Autoconhecimento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007.

     

 

Fernando Cabral Martins