Há um fragmento de 1915 (Páginas Íntimas, 262-263) que coloca com uma tal clareza o problema das relações entre Modernismo e Vanguarda que aqui se transcreve na íntegra. Quem o assina é Pessoa ele mesmo, embora numa versão que o aparenta a Álvaro de Campos. De notável tem a preocupação de recusar qualquer configuração de grupo, o que desde logo retiraria ao Modernismo português a conotação de Vanguarda, se usarmos dela a definição corrente segundo a qual é condição essencial a existência de um grupo. Deveremos, talvez, desconfiar apenas da extrema assertividade individualista singular do enunciado (de um texto que ficou por publicar), dada a variação de posições que conhecemos em Pessoa, e o facto de “os Directores do ORPHEU” ser, apesar de tudo, um sujeito plural. E devemos igualmente desconfiar da noção de “designação colectiva”, pois os nomes de escolas específicas que são recusadas o são por remeterem apenas para opções individuais, mas o que é marca de colectivo é essa própria remissão, que o é para poéticas de Vanguarda nos anos 10 portugueses.
«Os Directores do ORPHEU julgam conveniente, para que se evitem erros futuros e más interpretações, esclarecer, com respeito à arte e formas de arte que nessa revista foram praticadas, o seguinte:
(1) O termo «futurista», que designa uma escola literária e artística possivelmente legítima, mas, em todo o caso, com normas estreitas e perfeitamente definidas, não é aplicável ao conjunto dos artistas de ORPHEU, nem, até, a qualquer deles individualmente, ressalvado o caso do pintor Guilherme de Santa Rita, e lamentáveis episódios de José de Almada-Negreiros.
(2) Os termos «sensacionista» e «interseccionista», que, com maior razão, se aplicaram aos artistas de ORPHEU, também não têm cabimento. Sensacionista é só Álvaro de Campos; interseccionista foi só Fernando Pessoa, e em uma só colaboração – a «Chuva Oblíqua» em ORPHEU 2.
(3) O termo «modernista», que por vezes também se aplicou aos artistas de ORPHEU, não lhes pode também ser aplicado, por isso que não tem significação nenhuma, a não ser para designar - porque assim se designou - a nova escola pragmatista e exegética dos Evangelhos, nascida a dentro da Igreja Católica, e condenada pelo Papa, por excessivamente tendente a procurar a verdade.
(4) Os artistas de ORPHEU pertencem cada um à escola da sua individualidade própria, não lhes cabendo portanto, em resumo do que acima se disse, designação alguma colectiva. As designações colectivas só pertencem aos sindicatos, aos agrupamentos com uma ideia só (que é sempre nenhuma) e a outras modalidades do instinto gregário, vulgar e natural nos cavalos e nos carneiros.
(5) Os colaboradores de ORPHEU foram os seguintes: Mário de Sá-Carneiro, etc.
NOTA - Como não é possível que dois indivíduos de inteligência e personalidade estejam de acordo, por isso que cada um deles é um, os directores de ORPHEU assinam ambos esta declaração conjunta com a declaração de “vencidos”»
BIBL.: Luciana Stegagno Picchio, «Chuva Oblíqua: de l’Infini Turbulent de Fernando Pessoa à l’Intersectionnisme Portugais», in La Méthode Philologique, I, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, 1982; Arnaldo Saraiva, «O Extinto e Inextinguível Orpheu», in As Primeiras Vanguardas em Portugal, ed. K. David Kackson, Frankfurt- Madrid, Vervuert-Iberoamericana, 2003.
Fernando Cabral Martins