Opiário, poema escrito à maneira decadente, algures entre António Nobre e Mário de Sá-Carneiro,precede no Orpheu 1 a Ode Triunfal, poema directamente inspirado pela Vanguarda futurista. Estas «duas composições de Álvaro de Campos publicadas por Fernando Pessoa» (na menção que figura na revista) são a primeira aparição pública de Álvaro de Campos, que reincidirá no Orpheu 2 com a Ode Marítima, e constituem um fulcro do escândalo gerado pela revista.

Segundo a Carta sobre a Génese dos Heterónimos, o Opiário foi escrito depois da Ode Triunfal «para completar o número de páginas» da revista. Acrescenta: «Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver». A ideia era dar «o Álvaro em botão», o de «antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência», (Correspondência, II: 344). Historicamente ulterior à Ode Triunfal, é, pois, heteronimicamente anterior. E cumpre a função de dar a metamorfose de Álvaro de Campos, por assim dizer, ao vivo. Aqui, está ainda na sua fase de poeta decadente, cuidadosamente vestido, como um dandy, de «casaca característica» e monócolo, «monárquico, mas não católico», capaz de dizer: «ver passar a Vida faz-me tédio» (Orpheu, 72). A ideia que preside ao específico modo de apresentação pública dos dois Álvaro de Campos – o de antes e o de depois de ter conhecido o Mestre – pode ser encontrada num texto daquela época: «O dinamismo [Futurismo, Vorticismo, etc.] é uma corrente decadente, e o elogio e a apoteose da força, que o caracteriza, é apenas aquela ânsia de sensações fortes, aquele entusiasmo excessivo pela saúde que sempre distinguiu certas espécies de decadentes» (Páginasd Íntimas, 177). ora, uma ânsia equivalente a esta vem expressa de um modo enfático na estrofe final de Opiário: «E afinal o que quero é fé, é calma, / E não ter estas sensações confusas. / Deus que acabe com isto! Abra as eclusas – / E basta de comédias na minh’alma!» (Orpheu 76), que, aliás, se deve ler seguida da datação: «1914, Março. No canal de Suez, a bordo». De facto, a «ânsia de sensações fortes», a vontade de libertação da prisão de tédio e absurdo, assim gritada,  é sublinhada pelo facto contextual do poeta estar a escrever confinado na sua cabine, a bordo, em pleno canal de Suez, ou seja, num compartimento que está no interior de um navio, por sua vez ladeado pelas paredes de um estreito (obra de engenharia de grande dimensão, por isso tão afim da personagem de Álvaro de Campos), num espaço que é, assim, triplamente fechado.  

É o facto de ser tão opressivo o clima criado por este poema que torna especialmente brilhante, por contraste, a irrupção de energia que ocorre desde os primeiros versos «febris» da Ode Triunfal, datada de Londres, três meses mais tarde. A sua sucessão no Orpheu 1 corresponde, pois, aos dois actos de um monólogo, lírico primeiro, épico depois. E a ode Triunfal, se bem que mantenha o mesmo entusiasmo quase em todos os versos, não consegue esquecer as suas ainda tão recentes «sensações confusas», e termina com um verso que contém, em síntese, o Sensacionismo – o querer «ser toda a gente e toda a parte» ou o «Sentir tudo de todas as maneiras» de Passagem das Horas  – e o Decadentismo daquele que sabe muito bem não passar de um operador de ilusões – «Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!».

De todo o modo, Álvaro de Campos já existe inteiro em Opiário, como se prova pela fluidez da oralidade e o uso de expressões como «Leve o diabo a vida e a gente tê-la!» ou «Que um raio as parta!» (Orpheu 74), o encadeamento sintáctico dos versos, ou ainda a violenta auto-ironia: «Meu coração é uma avozinha que anda / Pedindo esmola às portas da Alegria» (Orpheu 73) ou «Se ao menos por fora fosse tão / Interessante como sou por dentro!» (Orpheu 75). Tudo associado a uma paródia do Decadentismo (de que é sinal também a dedicatória a Sá-Carneiro), visível na montagem de dois discursos, um imitando essa poética, outro rindo-se dela: «Vou cambaleando através do lavor / Duma vida-interior de renda e laca. / Tenho a impressão de ter em casa a faca / Com que foi degolado o Precursor.» (Orpheu 71).

 

 

BIBL.: Joaquim-Francisco Coelho, «Sobre o Tédio da Vida no Opiário», in Colóquio/Letras 107, Jan. 1989.

 

 

 

Fernando Cabral Martins