Num poema de Álvaro de Campos divulgado por Teresa Rita Lopes em Pessoa por conhecer (II, 338-339), o poeta lamenta-se de já não ser capaz de escrever “um poema extenso”. Datado de Agosto de 1934, a pouco mais de um ano da morte de Pessoa, o poema  de Campos deplora a perda da organicidade rítmica que presidira ao “movimento rectilíneo” da “Ode triunfal” e à “estrutura geral em strophe, antistrophe e epodo” da “Ode marítima”. Pessoa concebe, pois, claramente, as odes de Campos (das quais concluiu e publicou apenas estas duas) como tendo as suas raízes na ode clássica da Grécia antiga. Como de resto a referência a Ulisses e ao “velho mar sempre o homérico”, a pouco mais de cem versos do final da “Ode marítima”, revelara já. Aliás, não deixaria de ser interessante analisar com precisão a “Ode marítima” enquanto estruturada de acordo com a estrofe, a antístrofe e o epodo da ode clássica grega, com as suas origens córicas na música, no canto e na dança dramáticos. Até onde, por exemplo, irá o movimento da estrofe, que começa, “Sozinho no cais deserto, a esta manhã de Verão”? Onde se dará a volta da antístrofe no sentido contrário ao da estrofe? Será fácil entender os limites do fecho que o epodo encerra? Que forma assume a repetição destes movimentos, se é que existe repetição, ao longo de todo o poema, o mais extenso do cânone pessoano? O processo de lhe descobrir a estrutura ódica clássica seria, decerto, um meritório exercício escolar, porém, a meu ver, pouco produtivo, já que o Pessoa múltiplo é um apóstolo da inovação e, tal como outros grandes poetas da tradição ocidental, não imita, antes se apropria e transforma. Por isso é Caeiro, o não-poeta, aquele que não escreve odes formalmente, antes poemas a que falta a “disciplina exterior” (PIAI, 354), o “maior” (PIAI, 334) e “mestre” deles todos. Por outro lado, Álvaro de Campos, tendo “um poeta grego lá dentro”, não deixa de ser um “Whitman” (PIAI, 142).

Mais importante do que a cerimonial construção alongada, de inspiração pindárica, da grande ode de Campos, é o girar do volante da imaginação náutica do poeta moderno — qual “lira nas mãos dos ventos” —, atento ao movimento amplo dos guindastes transatlânticos no azafamado porto do seu próprio tempo e espaço. A história trágico-marítima da expansão imperial europeia, que Portugal iniciou, aí está a servir de tema simultaneamente celebratório e condenatório. O que a formulação do poema de Campos citado no início revela é a inserção consciente de Pessoa na tradição poética ocidental, que tem na ode uma das formas mais nobres, mais solenes e mais complexas — e mais cultivadas e transformadas ao longo dos tempos. A “Ode marítima” e a “Ode triunfal”, na própria concepção de Pessoa, evocam, na “disciplina” que faz do puro canto poesia (“ode” significa etimologicamente “canto” ou “canção”), o discurso público e majestoso das odes de Píndaro. Com uma diferença: as odes de Campos interrogam severamente aquilo que se propõem celebrar, seja o modernismo triunfalista da ciência e da técnica, seja a saga, supostamente heróica, mas antes frágil e de consequências funestas, da travessia dos oceanos e das descobertas expansionistas, maravilhosamente expressa na “Ode marítima” na “Voz Sem Boca” que fala a “incompreensibilidade” do “Puro Longe”.

Embora nem sempre assim designados expressamente, como o é a “Ode Marcial”, muitos outros poemas longos de Campos, que em geral combinam a forma pindárica do gesto público com a liricidade horaciana do pessoal, seriam também considerados odes por Pessoa (ou talvez “excertos” de odes, se pensarmos na polémica das edições “completas” e “definitivas” de Pessoa). A “Saudação a Walt Whitman”, em louvor — um louvor que não deixa de ser equívoco — do grande poeta americano, é uma ode à possibilidade da própria poesia. “Passagem das horas”, por sua vez, impõe-se como uma ode torturada à vida-sentir-tudo-de-todas-as-maneiras. “Casa branca nau preta”, os dois “Lisbon Revisited”, “Tabacaria”, “Mestre, meu querido mestre”, “Insónia”, “Aniversário” e outros — todos eles cantam (a ode é música-feita-poesia) a lucidez dilacerada da subjectividade moderna, que atravessa toda a poesia do Pessoa plural.

Diferentes são as odes que Pessoa escreveu na pessoa de Ricardo Reis. De inspiração horaciana, as odes de Reis recolhem ainda da tradição grega o modo e o tom pessoais, e mais convencionalmente líricos no sentido que o termo foi modernamente adquirindo, de Alceu,  Anacreonte e Safo, cultivando, ao mesmo tempo, as formas intrincadas e rigorosas a que estes poetas deram nome: as odes alcaica, anacreôntica e sáfica. Não deixa de ser irónico, neste contexto, o comentário de Álvaro de Campos à arte poética do “neoclássico” Ricardo Reis. O poeta que se deixou deslumbrar pela disciplina grandiosa da forma triádica da ode grega e afirmou a “maravilha de organização”, como de “regimento alemão”, mas paradoxalmente próxima de “desleixo futurista”, da “Ode Marítima” (PIAI, 142), diz não entender o apego de Reis, na sua preocupação de fundir ideia e emoção, ao artificiosismo de “frases súbditas que por duas vezes são mais compridas e por duas vezes mais curtas”, e de “ritmos escravos que não podem acompanhar as frases súbditas senão em dez sílabas para as duas primeiras, e em seis sílabas para as duas segundas, num graduar de passo desconcertante para a emoção” (PIAI, 389-391). Estamos aqui perante um dos muitos casos da promiscuidade heteronímica auto-interruptiva que caracteriza a obra de Pessoa. O contraste entre as odes de Campos e as odes de Reis fala paradoxalmente a impossibilidade da poesia lírica na modernidade. “De Apolo o carro rodou para fora / Da vista”, lê-se numa das odes de Reis, aquela em que também “chora / Palidamente” a “flauta calma de Pã”. A “Ode triunfal”, por sua vez,  parece resumir-se ao antiquíssimo grito lírico do inefável, desde o “r-r-r-r-r-r eterno” do início ao “Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!” do fecho. Na “Ode marítima”, parado o volante, resta o semicírculo de vazio traçado pelo guindaste no silêncio do poeta.

O exemplo de Pessoa-autor-de-odes, seja da pena de Campos ou de Reis, diz-nos da evolução que a ode clássica foi sofrendo nas literaturas europeias, incluindo a portuguesa.  Pessoa, que dizia estimar mais o Camões lírico do que o épico (PDE, 230), não pode ter deixado de apreciar o equilíbrio e a harmonia das odes de Camões. A forma precisa de “Tão suave, tão fresca e tão fermosa”, por exemplo, está de tal modo construída pelo ritmo, rima, imagem e ideia que o seu artifício parece o milagre da natureza a que a ode se refere. A problemática que esta e outras odes de Camões encerram é retomada pelo diálogo implícito entre Caeiro e Reis: Caeiro, recusando-se, aparentemente, à construção de “verso sobre verso” que exige a ode (“E há poetas que são artistas”), Reis, talhando cuidadosamente os seus versos, como se de tábuas ou pedras se tratasse, para erigir uma natureza que não muda desde Cecrops (a alusão ao mítico fundador de Atenas, enraizando Pessoa uma vez mais na Grécia antiga, surge em “A abelha que, voando, freme sobre”).

Como demonstra Camões, a partir do século XVI, a ode sofreu transformações notáveis na Europa. Ronsard, Verlaine e Valéry, em francês, Tasso e Leopardi, em italiano e Hölderlin, em alemão, contam-se entre os mais famosos cultores do género. Em espanhol, as transformações mais interessantes que a ode sofreu observam-se, porventura, nas Odas elementales, do chileno Pablo Neruda, que Pessoa não teve oportunidade de conhecer, mas teria sabido apreciar.

Pessoa estava, no entanto, sobretudo atento à literatura inglesa e conhecia bem as suas grandes odes, de Spenser e Milton, de que há ecos em “Antinous” e “Epithalamium”, a Marvell, Cowley, Donne, Gray, Collins e, particularmente, aos românticos. Não foi indiferente a Pessoa o tratamento original de que a ode foi alvo nas penas de Wordsworth, Coleridge, Shelley e Keats. A “grande ode” de Wordsworth (“Intimations of Immortality from Recollections of Early Childhood”) é citada por mais do que uma vez (PIAI, 129; PETCL, 153). A problemática da “tranquilidade” das odes-poemas-conversa de Coleridge subjaz ao “desassossego” pessoano. Acima, vimos já como “make me thy lyre”, a súplica final em “Ode to the West Wind”, de Shelley, repercute na “Ode marítima”. De Keats, considerado “parvo” pelo vulgo (PIAI, 412) mas um génio inovador na opinião de Pessoa, elogia o nosso poeta as odes, trabalhadas a partir do soneto, e a maestria poética em geral (PETCL, 289; 290; 332).

Concluir-se-á que a apropriação original da ode clássica pelas poéticas da modernidade tem no português Fernando Pessoa um dos seus mais notáveis exemplos.

 

 

BIBL.: Pessoa por conhecer: Textos para um novo mapa. Org. Teresa Rita Lopes. 2º vol.  Lisboa: Estampa, 1990. The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. Org. Alex Preminger and T.V.F. Brogan. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1993.

 

 

Irene Ramalho Santos