As trinta estrofes (algumas com a extensão de um único verso) da “Ode Triunfal”, assinadas pelo heterónimo Álvaro de Campos e publicadas em Orpheu I (Março de 1915), constituem o único grande poema de inspiração modernista na literatura portuguesa do séc. xx.

A celebração das “coisas todas modernas” (v.109), de tudo “com que hoje se é diferente de ontem” (v.101), da “beleza disto totalmente desconhecida dos antigos” (v.4) desenha manifestamente o motivo condutor do poema, o suporte temático que, em sucessivas passagens, se aproxima pela exaltação do presente — “Novos entusiasmos de estatura do Momento!” (v.49) — quer da poética democrática e progressiva de Walt Whitman, quer da retórica que fez de Baudelaire o cantor da metrópole por excelência do séc. xix: Paris. No caso da “Ode Triunfal” e da ficção de assinaturas da obra pessoana, não é indiferente que o poema venha datado de “Londres, 1914 – Junho”, como se só escrito numa grande capital europeia (particularmente conotada com a chamada Revolução Industrial) e com intrínseco conhecimento da respectiva e buliciosa vida quotidiana os seus versos fizessem sentido. É a apoteose do “ruído cruel e delicioso da civilização de hoje” (v.209) que está subjacente, não apenas à escolha do epíteto “Triunfal” e ao tom eufórico por ele requerido, em especial nos versos finais, mas à própria preferência pela “Ode” enquanto forma que, pelo menos desde Píndaro, se associa à mobilização da poesia para celebrar triunfos protagonizados pelos contemporâneos do próprio poeta.

A estrutura composicional da “Ode”, porém, tal como Pessoa a pratica em 1915, dificilmente encontra antecedentes literários directos capazes de funcionar como modelo, quer sejam procurados nas literaturas clássicas (nem da ode anacreôntica, nem da pindárica, nem da horaciana se reconhecem praticamente vestígios nas odes assinadas Álvaro de Campos), quer nas literaturas europeias modernas pré- ou pós-românticas (a ode escrita ao modo de Wordsworth ou Keats, poetas ingleses que Pessoa conhecia bem desde a adolescência, também nada tem a ver com a “Ode Triunfal” ou a “Ode Marítima”). No único estudo existente directamente dedicado a este assunto — “Antero, Larbaud, Pessoa: a Ode como Forma da Modernidade” (1982) — David Mourão-Ferreira viu em Whitman o “antepassado” comum a Valery Larbaud e a Pessoa/Campos no uso da estrofe livre com que estruturam as suas “odes” (num ensaio célebre de 1961, Octavio Paz propusera já a aproximação do heterónimo pessoano ao Barnabooth de Larbaud, duvidando mesmo que Pessoa não conhecesse o livro na sua edição definitiva de 1913), embora notando como relevante o facto de em Leaves of Grass nenhum poema levar a designação de “ode”. Por isso mesmo, Antero de Quental e as suas Odes Modernas, de 1865, pela influência que tiveram tanto no poeta francês quanto no português, pareceu a Mourão-Ferreira a melhor mediação para explicar o recurso, insólito por paradoxal anacronismo, ao termo antigo nestes textos que, em tudo o mais, sugerem uma modernidade sem concessões.

Outro modo de pensar este detalhe de poética é tomá-lo como uma espécie de ironia técnica, conectando-a com o registo não tão linearmente exaltante da “civilização de hoje” quanto à primeira leitura pode parecer que se encontra na “Ode Triunfal”. Eduardo Lourenço, autor ainda agora das melhores páginas de comentário ao célebre poema de Pessoa/Campos, falou do seu “carácter intensamente negativo em relação a toda e qualquer apropriação autêntica do Moderno”, sublinhando nos dois versos iniciais a expressão que designa o efeito da luz a que o poema é escrito: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / Tenho febre e escrevo.” Por causa desta dor ou desta negatividade, E. Lourenço não temeu no mesmo parágrafo chamar ao poema “pseudo-Ode Triunfal”, desconfiando radicalmente de qualquer leitura que leve à letra o futurismo aparente dos seus versos. Mas nesse sentido, se é falsa a apologia do Moderno, “significado pelo triunfo técnico”, é igualmente falso (ou irónico) o uso da palavra “ode” como se significasse uma forma conhecida e codificada de tradição poética, antiga ou recente. O que não pode ser falso e muito menos falsificável ou iludível é o choque, que o poema traduz ou indicia, entre a linguagem que procura para dizer uma certa experiência (“dolorosa”) da modernidade e o facto de não poder procurá-la sem se relacionar com a memória da poesia, isto é, sem tornar presente o passado da linguagem que procura.

Por consequência, certas passagens da “Ode Triunfal”, onde está particularmente em causa a representação do tempo, tendem a tornar-se críticas para a sua leitura. Logo na terceira estrofe, a lógica dessa representação surge enunciada à superfície do texto, numa espécie de definição do objecto do poema: “[...] Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, / Porque o presente é todo o passado e todo o futuro / E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas / Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, / E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, / Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, / Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes, [...]”. Do ponto de vista do seu funcionamento lírico, estas bem literais “máquinas” e “luzes eléctricas” não se deixam cantar como se coincidissem absolutamente consigo mesmas, num presente amnésico e sem projecção de futuro. Um presente que é “todo o passado e todo o futuro” é, mais do que um presente em ruptura com o tempo que o precedeu, um presente dividido de si mesmo: não um novo começo absoluto em direcção a um futuro projectado, mas um tempo marcado pelo excesso, pela repetição, pela proliferação auto-contraditória. Uma das figuras centrais dessa experiência de um mundo sem centro, com que o poema se defronta (porventura pela primeira vez, ao menos de forma tão explícita, na lírica portuguesa pós-romântica), é a da multidão: “Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas, / Rio multicolor anónimo e onde eu não me posso banhar como quereria!” (v. 154-155). Este desejo repetidamente frustrado de se “banhar” na heterogeneidade irredutível da “multicolor” multidão urbana sinaliza toda a tensão que atravessa o poema e a sua intenção de cantar “o presente”, quer dizer: a tensão entre a retórica erótica, herdada e expandida da tradição lírica (da qual constitui uma espécie de sinédoque distorcida), e um objecto de desejo estruturalmente “anónimo”, maquinal, disseminado e afinal impossível de fixar, com o qual nenhuma fusão, sequer imaginária, é viável.

Não é, pois, necessário opor a literalidade das metáforas ou figuras mecânicas à chave sexual (ou homossexual) que lhes decifraria ou lhes absorveria transparentemente o sentido. A inspiração modernista, o desejo de encontrar a linguagem capaz de dizer ou cantar a “beleza disto totalmente desconhecida dos antigos”, nunca desaparece das intenções textuais da “Ode Triunfal”, nem há leitura capaz de a eliminar. A estrutura exclusivamente onomatopaica da penúltima estrofe mostra o limite para que pode tender tal desejo, da mesma forma que a exclamação que compõe, sozinha, a última estrofe (“Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!”) repõe infinitamente em estado de desejo o desejo que nenhuma acumulação de enumerações ou sucessão de onomatopeias consegue, poeticamente, realizar. O que se lê na “Ode Triunfal” não coincide, pois, com o abandono nem com o retorno, com o registo do fracasso ou do sucesso do programa dos modernismos.

 

BIBL.: Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa Revisitado: Leitura Estruturante do Drama em Gente, 2ª edição, Lisboa, Moraes Editores, 1981. David Mourão-Ferreira, Nos Passos de Pessoa: Ensaios, Lisboa, Editorial Presença, 1988. Octavio Paz, Fernando Pessoa o Desconhecido de Si Mesmo, trad. de Luís Alves da Costa, Lisboa, Vega, 1988.   

 

 

 

Gustavo Rubim