(1907 – 1995)
1. Foi em 1934, ao publicar o ensaio intitulado A terceira voz, que Adolfo Rocha adoptou o nome de Miguel Torga. Através desse gesto, o escritor não se limita a instituir um outro nome, indutor de uma máscara cívica. Como bem sublinhou recentemente Eduardo Lourenço (2005) o que está em causa é uma verdadeira “automitificação onomástica”, com todas as consequências que daí advêm no plano estético. Associando o fitónimo “torga” –pequeno arbusto que cresce em locais pedregosos- a "Miguel"- nome de escritores ibéricos (Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno), de artista demiurgo (Miguel Ângelo) e de Arcanjo com significativa motivação semântica (“Quem como Deus”), o artista (então com apenas 27 anos) escolhe uma linha de coerência que não mais haveria de abandonar.
De resto, a tónica que mais impressiona na obra do escritor é, justamente, a persistência no cumprimento de um mesmo programa. De tal forma que, ao longo de um percurso de quase 6 décadas, se torna difícil admitir a existência de fases propriamente ditas. Mais do que alterações de dominante estética e cívica, o que existe é um apuramento de estilo, cada vez mais caracterizado pela expressão lapidar e incisiva, tanto na prosa como no verso.
No plano dos temas e das formas, essa constante traduz-se essencialmente na representação autobiográfica. E embora na Literatura Portuguesa se possam invocar ascendentes remotos (Bernardim Ribeiro, Camões, Bocage serão, porventura, os casos mais salientes), é na estética modernista que vamos encontrar essa dominante perfeitamente definida, remetendo para a encenação de grandes dilemas, através de um processo de autoconhecimento angustiado e tensional, que também é possível conhecer em José Régio, por exemplo. No plano internacional, de resto, os antecedentes directos do intimismo torguiano coincidem, em grande parte, com as matrizes do segundo modernismo português: Amiel, Proust e Gide, em particular; de forma menos directa, deve ainda ter-se em conta o lastro romântico multinacional e multiidiomático de Rousseau, Victor Hugo, Baudelaire, Holderlin, Coleridge ou Lord Byron.
Não pode esquecer-se, aliás, que Torga viria a participar no movimento da Presença, vindo depois a demarcar-se dele não tanto por força de divergências quanto ao ideário modernista em que assenta o movimento mas em virtude de um fortíssimo impulso individualista que o levaria, desde então, a não mais se afinizar com qualquer outro grupo estético ou ideológico. O empreendimento obstinado de um caminho unipessoal revela, aliás, um misto de pertinácia e de orgulho heróico. Assim se explica, inclusivamente, o facto de o escritor ter querido correr o risco da edição das suas próprias obras, antes e depois de ter obtido o reconhecimento do público, fazendo ressaltar, também por essa via, uma imagem de vincada independência.
Lida em clave autobiográfica, a obra de Torga pode assim ser entendida como uma verdadeira aventura do conhecimento. De resto, a própria ideia de luz (e de fogo) assumem um papel estruturante em toda a escrita do autor, sistematicamente orientada na luta contra a ignorância, o sofrimento, a indiferença e a busca indomável da verdade possível. Neste sentido, se pode afirmar que, para além de um revestimento retórico, a autobiografia assume o carácter de uma verdadeira opção doutrinária, funcionando como desejo e garantia de genuinidade. Como se só na medida em que fosse percebida como autêntica, a obra em apreço pudesse reunir potencial persuasivo, impondo-se à empatia e à admiração dos leitores.
Por essa via, a criação torguiana inscreve-se no amplo processo de transformação da arte realista e empenhada do Ocidente, do Barroco até ao século XX. Essa constitui, decerto, uma das suas grandes linhas individualizantes, sinalizando, ao mesmo tempo, o afastamento em relação ao subjectivismo mais depurado dos presencistas e a fuga ao retoricismo dos parnasianos de todos os tempos; a distância muito semelhante, pode ainda falar-se em afastamento face ao compromisso social dos neo-realistas. Vista no âmbito dessa equidistância, a arte de Torga pode inclusivamente ser vista como uma superação do velho dissídio entre arte útil e arte inútil, com recurso a uma mimese abrangente, autêntica na expressão individual e útil na representação dos temas e dos problemas da comunidade.
2. No plano cultural, a vinculação identitária é primeiramente assumida por Torga através da Língua ou, ainda de forma mais ampla, através da tradição das Letras. O escritor quis, de facto, situar-se na série articulada da história literária portuguesa, assumindo-se como herdeiro e renovador de uma memória onde se misturam escrita, arte e pensamento. Neste aspecto, a primeira nota a reter é a intensidade e a frequência com que se convoca a lição e o exemplo dos quinhentistas: Fernão Mendes Pinto e Camões, sobretudo. Parece aliás sintomático que tenham sido estes e não outros os eleitos. Privilegiando o diálogo com figuras deste período que, embora de forma diferente, dão voz às contradições da nossa Expansão, Torga está ainda a reportar-se, de alguma maneira, aos pilares da portugalidade, glosando esse grande tema de toda a escrita em Português, para nele intervir de forma directa e transformadora. De tal forma que sendo frequentes e marcantes as manifestações de grande apreço por cineastas, pintores ou músicos, são bastante mais raras as que versam escritores (sendo sobretudo escassas as que dizem respeito a escritores portugueses contemporâneos).
Embora dedutíveis a partir da escrita ficcional, estas linhas de força encontram expressão ainda mais clara em textos de carácter ensaístico ou programático. Em 1954, por exemplo, num trabalho intitulado “Panorama da Literatura Portuguesa” (resultante de uma conferência pronunciada na Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro), o escritor explicita bem os fundamentos do seu cânone, ao privilegiar os autores que, no “grande século”, melhor interpretam as aspirações mais profundas da comunidade nacional.
Tornam-se elucidativas, em particular, as palavras de evocação que consagra a Luís de Camões (9 de Junho de 1987), aquando de uma visita a Macau. Aí notamos, sem surpresa, que a sua visão do poeta não se afasta muito dos centros de valorização definidos pelo Romantismo. A novidade reside agora, tão-só, na necessidade de reforçar a autenticidade da obra através da experiência de vida. É a essa luz essencial que ganha importância o diálogo com o poeta de Quinhentos. E, ao contrário do que sucede com a maioria dos poetas presencistas (mais apreciadores da Lírica), Torga valoriza expressamente a criação épica e o halo de intemporalidade que dela se desprende. A Camões há-de também dedicar vários poemas laudatórios, todos eles centrados no motivo da grandeza excepcional, em termos artísticos e em termos cívico-políticos. “Cedro desmedido/Da pequena floresta portuguesa” (“Camões, in Poemas Ibéricos), “única certeza de Portugal” (“Lápide”, in Diário). Por fim, a figura do poeta de Quinhentos há-de servir para constantes questionações do destino colectivo e para, em tempo de crise mais aguda, criticar a inércia do presente por contraste com a grandeza do passado.
Esta linha experiencial coloca o artista como intérprete perfeito da grei, transformando-se, ao mesmo tempo, em verdadeiro quesito de grandeza estética. E o diálogo com Camões pressupõe uma clara convergência de dois princípios de ordem cívica: a experiência como base legitimadora da criação estética, a coragem de questionar todas as quebras de ética e o consequente amolecimento que deriva da ambição material.
Nessa mesma linha aclamativa, em 1948, há-de reconhecer em Teixeira de Pascoais, atributos idênticos, sobretudo no que toca à conjugação entre o lastro agónico e a pulsão lírica:
“…talvez nunca tenha nascido em Portugal estro tão medularmente nosso, tão profundamente consubstanciado com a alma da grei, no que ela oculta de brumoso, atormentado e abissal sob a capa de uma singeleza lírica e versátil” (“Teixeira de Pacoais”, in Ensaios e Discursos, p. 228)
Em contrapartida, não deixa de desmerecer nos autores que se afastam deste tipo de vínculos. Referindo-se a Eça de Queirós, por exemplo, critica a sua insinceridade (supostamente disfarçada de “sorrisos e pilhérias”) e o seu desconhecimento de um país sobre o qual tanto escreveu.
Já o diálogo mantido com Fernando Pessoa se revela bem mais ambíguo e intermitente. É bem conhecida a página do Diário (datada de 3 de Dezembro de 1935) em que regista a morte daquele que se considera então “o nosso maior poeta de hoje”. E é também certo que os sete textos intitulados “História Trágico-Marítima” que viriam mais tarde a integrar os Poemas Ibéricos são escritos em 1935/36 e publicados em 1938, inscrevendo-se no mesmo tipo de poesia interpretativa, exortativa e profético-doutrinal de Mensagem (publicada em 1934). Pelas razões já apontadas, porém, é por demais evidente que o poeta transmontano não viu um verdadeiro Mestre no Fernando Pessoa teatral e despersonalizado que viria a ser canonizado pelos anos 70 e 80.
Através destes sinais de apreço e de distanciação, é assim possível deduzir uma poética de contornos bem definidos, valorizadora da verdade e não do fingimento, da utilidade e não da evasão, ao mesmo tempo que apontam para uma ideia do escritor empenhado e não desistente, optimista e não desesperançado, construtivo e não demolidor. Num outro plano, estes juízos revelam ainda um autoposicionamento no seio do próprio cânone literário português, numa tentativa de abrir caminho por entre as “espécies” já instaladas, reconhecendo afinidades e cavando distâncias.
De igual modo se deve entender a natureza e o alcance do magistério artístico do escritor. Esperar-se-ia, porventura, que uma personalidade tão carismática pudesse ter mobilizado o entusiasmo de um vasto conjunto de discípulos. Assim não viria a acontecer, porém. Existem, é certo, numerosos testemunhos de admiração por parte de muitos escritores mais novos. Mas quase sempre se vêm a revelar esteticamente inconsequentes. Ainda assim, Manuel Alegre será o poeta que mais se aproxima de Torga. O que une os dois escritores — e o que une a Miguel Torga outros mais, da geração de Alegre— é ainda uma preocupação afectiva e cívica com Portugal, a tal mulher volúvel que Torga não se cansou de amar, para além de todos os receios e desgostos.
De resto, o próprio Torga faz questão em se apresentar sistematicamente ao leitor como filho da terra, adepto dos valores da honradez e da pertinácia campesinas; avesso, portanto, a tudo o que possa descaracterizar este perfil profundo que cimenta a própria ideia de nação. Falando de si próprio e das circunstâncias que lhe coube viver, o escritor dá garantias de não se afastar do lastro de verdade, que toma como amparo e referência. Mais do que uma possibilidade entre muitas outras, o escritor parece mesmo convencido de que não existe outro caminho de afirmação artística, nele cabendo a aliança indissolúvel entre o homem e a obra.
3. A essa mesma luz ganha importância a relação que o autor (e os seus vários desdobramentos ficcionais) mantêm com a terra natal. É sabido que a Agarez d' A Criação do Mundo permanece a referência central, a Ítaca desejada no termo de cada deambulação. No interior dessa mesma diegese, vem primeiro o Porto e, logo a seguir, o seminário de Lamego, a fazenda de Santa Cruz, no estado brasileiro de Minas Gerais, Miranda do Corvo, Leiria, etc. A partir de um certo momento, contudo, a dialéctica fixa-se apenas em torno de Coimbra (a “Agarez alfabeta”) e das fragas maternais de Trás-os-Montes. Nessas deambulações e nesses regressos compulsivos, torna-se possível descortinar uma vertente épica, reportada a um herói que, amando a sua terra, se não conforma com os limites dela, cumprindo-se nas provas do viajante, à semelhança do que sucedia com os heróis-aventureiros do século XVI. Nessa medida, o regresso constitui, ao mesmo tempo, um prémio e uma revalidação do preito à terra. Um exemplo disto mesmo (escolhido de entre muitos outros) encontra-se no conto intitulado “A Paga (Contos da Montanha) quando Matilde, “desgraçada” por um Don Juan rústico (o Arlindo), se vê vingada pelos irmãos (Cândido e Albino) vindos expressamente do Brasil (onde se encontravam emigrados) para, em dia de romaria a S. Domingos, restabelecerem a justiça da terra. Punido na sua capacidade fecundante, o Arlindo constitui o exemplo do excessivo, do que atraiçoa as leis morais necessárias ao bom funcionamento da comunidade. Por via disso mesmo, o castigo teria de lhe ser simbolicamente imposto por filhos da mesma terra, que a ela voltaram com esse fim, em sinal de pertença natural, que vence todas as distâncias.
A concretização mais representativa deste enredo paradigmático encontra-se, contudo, n' O Senhor Ventura (1ª edição em 1943 e versão revista, com Prefácio, em 1985), onde se contam as aventuras de um pastor alentejano, desertor do serviço militar (cumprido em Macau), traficante e homicida, sem deixar de ser voluntarioso e bom. A projecção do autor nesta figura deriva mais de uma encarnação colectiva, conforme se viria a reconhecer nas palavras prefaciais dirigidas “Ao querido leitor”:
"… conta uma história portuguesmente verosímil, dado que somos os andarilhos do mundo, capazes em todo o lado do melhor e do pior” (p.13)
Mais à frente, já no intróito da novela, esclarecem-se os motivos da empatia:
“Na sua figura ponho a realidade do que sou e a saudade do que podia ser […] E vivo nele. E, enquanto dura a memória dos seus passos, sinto-me tão verdadeiro que quase sou feliz" (p.17)
Atraiçoado por um cancro, o dito senhor Ventura não regressa à terra. Mas há-de voltar um filho seu (Sérgio), de novo para se transformar em pastor "que foi por onde o Senhor Ventura começou". A conversão da terra em casa matricial atravessa, de resto, toda a obra de Torga, repercutindo-se na centralidade da infância, também ela reiteradamente entendida como tempo de descoberta e de perseverança na verdade.
4. Tendo cultivado uma variedade tão grande de géneros e tendo em alguns deles atingido níveis tão elevados de consecução (é praticamente consensual, pelo menos, a sua valia como contista e como diarista), Torga revela uma clara predilecção pelo seu estatuto de poeta
Iniciado em 1928 com o livro Ansiedade (entretanto renegado), o lirismo de Torga reflecte, melhor do que qualquer outro género, o travejamento essencial do ideário autoral. Aí comparece a ideia de uma Natureza boa contraposta às hipocrisias sociais (no que lembra muito Sá de Miranda); aí ganham sentido as experiências emotivas que se vão entrecruzando com marcas de acentuada referencialidade, sendo difícil, por vezes, separar umas e outras. Aí avulta, por fim, a noção de que a escrita literária se inscreve no âmbito de uma transcendência órfica. De facto, mais do que imitar a realidade, bem pode dizer-se que a poesia de Torga a reinventa sem cessar, tal como Orfeu conseguia modificar a realidade através da melodia do seu canto. Ainda como o pastor da Trácia, o objectivo último do poeta é sempre o de resgatar Eurídice (que tem, neste caso, o nome da Pátria), arrancando-a ao negrume dos infernos e devolvendo-a à luz e à esperança do futuro. Aí se verifica, em plenitude, a busca de um sentido último que conjugue o sensorial e o ultra-sensorial. É ainda nessa medida que se pode falar em agonismo ou em titanismo, consubstanciados numa revolta constante do sujeito contra o segredo teleológico que envolve a vida e a morte. Como tem sido sublinhado, a revolta de Torga deriva de uma consciência pungente da finitude. Nessa medida, o pathos da morte aflora sempre com envolvências de desespero e nunca de calma pacífica ou de resignada submissão.
Mais do que qualquer outro escritor português do século XX, Miguel Torga exerceu, ainda em vida, uma influência invulgar, abrangendo quase indistintamente os planos cívico e estético. Essa aura intensificou-se designadamente no período que se seguiu a Abril de 74, momento em que o escritor (já então próximo dos 70 anos) é tomado como patrono da jovem democracia portuguesa, passando de “artista maldito” a “escritor tutelar”. Para além de alguns atributos intrínsecos, a transformação foi decerto favorecida pelo seu passado contestatário e pela glorificação da liberdade a que incessantemente procedeu.
Essa mesma heterodoxia explica a aura de Miguel Torga na jovem democracia portuguesa, conseguida também através de uma boa gestão da palavra e do silêncio, da exposição pública através dos livros e, em simultâneo, de uma perseverante recusa de actos mundanos, incluindo entrevistas, sessões públicas de lançamentos e homenagens. Os registos exarados nos últimos dois volumes do Diário são bem o exemplo dessa forma de intervenção activa e discreta, incorporando, com desassombro e desalinhamento partidário, comentários críticos sobre a realidade profunda da vida nacional.
Independentemente de todos os traços de temperamento, porém, essa mesma aura só pode ser explicada pela importância de que a Literatura então desfrutava na Sociedade. Só assim se explica cabalmente que, embora mantendo a sua atitude de reserva aristocrática, o poeta tenha podido usufruir de um ascendente quase profético, vendo-se reconhecido e celebrado na sua condição de decifrador dos grandes mistérios do mundo.
GONÇALVES, Fernão de Magalhães, Ser e ler Miguel Torga, Chaves, Edições Tartaruga, 1998;
LOURENÇO, Eduardo, “A poesia da Presença ou o último teatro do Eu”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 894 (Janeiro de 2005), pp.6-8;
ROCHA, Clara Crabbé, Miguel Torga. Fotobiografia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000 (com Bibliografia activa e passiva);
José Augusto Cardoso Bernardes