“O Marinheiro” é o único drama acabado de Pessoa. Foi escrito em poucas horas, na virada de 11 para 12 de setembro de 1913, e publicado pela primeira vez dois anos depois dessa data, após profunda revisão, na Orpheu, n. 1 (Lisboa, 1915). A recusa de Álvaro Pinto por publicar a peça n’ A Águia, órgão central do movimento da “Renascença portuguesa”, serviu de pretexto para Pessoa romper com o saudosismo.
Segundo Robert Bréchon, “Os Cegos’, de Maeterlinck (1890), forneceu-lhe o modelo formal da ação dramática”, e “À espera de Godot’ (1953) parece uma réplica metafísica” da peça. (Bréchon, R, Estranho estrangeiro, Pp.176-177) Mas a alcunha de “drama simbolista” reduz em muito a importância do texto. Para Bréchon, “O Marinheiro” é um dos momentos-chave de toda a obra de Pessoa: “É obra profunda, que, quando Pessoa a escreve, quase às vésperas do “dia triunfal”, lhe marca importante etapa da evolução: ela resume tudo o que lhe tinha inspirado o sentimento “paulista” da vida e anuncia o aparecimento nele de “vozes” novas. (Ibid., p. 176)
Em carta a Armando Côrtes-Rodrigues (04-03-1915), Pessoa escreve a respeito de seu texto:
O meu drama estático “O Marinheiro” está bastante alterado e aperfeiçoado; a forma que v. conhece é apenas a primeira e rudimentar. O final, especialmente, está muito melhor. Não ficou, talvez, uma cousa grande, como eu entendo as coisas grandes; mas não é cousa de que me envergonhe, nem – creio – me venha a envergonhar. [Fernando Pessoa – Correspondência 1905-1922. Org. Manuela Parreira da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pp. 156-159]
Pessoa, de fato, nutria especial apreço pela peça. Sua leitura permite fácil identificação de alguns dos temas mais caros à sua poesia: as dúvidas existenciais; a intuição de que a vida é sonho; o desdobramento da voz; a clivagem do eu num espaço aberto entre aquele que sente e que pensa, ou entre aquele que pensa e que diz; a colocação em xeque da unidade do eu; o fado da autoconsciência; o adiamento pelo sono.
O crítico José Augusto Seabra traduz um importante trecho escrito em inglês por Pessoa (que a edição da Nova Aguilar reproduz no original), em que sugere o caráter trágico da peça, e o juízo especialmente positivo de seu autor sobre o desenlace:
Começando de uma forma muito simples, o drama evolui gradualmente para um cume terrível de terror e de dúvida, até que estes absorvem em si as três almas que falam e a atmosfera da sala e a verdadeira potência do dia que está para nascer. O fim da peça contém o mais sutil terror intelectual jamais visto. Uma cortina de chumbo tomba quando elas não têm mais nada a dizer uma às outras nem mais nenhuma razão para falar. [Apud Seabra, Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo: Perspectiva, 1974. P. 31].
A peça, nunca representada em vida do escritor, embora escrita em prosa, apresenta tom predominantemente poético, permeado de pausas e reticências, bem ao gosto “paulista”. Na Orpheu, “O Marinheiro” carrega o subtítulo “drama estático”. A expressão designa bem sua natureza distinta, aparentemente escrita mais para ser lida do que assistida: um teatro sem ação, com personagens imóveis, não caracterizadas, que apenas falam num cenário solto no espaço e situado num tempo indefinido. Num manuscrito, provavelmente de 1914, Pessoa tece considerações a respeito do que vem a ser essa sua concepção de teatro:
Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação – isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo. Dir-se-á que isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatro tende a teatro meramente lírico e que o enredo do teatro é, não a ação nem a progressão e conseqüência da ação – mas, mais abrangentemente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a criação de situações (...) Pode haver revelação de almas sem ação, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade. [PETCL, 2ª. ed, 1973, p.112].
O drama se passa numa madrugada. O leitor entra em contato com três veladoras, que não são nomeadas ou descritas. Elas apenas dialogam até o amanhecer, no quarto de um castelo antigo, vazado por uma janela estreita e voltada para o mar. No centro do quarto, no alto de uma mesa, há um caixão com uma donzela de branco. Não sabemos quando a cena se passa, tampouco em que lugar se situa esse “castelo antigo”. Há apenas as falas das veladoras, que, a certa altura, ao invés de demarcar espaços de enunciação distintos, ou identificar personagens, tendem a se confundir umas com as outras. Segundo R. Bréchon, a sensação que temos ao ler uma peça como essa, em que tempo e espaço são suspensos, e apenas vozes se apresentam, é a de estarmos dentro de um cérebro. De fato, os diálogos, em tom monocórdio, se aparentam mais a um monólogo, como se houvesse a fala de uma única personagem numa conversa consigo mesma.
No “Marinheiro”, as veladoras dizem não poder capturar o presente – em constante transição –, o passado – que não é mais que um sonho –, e o futuro –, que sumirá ao raiar do dia. Essa imaterialidade aparentemente absurda só não resulta no nada absoluto porque há a voz, único substrato de existência, o corpo irredutível do drama (a palavra – as veladoras não são mais do que isso), que paira numa atmosfera que não é exatamente onírica ou real, mas que se situa no não-espaço entre sonho e realidade:
PRIMEIRA – [...] Quando virá o dia?
TERCEIRA – Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira... sempre, sempre, sempre...
(uma pausa)
SEGUNDA – Contemos contos umas às outras... [...] Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia estar tendo... Mas o passado – porque não falamos nós dele?
PRIMEIRA – Decidimos não o fazer... Breve raiará o dia e arrepender-nos-emos... Com a luz os sonhos adormecem... O passado não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho... Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou...
Por ser a voz o modo de existência no drama, a segunda veladora, que desempenha o papel de corifeu, de narradora, conta seu sonho a respeito de um marinheiro perdido numa ilha longínqua. Impossibilitado de voltar à sua pátria, ele sonha ter vivido numa outra pátria, que constrói, dia a dia, pela imaginação. Aos poucos, pode ver as paisagens, as ruas, as cidades, pode percorrê-las, reconhecer as pessoas que ali viveram, seu passado e suas conversas, o lugar onde nasceu, onde passou as diferentes fases da vida, e os companheiros que teve. Mas eis que, num dia de muita chuva, cansa-se de sonhar, quer se lembrar da pátria verdadeira, da meninice que teve, e então isso lhe parece impossível, nada lhe vem. Não pode nem ao menos supor ter vivido uma outra vida, porque a única que teve passara a ser realmente a vida que sonhara.
O dia começa a raiar e tanto a ilha do marinheiro quanto o quarto com as veladoras parecem-lhes igualmente irreais. Não será tudo sonho?
SEGUNDA – Talvez nada disto seja verdade... Todo este silêncio e esta morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho... Olhai bem para tudo isto... Parece-vos que pertence à vida?...
E então o caráter ficcional do sonho narrado se inverte. E o pavor criado pela hipótese de não existirem, de tudo não passar de poeira dos sonhos, se abate sobre as veladoras:
SEGUNDA – Por que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?
Na medida em que o que garante a permanência das veladoras no mundo é a fala, estranhar a própria voz significa questionar a existência. Esse questionamento ganha consistência no drama com horror crescente, como se houvesse uma mão oculta, uma “quinta pessoa”, guiando suas falas: “Que voz é essa com que falais?...”; “Entre mim e a minha voz abriu-se um abismo”; “Agora estranho-me viva com mais horror”; “E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam”; “Quem é que nos faz continuar falando?”; “Que estranha que me sinto!... Parece-me já não ter a minha voz... Parte de mim adormeceu e ficou a ver...”; “Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizei... A minha consciência bóia à tona da sonolência apavorada dos meus sentidos pela minha pele...”; “Oh, que horror, que horror íntimo nos desata a voz da alma, e as sensações dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo em nós pede o silêncio e o dia e a inconsciência da vida...”
É com esse arrepio da consciência que tocamos o cerne da peça – e porventura da obra de Pessoa –, assim identificado por Seabra: “a desintegração da linguagem numa pluralidade de linguagens (o poemodrama), do sujeito numa pluralidade de sujeitos (o poetodrama). (Seabra, Fernando Pessoa ou o poetodrama, p. 31).
Pessoa traça aqui o processo de desprendimento do eu de si mesmo, como uma consciência boiando sobre a sensação, e das sensações sentindo, portanto, a sós, apostasiadas, desvinculadas de uma mente, e de um corpo. Em retrospectiva, o desdobramento heteronímico parece prefigurado. N’ “O Marinheiro”, esse desdobramento traduz-se abertamente como reflexão profunda a respeito do tema obsessivamente perseguido nas diferentes instâncias da obra: o mistério do ser.
Uma das leituras mais radicais deste drama (embora muito breve) seja a realizada por Antonio Tabucchi, que se afasta da habitual aproximação feita pela crítica com os dramas simbolistas, e entende “O Marinheiro” como uma charada shakespeariana que exibe o centro dramático da escrita de Pessoa, isto é, o problema de se traduzir uma ficção por outra ficção – a vida, que não passa de um sonho, pela literatura, o teatro. Tabucchi não desenvolve essa leitura, mas se pode considerar que, nesse sentido, estaremos diante de um texto de alcance metalingüístico, no qual, possivelmente, a “quinta pessoa” pressentida na sala é o próprio autor, que conduz as personagens, que dita suas vozes. A aproximação do drama a “Seis personagens à procura de um autor”, de Pirandello, é profícua a essa leitura. O marinheiro, que é “sonho de um sonho” – que é fruto da imaginação da segunda veladora, que, por sua vez, é fruto da imaginação do poeta –, quando começa a sonhar, produz nova realidade, seu próprio passado, isto é, o marinheiro, de sonhado torna-se sonhador, de personagem migra para o lado do autor. O marinheiro é agora quem narra. Feito isso, Pessoa inverte as coisas: a aparência ilusória de verdade, a “verdade fingida” que se encontra no plano das veladoras, do marinheiro, torna-se menos real do que aquilo que o marinheiro sonhou (do sonho dentro do sonho). Assim, a pátria sonhada torna-se uma ficção mais verdadeira do que a anterior. A vida é sonho, e este problema tão pessoano está, afinal, e segundo Tabucchi, já explícito no teatro de Shakespeare. Quando Pessoa declara “All my books are book of reference. I read Shakespeare only in relation to the Shakespeare Problem: the rest I Know already”. (PIAI, p.20-21. Apud. Tabucchi, 1984, p. 88), faz menção a um problema que é tanto seu quanto do autor inglês – e, de resto, de toda a literatura: “O Marinheiro” é uma primeira tentativa de traduzir, no plano do teatro (do texto), o teatro (o texto) da vida. Um pouco mais tarde ela seria sucedida pelo sistema heteronímico.
Bibliografia:
Marinho, Maria de Fátima. “O Marinheiro e o ‘Teatro do Absurdo’”. In: Actas do I Congresso Internacional de Estudos Pessoanos. Porto: Centro de Estudos Pessoanos, 1979.
Seabra, José Augusto. “O drama estático”. In: Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo: Perspectiva, 1974. Pp. 27-34.
Tabucchi, Antonio. “O Marinheiro’: uma charada esotérica?” In: Pessoana mínima. s/l.: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984. Pp. 83-96.
Caio Gagliardi